Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 2, jul./out., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.2.a05
ISSN: 2318-4620
O estímulo do Governo Michel Temer à
financeirização da pobreza
Guilherme Figueredo
Benzaquen
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
benzaquenguilherme@gmail.com
Após o processo de impeachment que depôs a presidente eleita Dilma Rousseff, Michel Temer foi o 37º presidente brasileiro entre 31 de agosto de 2016 e 31 de dezembro de 2018. Economicamente, seu governo começa em 12 de maio de 2016, quando nomeia Henrique Meirelles como ministro da fazenda, no mesmo dia em que a presidente Rousseff é afastada após a aprovação no Senado da admissibilidade do processo de impeachment. O mandato de Temer está inserido no período demarcado pela mais recente crise econômica brasileira. Comparada com ocorrências anteriores estatisticamente documentadas, é a crise com a maior redução do Produto Interno Bruto (PIB) e com o maior aumento de desemprego da história brasileira (ROSSI; MELLO, 2017).1 O que se verifica é que, até o segundo trimestre de 2017, o Brasil apresentou um quadro de recessão com a taxa de crescimento do PIB em sucessivas quedas. A partir do quarto trimestre de 2017, a economia apresentou um cenário levemente melhor, porém, ainda assim, terminou os anos de 2017 e 2018 com um quadro de estagnação, ou seja, com um crescimento baixo e estável ao redor de 1% ao ano (IBGE, 2020a).
O presente artigo tem como objetivo principal analisar o modo como o governo de Michel Temer adotou a “financeirização da pobreza” como enquadramento da política social estatal. O conceito de financeirização da pobreza será aprofundado adiante, mas já pode ser apresentado resumidamente como a transformação da condição da pobreza em um problema financeiro a ser solucionado financeiramente. Pretende-se descrever como a promoção da financeirização da pobreza seguiu em curso em um momento de crise econômica que atingiu de modo desigual a população brasileira. Para tanto, busca-se demonstrar que esse é um processo que inicia antes do governo Temer, mas que tem particularidades importantes nesse momento.
Sabe-se que há uma relevante e vasta literatura acerca do caráter financeirizado do capitalismo brasileiro (BIN, 2016; GRUN, 2009; 2013; FEIL; SLIVNIK, 2018; JARDIM, 2009; 2016; LAVINAS, 2017; 2020) e de como esse processo tem transformado a vida da população nacional (LEITE, 2011; MIGUEL, 2015; MÜLLER, 2014; SCIRÉ, 2011). Porém, percebemos uma lacuna, a respeito do período e do objeto específico aqui analisado, que nos permitiu tentar contribuir com um diagnóstico da financeirização da pobreza em seus aspectos mais contemporâneos.
Estivemos, portanto, empenhados na elaboração de uma descrição da financeirização da pobreza, que se detivesse na seguinte questão: como o governo Temer buscou gerir a pobreza por meio da promoção das finanças? A análise se ateve tanto ao efetivamente realizado pelo governo federal quanto a suas intenções e projetos, pois ambos constituem a gestão estatal da pobreza. Metodologicamente, analisamos dados estatísticos secundários e relatórios produzidos por órgãos estatais a partir de uma perspectiva que buscou descrever a situação da pobreza, no Brasil, e analisar as iniciativas governamentais. Os dados são relativos a características econômicas gerais e, principalmente, à promoção do acesso e uso de produtos financeiros no período analisado.
Além dessa breve introdução, o artigo está estruturado em quatro seções e as considerações finais. Em um primeiro momento, apresentaremos a definição de financeirização da pobreza utilizada. Na segunda seção, será apresentado o contexto anterior ao governo Temer para fornecer elementos comparativos ao que ocorre posteriormente. Na terceira seção, serão expostos os dados relativos à pobreza e à desigualdade no governo Temer e, depois, exporemos uma sistematização acerca da utilização de produtos financeiros a partir de dados disponibilizados pelo Banco Central. Por fim, em uma quarta seção, será analisada a noção de “cidadania financeira” e apresentaremos um projeto de microcrédito promovido pelo governo federal: o Plano Progredir.
Apesar de não utilizar a expressão “financeirização da pobreza”, Lavinas (2010, 2017; 2020) fornece aportes iniciais importantes para uma discussão que busque compreender esse processo no Brasil. Com relação ao significado atribuído à pobreza, Lavinas (2010) argumenta que, como não há um consenso científico a respeito da definição de pobreza, qualquer definição do que é ser pobre tem certo grau de arbitrariedade, pois distintos critérios podem ser adotados. Nesse sentido, qualquer escolha reflete um ato redutor que geralmente remete a “requerimentos básicos não satisfeitos”. Há implícita, na definição de pobreza, a discussão acerca do que são as “necessidades básicas” — que atualmente estão atreladas ao grau de possibilidade do consumo mediado pelo dinheiro.2 Ela argumenta ainda que muito se avançou nos índices de pobreza que buscam dar conta de sua multidimensionalidade para ir além das questões estritas relativas à renda. Porém, ainda é a falta de renda que
“prevalece como medida de destituição, catalogação de quem é pobre e identificação dos elegíveis a quem se reconhece o direito de se tornarem beneficiários de programas de enfrentamento da pobreza. Sim, porque contar os pobres significa buscar uma forma de regular a pobreza por meio da identificação dessa população, classificação, habilitação, assistência e monitoramento” (LAVINAS, 2010, p. 129, grifos nossos).
Diante disso, Sciré (2011) é uma referência precoce, em âmbito nacional, na utilização ainda hoje pouco usual do conceito de “financeirização da pobreza”. A autora tem como mérito principal fornecer uma perspectiva analítica produtiva para a apreensão da sociabilidade em contextos de baixa renda. Sciré utiliza o conceito para analisar o modo como o consumo atual da população com baixo rendimento é crescentemente mediado pelo acesso ao crédito. A expressão “financeirização da pobreza” foi adotada ao identificar, em suas pesquisas de campo, que é cada vez mais necessário o endividamento para os pobres terem acesso a mercadorias. Sciré reconhece que o processo não é novo no país, porém é o aumento da importância do crediário no consumo cotidiano que o seu conceito pretende enfatizar.
Apesar de reconhecermos a importância desse modo de conceitualizar a expressão, como a sociabilidade e as práticas de consumo da população com baixo rendimento não são os aspectos centrais da pesquisa aqui apresentada, foi necessário recorrer a outros autores que fornecessem elementos para um conceito capaz de abarcar mais detidamente a atuação do Estado nesse processo.
O conceito de financeirização da pobreza vem aos poucos ganhando popularidade, porém percebe-se que muitos ainda o utilizam sem apresentarem uma definição precisa (FAMA, 2018; KYUNG-SUP, 2016; 2019). Mader (2015) e Schwittay (2014) destoam desse conjunto e, por isso, fornecem as bases do modo como o conceito será aqui utilizado. Mader contribui ao enfatizar que a definição da pobreza é importante porque está diretamente relacionada com as tentativas de solução desse problema. O autor propõe que se perceba que atualmente a pobreza é conceitualizada hegemonicamente como a incapacidade de gerir satisfatoriamente as finanças pessoais. Desse modo, a pobreza torna-se uma relação exclusivamente financeira, gerando a busca de novas instituições — também financeiras — para administrar o “pobre”. A pobreza se transforma, assim, na base de novas e crescentes relações de crédito que se tornam cada vez mais abrangentes na vida social. A financeirização da pobreza não é vista, portanto, somente como a necessidade do crediário para o consumo, mas como um processo de definição da pobreza como um problema unicamente das finanças.
Schwittay vai ao encontro de Mader ao defender que para a microfinança3 ser vista como uma solução para a pobreza foi necessária uma transformação da pobreza em um problema eminentemente financeiro. Desse modo, a autora chama de “financeirização da pobreza” as fundações conceituais da microfinança baseadas numa definição da pobreza exclusivamente de acordo com a quantidade de dinheiro que os indivíduos têm acesso. Schwittay também percebe que se a pobreza é um problema exclusivamente relativo à renda, deve ser solucionada financeiramente. Dessa forma, a financeirização da pobreza está articulada com a bancarização da população de baixa renda que tem como objetivo a inclusão desses sujeitos nas instituições financeiras.4 Uma das consequências centrais dessa operação seria transformar a população pobre em um sujeito financeirizado definido pela falta de dinheiro e pela incapacidade de gerir os recursos para melhorar suas rendas.
Vê-se que, em Mader e Schwittay, a pobreza e o pobre são tomados como categorias êmicas do capitalismo financeirizado, ou seja, adotam o modo hegemônico como o capital e os gestores estatais definem essas categorias para, concomitantemente, criticar esse modo de acepção. Em comum, percebem que há uma tendência crescente que essa definição seja feita a partir de um termo ainda aqui pouco problematizado: o de financeirização.
Sabe-se que a literatura sobre financeirização tem um crescimento exponencial no momento pós-crise de 2007-8 (MADER; MERTENS; VAN DER ZWAN, 2020). Após essa popularização, uma das definições mais recorrentes na literatura sobre financeirização é a fornecida por Epstein (2005). O autor identifica uma polissemia do termo e busca uma síntese com a seguinte definição: “financeirização significa o papel crescente dos interesses financeiros, mercados financeiros, atores financeiros e instituições financeiras no funcionamento das economias nacionais e internacional5” (EPSTEIN, 2005, p. 3). Ele defende, ainda, que a financeirização não pode ser compreendida isoladamente e faz parte de uma tríade, que se consolida no final da década de 1970, cujos outros dois termos são o neoliberalismo e a globalização. Nesse sentido, a financeirização seria um processo central da atual economia mundial e teria efeitos geralmente prejudiciais para um número significativo de pessoas.
Por sua abrangência, essa definição é o ponto de partida para muitas das análises sobre a financeirização, porém, como apontam Mader (2015) e Lavinas (2017) é necessário um desenvolvimento do proposto por Epstein, para dar conta de lacunas que surgem em sua caracterização bastante generalista. Com esse intuito, Mader (2015) propõe uma definição concisa e sincrética que contempla os objetivos dessa análise. A financeirização seria a “expansão recente e contínua da fronteira de acumulação financeira, com base nas mudanças na política, economia, relações sociais e cultura” (MADER, 2015, p. 27). Ele busca, assim, enfatizar que a financeirização é um processo multidimensional que escapa às tentativas analíticas unidimensionais. Para o autor, a financeirização é um elemento central na atual variação do capitalismo que o reconfigura para beneficiar a classe rentista. Seu diagnóstico aponta para uma expansão das finanças articulada com uma mudança na apropriação dos excedentes que beneficiam o setor financeiro e promovem a generalização da cultura da finança e do risco financeiro. Com essa definição em mente, é possível retornar para o conceito de financeirização da pobreza, percebendo que, ao definir a pobreza como um problema financeiro, esse processo a transforma em uma das fronteiras, a ser constantemente expandida, de acumulação baseada nas finanças.
Em síntese, o conceito de financeirização da pobreza é utilizado aqui para analisar o processo de transformação da pobreza em um problema exclusivamente financeiro que requer soluções financeiras. Isto é, a expressão “financeirização da pobreza” é utilizada para identificar a maneira como o segundo termo da expressão (pobreza) tem seu significado crescentemente definido pelo primeiro (financeirização). É, assim, um processo constituído por dois momentos concomitantes, interdependentes e inseparáveis. Primeiro, a pobreza é reduzida a uma condição relativa à posse ou não de dinheiro. Segundo, se a pobreza é definida como um problema exclusivamente ou majoritariamente financeiro, a solução do problema se torna também financeira.6 Com isso em mente, apresentaremos, a seguir, um breve panorama desse processo nos governos anteriores a Temer.
Em 2012, Rousseff fez um discurso acerca do crédito popular que ilustra bem o modo como tanto seu governo quanto o de Lula da Silva se empenharam com a expansão das finanças:
Construímos um mercado de consumo de massa, com a retirada de milhões de pessoas da miséria e da pobreza, o que permitiu a criação de um círculo virtuoso em nossa economia. Nosso sistema financeiro, com políticas de inclusão bancária, crédito popular e financiamento ao desenvolvimento, passou também a incorporar milhões de homens e mulheres. Os bancos públicos foram fortalecidos. A ampliação do crédito na economia brasileira permitiu seu crescimento de um patamar de menos de 25% do PIB em 2002 para cerca de 50% do PIB atualmente (ITAMARATY, 2012).
O período dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), entre 2003 e 2016, foi o período de consolidação de um processo de expansão do acesso e utilização das finanças pelos pobres que tem seu início na década de 1970 (MIGUEL, 2015; SCIRÉ, 2011). O Estado foi central nesse processo (JARDIM, 2016; LAVINAS, 2017; FEIL; SLIVNIK, 2018) e atuou reiteradamente articulando a gestão da pobreza com a “inclusão financeira”. Essa foi uma estratégia importante, já no início do governo Lula da Silva, para tranquilizar o mercado financeiro de que sua gestão não seria uma ruptura abrupta com o governo anterior (JARDIM, 2009). Desse modo, a manutenção da agenda liberalizante de Fernando Henrique Cardoso foi articulada com programas políticos de busca de ascensão social dos mais pobres — com destaque para a democratização do crédito e para o aumento dos gastos com proteção social (SALLUM JR.; GOULART, 2016).
Uma das iniciativas mais importantes desse processo foi a implementação, em 2003, do Programa Bolsa Família, que influenciou fortemente na expansão das bancarização — dado que esse era um requisito para ter acesso à transferência de renda. Ademais, houve, também nesse ano, a introdução do crédito consignado com um aumento considerável no número de famílias com acesso ao crédito. Dois anos depois, foi criado o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado, que desempenhou um importante papel na articulação entre microempreendedorismo e microcrédito. Essas iniciativas ilustram um conjunto maior de esforços articulados em uma “política nacional de microcrédito” que tinha como intuito a promoção das finanças como meio de inserção social (MIGUEL, 2015).
O contexto econômico que deu suporte a essa expansão das finanças como iniciativa governamental foi chamado por Carvalho (2018) de “milagrinho” por se caracterizar como um período de relativa prosperidade. Durante esse período, a economia brasileira foi impulsionada, por um lado, pela alta das commodities e, por outro, pelas políticas redistributivas e pelos investimentos públicos em infraestrutura física e social. De acordo com a autora, o milagrinho teve três pilares: distribuição de renda na base da pirâmide (com programas como o Bolsa Família e a valorização do salário mínimo), maiores investimentos públicos em infraestrutura física e social (como no caso do PAC) e maior acesso ao crédito (com aumento dos prazos e relativo controle das taxas de juros).
Vemos, assim, que o governo Lula da Silva criou um ambiente de negócios favorável ao desenvolvimento de mercados financeiros. Vemos, também, que houve uma adesão crescente à ideia de que os problemas sociais e individuais deveriam ser resolvidos sempre da mesma forma: “mais mercado”. É possível defender que ocorreu um processo de valorização ideológica do mercado que o colocou como solução eficaz a problemas de distintas ordens (LEBARON, 2012). De modo mais preciso, podemos argumentar que, no Brasil, a valorização ideológica das finanças acarretou naquilo que Grun (2013) chama de um “modo de dominação com componente financeiro” que se caracteriza pela capacidade dos instrumentos financeiros contemporâneos se apresentarem como naturais ao operacionalizarem o controle social. Isso se efetiva com uma crescente hegemonia do campo financeiro que consegue impor sua lógica aos outros setores econômicos, sociais e políticos. Algo que não é uma particularidade nacional e acompanha um movimento global, iniciado na década de 1980, que tem transformado as relações sociais e econômicas com uma concentração de poder nos acionistas e investidores (JARDIM, 2009).
A respeito do governo Rousseff, vê-se que foram adotadas mudanças no modelo econômico que retiraram o investimento público como principal motor do crescimento nacional. Nesse processo, o estímulo ao mercado interno também perdeu centralidade e ganhou força a ideia de um desenvolvimento industrial voltado para exportações (CARVALHO, 2018). Com relação à expansão das finanças para os pobres, há uma crescente bancarização e utilização do crediário, porém, há uma relativa constância nos índices de endividamento, em relação ao governo Lula da Silva. Ainda assim, é possível constatar uma mudança qualitativa. Uma parcela significativa do crediário da época se deveu à expansão do crédito imobiliário para a população de baixo rendimento. Segundo Carvalho (2018), caso fossem retirados os dados relativos aos crediários para participação no Minha Casa, Minha Vida, o endividamento teria diminuído no período. A expansão do crédito imobiliário como política pública teria sido assim o principal motor da financeirização da pobreza nesse período.
Em termos mais específicos, é possível argumentar que a financeirização da pobreza fez parte de um programa de governo associado a interesses do mercado, sendo uma política paradigmática da conciliação de classes arquitetada sob o lulismo. Esse é um dos componentes importantes da nossa “financeirização de esquerda” (GRUN, 2009) que contribuiu com a autonomização do campo financeiro e que foi impulsionada não apenas pelas elites financeiras, mas também por atores “de esquerda”, como o sindicalismo próximo ao Partido dos Trabalhadores. Além disso, é um processo que esteve fortemente atrelado às políticas sociais dos governos do PT, em especial aos programas de transferência de renda.
Como defende Jardim (2009; 2016), durante esse período, instituiu-se um mercado financeiro composto por agentes oriundos do sindicalismo que buscavam aliar o lucro com alguma concepção “domesticadora” ou “moralizante” de justiça social. A junção do social — de narrativas coletivistas e de inclusão — com o financeiro foi possível por conta de um intenso diálogo institucionalizado entre mercado/finanças e Estado, protagonizado pelo Estado. Ademais, os fundos de pensão e seus gestores provenientes do sindicalismo desempenharam papeis importantes nesse processo, com a expansão da financeirização e o financiamento de projetos importantes das iniciativas pública e privada.
Esse cenário, descrito até agora de modo sucinto, será complementado ao expormos, nas duas seções seguintes, o modo como o governo Temer dá continuidade a esse processo e quais as suas particularidades.
Comecemos a análise pelas definições estatais de pobreza nesse período. O Brasil adota diferentes critérios no corte de renda para identificar o público-alvo dos seus programas de combate à pobreza. Durante o governo Michel Temer dois dos programas principais de erradicação da pobreza — herdados das gestões anteriores — buscavam esse combate através da transferência de renda: o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família. O primeiro tinha como critério de inclusão que os seus beneficiários tivessem uma renda familiar per capita abaixo de um quarto do salário mínimo. Já o segundo dividia seus beneficiários entre os que estavam na condição de “extrema pobreza” com renda per capita até R$ 89,00 mensais e aqueles na “pobreza” com renda até R$ 178,00.
Vê-se que o percebido por Lavinas (2010), quando analisou o governo Lula da Silva, ainda se mantinha: a tendência era focalizar na renda monetária proveniente do trabalho. Com isso, há alguns vieses, como a negligência de rendas monetárias indiretas (subsídios ao transporte, por exemplo) e não monetárias (educação gratuita, por exemplo). De qualquer modo, percebe-se que o governo Temer, pelo menos em seus principais programas de erradicação à pobreza, utilizou uma definição de pobreza igualando-a a um problema financeiro — veremos adiante que suas “soluções” para o problema são consonantes com essa definição.
Passemos agora a um quadro geral dessa condição. Através dos índices mais comuns relativos à renda per capita e à desigualdade, percebe-se que 2015, um ano antes de Temer assumir a presidência, foi um marco na ruptura da tendência de diminuição da pobreza e desigualdade que o Brasil vivia desde o começo do século XX. Barbosa, Souza e Soares (2020) apresentam uma síntese dos dados PNAD Contínua, que seguiremos brevemente para fazer um balanço do período entre 2012 e 2018.
Vê-se que, até 2014, a renda domiciliar per capita apresentou crescimentos, porém, no ano seguinte, ela teve uma queda de 3,4%. Os dois primeiros anos do governo Temer seguem com queda, mantendo uma renda média de R$ 1335,00, e o seu último ano de governo, 2018, teve um aumento para R$ 1388,00 — mantendo-se ainda inferior ao registrado em 2014 (R$ 1392,00). Há, portanto, um empobrecimento geral da população brasileira, porém isso não atingiu da mesma forma os diferentes setores da população. Esse crescimento da desigualdade pode ser apreendido pelo Coeficiente de Gini, que revela uma tendência de queda até 2015, seguida de altas sucessivas até 2018. Verifica-se um crescimento da desigualdade com saltos relevantes em 2016 e 2018. Em 2016, o índice era de 0,537, porém, o último ano de Temer foi marcado pelo maior nível de desigualdade da série: 0,545.
É preciso atentar, portanto, que quando as noções de “crise”, “recessão” e “estagnação” são empregadas para esse momento não se percebe algo que as taxas de crescimento do PIB não revelam: os distintos padrões de crescimento de renda nos estratos econômicos do país. Barbosa, Souza e Soares (2020) identificaram que, entre 2015 e 2018, há um crescimento em favor dos mais ricos, com uma queda na renda real da população mais pobre. As taxas de crescimento do PIB tampouco evidenciam que, para os 5% mais ricos, 2016 já é um ano de recuperação econômica, sendo 2018 um ano de crescimento para a metade mais rica da população. Em sentido contrário, a recessão para os que compõem a base do rendimento segue até 2018: os 10% mais pobres ainda perderam rendimento no último ano do governo Temer.
Os autores revelam, por fim, que a análise pelas linhas de pobreza utilizadas nos programas estatais — as duas linhas de elegibilidade do Bolsa Família (R$89,00 e R$179,00 mensais per capita) e a linha de um quarto do salário mínimo do Benefício de Prestação Continuada — apontam um crescimento na taxa de pobreza entre 2014 e 2017 e depois uma estabilização. Em síntese, a piora na desigualdade é concomitante com a piora nos índices de pobreza, o que significa que um ciclo pró-rico se desdobra em uma imposição de privações (BARBOSA; SOUZA; SOARES, 2020). Esse é um cenário que não foi mitigado pelos programas de transferência de renda, pois o governo não aumentou a cobertura e o valor do benefício para atuar como uma contratendência nesse ciclo.
Para entender uma pobreza que é definida a partir da renda monetária proveniente do trabalho e como o rendimento do trabalho é um dos fatores intervenientes centrais da renda, é preciso verificarmos alguns outros índices importantes do período. A série histórica da taxa de desocupação realizada pelo IBGE (2020b) revela que 2016 é o primeiro ano desde 2012 a ultrapassar o índice de 10% de desocupados. Durante todo o governo Temer, a taxa se manteve acima de 11,6%, com um pico (13,7%) no primeiro trimestre de 2017. Naquele ano, a série teve sua maior média anual: 12,7%. O que se percebe é que, ao contrário do apregoado por muitos defensores, a Reforma Trabalhista7 não significou uma queda na taxa de desocupação. Em 2018, os efeitos da Reforma já poderiam ser identificados, não na diminuição dos desocupados, mas no número recorde de 25,4% de trabalhadores informais na população economicamente ativa. É preciso atentar, ainda, que esse avanço no desemprego, desalento e informalidade, afetou particularmente os mais pobres, que foram os que mais perderam seus postos de trabalho (BARBOSA, 2019).
Por fim, é importante ressaltar que a pobreza no Brasil tem fortes determinantes de sexo e raça. Estatísticas do IBGE (2019) revelam que, em 2018, o rendimento médio das mulheres ocupadas entre 25 e 49 anos (R$2.050,00) equivalia a 79,5% do recebido pelos homens (R$2.579,00). As mulheres recebiam menos por hora trabalhada (R$13,00) do que os homens (R$14,20). Concomitantemente, os índices de rendimento médio de pessoas ocupadas brancas (R$2.796,00) era 73,9% superior dos pretos ou pardos (R$1.608,00). Sabe-se, ainda, que as mulheres pretas ou pardas recebiam apenas 44,4% do rendimento médio dos homens brancos. Verifica-se que as mulheres brancas recebiam, em média, mais que as mulheres pretas ou pardas e mais que homens pretos ou pardos: com razões, respectivas, de 58,6% e 74,1% (IBGE, 2018).
Ainda mais revelador, para os nossos propósitos, são os dados que indicam que adotando as linhas de pobreza do Banco Mundial, as taxas de pobreza entre brancos e pretos ou pardos eram igualmente assimétricas:
considerando a linha de US$ 5,50 diários, a taxa de pobreza das pessoas brancas era 15,4%, e 32,9% entre as pretas ou pardas. Considerando a linha de US$ 1,90 diários, a diferença também foi expressiva: enquanto 3,6% das pessoas brancas tinham rendimentos inferiores a esse valor, 8,8% das pessoas pretas ou pardas situavam-se abaixo desse patamar (IBGE, 2018, p. 5).
Considerando a linha de US$5,50, as mulheres pretas ou pardas compunham o maior contingente com 27,2 milhões de pessoas. Comprovando, assim, a correlação entre desigualdade de renda, de raça e de sexo no Brasil.
Acompanhemos agora os dados divulgados, em 2018, pelo Banco Central em seu “Relatório de Cidadania Financeira” para compreender o acesso dos pobres aos serviços financeiros durante o governo Temer. Os dados analisados são relativos ao triênio 2015-2017.
Sobre o acesso aos serviços financeiros, o que se percebe, em primeiro lugar, é que a taxa de bancarização dos brasileiros é alta: 86,5% daqueles acima dos 15 anos tinham conta bancária. Em 2017, 140 milhões de pessoas tinham algum relacionamento bancário. Foi constatado também que a utilização dos serviços bancários é feita majoritariamente a partir de pontos físicos, porém vinha crescendo o acesso remoto. É preciso atentar, entretanto, que ser correntista de um banco não implica em um uso intensivo de seus serviços, como fica explícito no fato de que dos “72,3% que se declararam bancarizados, apenas 48% disseram receber seu salário em conta bancária” (BANCO, 2018b, p. 65).
Ainda sobre esse tema, identificou-se que “o número de mulheres bancarizadas (86,4%) era levemente superior ao dos homens (85,9%)” (BANCO, 2018b, p. 69). No Nordeste, há a maior diferença entre os sexos: as mulheres têm 3 p.p. a mais que os homens. O próprio relatório atribui essa diferença a uma maior proporção de mulheres inscritas em programas de transferência de renda, o que corrobora com a tese de que o Estado vem desempenhando um importante papel, através de suas políticas sociais, na promoção da bancarização (LAVINAS, 2017) — argumento a ser desenvolvido na seção seguinte. Além disso, esses dados comprovam a manutenção de um cenário já identificado por Miguel (2015) de articulação da noção de “feminização da pobreza” — entendida como o empobrecimento das famílias chefiadas por mulheres — e a promoção das relações financeiras das mulheres como possível saída dessa condição.
Ainda de acordo com o relatório do Banco Central, o produto de crédito mais usado pelos brasileiros, tanto para homens quanto para mulheres, era o cartão de crédito nas modalidades à vista e parcelado lojista. Em 2017, 44% da população adulta fez operações de crédito. Além disso, em quantidade de tomadores, o rotativo de crédito e o cheque especial também estavam entre as modalidades mais utilizadas, apesar de serem modalidades com as taxas de juros mais altas.
Destaquemos agora os dados relativos à faixa de renda que inclui as definições governamentais da pobreza. Acerca do uso do cartão de crédito, há um uso relativamente pequeno: “do total da população com renda até 1 salário mínimo, 11% têm operações de crédito” (BANCO, 2018b, p. 14). Já o índice de bancarizados era de (61,7%), inferior à média para todos os estratos de renda.8
Sobre o endividamento percebe-se um padrão destoante da faixa de renda até um salário mínimo em relação às outras. “Apesar da queda geral nesse período, a faixa até 1 salário mínimo foi a única que apresentou aumento do comprometimento de renda9 na comparação entre 2016 e 2017, de 23,6% para 25,2%” (BANCO, 2018b, p. 34). Assim como no comprometimento de renda, a inadimplência10 também só aumentou na faixa até 1 salário mínimo que passou a ter o maior percentual de inadimplência (6,4%). Foi constatado que o crédito rotativo era o maior responsável por essa condição (20,8%). Já com relação à desalavancagem financeira,11 “a primeira faixa (até 1 salário mínimo) apresentou queda significativa, de 74,3% para 51,8%, indicando desalavancagem financeira” (BANCO, 2018b, p. 34). O Relatório levanta como hipóteses explicativas a queda na renda e o aumento no desemprego que teriam levado a uma diminuição da contratação de crédito. Porém, ainda assim, dentre os inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais, foi identificado um crescimento de 8% no número de clientes de instituições financeiras. Foi identificado também, dessa vez no Relatório de Economia Bancária (BANCO, 2018c), que 1,4 milhão de beneficiários do Bolsa Família contraíram empréstimos, em média, dez vezes maiores que seus rendimentos mensais, com uma taxa de inadimplência três vezes maior que a dos não beneficiados.
Em síntese, esses dados revelam que no período Temer, a população pobre teve, por um lado, aumento no comprometimento de renda e na inadimplência e, por outro, diminuição do endividamento. Isso indica uma menor capacidade e disponibilidade de contrair crédito, porém uma maior dificuldade de honrar o pagamento dos créditos contraídos.
Há no governo Temer um processo de fortalecimento da transformação da concepção de qual a função a ser desempenhada pelo Estado em sua relação com a pobreza. Está claro que, também nesse período, o paradigma do Estado provedor de serviços é gradualmente absorvido e negado pelo paradigma do Estado facilitador do pagamento de serviços privados (ROLNIK, 2015). Porém, se nos anos dos governos do Partido dos Trabalhadores isso era feito de modo “paradoxal”, pois associava promoção da financeirização com um aumento das políticas sociais (LAVINAS, 2017), estamos agora, à primeira vista, em um cenário mais comum internacionalmente: a financeirização da pobreza se dá de modo concomitante com uma política que visa a redução dos gastos estatais. A política de austeridade aponta para um momento do governo Temer em que ele busca a superação — ainda que com efeitos deletérios para os pobres — do “paradoxo brasileiro”, no qual a financeirização foi impulsionada como efeito colateral das políticas sociais, pois condicionava o acesso a esses serviços à inclusão financeira dos beneficiados (LAVINAS, 2017). Em outros termos, podemos pensar que perdem a centralidade os esforços de “moralização” ou “domestificação” do mercado, que, como exposto anteriormente, eram centrais nos governos petistas (JARDIM, 2009).12
Acerca de sua política de austeridade, deve-se rememorar que Temer lidou com um cenário econômico que se agravava desde 2014/2015, quando ainda era vice-presidente. Após o processo de impeachment, Henrique Meirelles, então Ministro da Fazenda, comandou uma agenda que buscou solucionar os índices econômicos negativos através de reformas liberalizantes, uma política monetária mais conservadora, uma política fiscal contracionista e uma política cambial mais flexível. Como apontam Oreiro e de Paula (2019), as duas características centrais da política econômica de Temer/Meirelles foram: a adoção da tese da “contração fiscal expansionista” capitaneada pela redução dos gastos correntes e a busca de um protagonismo da iniciativa privada no processo econômico com sucessivas políticas de desregulamentação do mercado.
Nesse sentido, foi paradigmática a implantação da Emenda Constitucional de número 95, que instituiu um regime fiscal que controlou os gastos e investimentos públicos por vinte anos. O “teto de gastos” limitou os gastos anuais do governo federal aos do ano anterior acrescido da inflação, diminuindo a capacidade do Estado de investir e de fornecer serviços públicos, ao constitucionalizar a prática de austeridade no país (DWECK et al, 2018). A política de austeridade impulsionada por Temer baseou-se na premissa de que a redução nos gastos públicos geraria um ambiente de confiança para os empresários que se sentem compelidos a investir. Apesar da ausência de comprovação empírica e da existência de estudos que apontam o exato oposto (BLYTH, 2018), a defesa do “teto de gastos” esteve baseada na ideia de uma “austeridade expansionista”.
Já se verifica que uma política de austeridade baseada no corte de gastos estatais gera uma diminuição na qualidade e quantidade de serviços públicos. No caso do governo Temer, isso já foi verificado em distintas esferas dos gastos sociais, como educação, saúde, cultura, meio ambiente, moradia, etc. (ROSSI; DWECK; OLIVEIRA, 2018). Além disso, em 2018, a previsão de Dweck, Silveira e Rossi (2018) era de que, mantendo os limites do teto, gastos como Bolsa Família, salários e custeio de infraestruturas teriam que encolher drasticamente nas próximas décadas. Não à toa, o governo Temer estudava várias propostas de redução dos beneficiários de seus programas de transferência de renda.13
Um dos efeitos mais importantes dessa piora nos serviços públicos é, em médio e longo prazo, a transferência dessa responsabilidade para o setor privado que passa a comercializar produtos antes fora da esfera da troca mercantil. Desse modo, a contração fiscal e o protagonismo da iniciativa privada se coadunam, porém, como já vimos nos dados acerca do crescimento econômico, da pobreza e da desigualdade, não com os efeitos expansionistas e distributivos que o governo Temer prometia. A política de austeridade pode servir de incentivo para determinadas parcelas da elite produtiva e, principalmente, rentista, porém sem um efeito geral de crescimento que contribua para a erradicação da pobreza e da desigualdade.
É preciso ressaltar, entretanto, que Temer não promoveu a financeirização apenas através de um desmonte das redes de proteção social, ou seja, como defendemos acima, através da busca da superação do “paradoxo brasileiro” (LAVINAS, 2017). Há uma segunda característica a ser analisada que é identificada ao percebermos que o governo Temer foi um promotor direto da financeirização da pobreza com sua concepção de “cidadania financeira” e como credor, através das instituições públicas do Sistema Nacional de Fomento,14 da população beneficiária de programas de transferência de renda. Isso aponta, portanto, para uma continuidade do “paradoxo” na articulação entre políticas sociais e financeirização, sendo os programas de transferência de renda uma garantia estatal para a inclusão crescente dos pobres em relações financeiras.
Voltemos ao Relatório de Cidadania Financeira que nos interessa não apenas pelos índices que apresenta, mas também por expor uma concepção de cidadão articulada às finanças.
O Relatório de Cidadania Financeira de 2018 é o primeiro e único até hoje publicado. Ele substitui o Relatório de Inclusão Financeira que teve três edições: 2010, 2011 e 2015. A concepção de “inclusão financeira” era formulada inicialmente como a promoção do “acesso a serviços e produtos financeiros adequados às necessidades da população” (BANCO, 2010, p. 17). No ano seguinte, essa definição sintética adiciona a ideia de “contribuição à qualidade de vida” (BANCO, 2010, p. 8) para acentuar a concepção de que o crediário é um meio de melhora na vida dos agentes econômicos e não um fim em si mesmo — algo que já estava enunciado no primeiro Relatório, porém não na definição de “inclusão financeira”. Por fim, o último Relatório de Inclusão Financeira apresenta uma definição que inclui, além do acesso, o “uso” para argumentar que não basta a disponibilidade, mas também a extensão e profundidade do uso dos serviços e produtos financeiros (BANCO, 2015).
Em termos mais substanciais, desde o primeiro Relatório (BANCO, 2010, p. 7), já se vê a defesa de que a inclusão financeira seria “essencial para a redução de desigualdades sociais e para maior desenvolvimento econômico”. Porém, há uma mudança fundamental após o Relatório de 2010. Apenas na primeira publicação se falava que a “inclusão financeira” faria parte de um “círculo virtuoso”, no qual “a adequada expansão da inclusão financeira viabiliza o acesso à economia formal” (BANCO, 2010, p. 7). Não existe nenhuma menção à economia formal nos Relatórios posteriores, algo condizente com a crescente aposta no empreendedorismo individual e na informalidade como possibilidades de superação da pobreza.
Percebe-se ainda que a substituição da palavra “inclusão” para a palavra “cidadania” se dá apenas em 2018. O intuito era enfatizar o projeto mais abrangente de “cidadania financeira”, um termo utilizado pelo banco desde 2013, que é definido como “o exercício de direitos e deveres que permite ao cidadão gerenciar bem seus recursos financeiros” (BANCO, 2018a, p. 7). Para o Banco Central, ser um “cidadão financeiro” pleno incluía quatro condições: inclusão financeira, educação financeira, proteção ao consumidor de serviços financeiros e participação.
Essa concepção de cidadania era justificada pela defesa de que a financeirização seria um importante catalisador do desenvolvimento sustentável. Seria uma ação que aumentaria a possibilidade de “erradicação da pobreza; fome zero e agricultura sustentável; saúde e bem-estar; igualdade de gênero; trabalho digno e crescimento econômico; indústria, inovação e infraestrutura; e educação das desigualdades” (BANCO, 2018b, p. 9). Essa defesa está baseada no argumento de que o crédito aumentaria a produtividade das famílias e ajudaria a “absorver melhor os choques financeiros”, dado que possibilitaria acumular ativos, gerenciar serviços médicos e cuidar da educação. O argumento principal, portanto, é o de que: “ao contribuir para melhorar a vida das pessoas mais pobres, a inclusão financeira contribui para a redução das desigualdades e para a construção de uma sociedade mais inclusiva” (BANCO, 2018, p. 10).
É bastante significativo que o crediário seja defendido como um aumento da possibilidade de produção e de ganhos financeiros com a criação e ampliação de empresas. O resultado positivo da dívida é propagado sem uma problematização daquilo que, como vimos acima, os dados do próprio Banco Central demonstram: o aumento do comprometimento de renda e da inadimplência entre os mais pobres. Essa negligência é ainda mais reveladora se levarmos em consideração que esses dados são publicados em meio à crise econômica enfrentada no governo Temer. Esse período, como também já foi exposto, ficou demarcado por uma perda de renda real da população pobre concomitante com um aumento na desigualdade. É possível constatar que, pelo menos no curto prazo do governo Temer, a promoção da cidadania financeira não foi suficiente para promover a melhora da “vida das pessoas mais pobres”.
Essa configuração não é uma particularidade nacional. Mader (2015) argumenta que as microfinanças ganham força socialmente com a colaboração de narrativas que ressignificam o que é a dívida, tornando-a paulatinamente aceitável como condição de possibilidade de sujeitos empreendedores. Na promoção da “cidadania financeira”, estamos diante de narrativas de “empoderamento pelas finanças” e, portanto, da pobreza como problema financeiro.15 Os problemas sociais aparecem como problemas individuais de acesso às finanças, deixando de lado questões políticas e de organização econômica. Dessa maneira, as políticas sociais baseadas no crediário assumem uma superioridade moral, pois promoveriam o engajamento dos sujeitos com a superação da condição de pobreza. Há, portanto, um ganho político-social na microfinança que se junta ao ganho econômico.
Além da concepção de “cidadania financeira”, se faz necessário analisar os incentivos efetivos do governo Temer ao crediário popular. Faremos isso a partir de um caso exemplar. Em 2017, Temer criou o Plano Progredir, definido como “um plano de ações para gerar emprego e renda e promover a autonomia das pessoas inscritas no Cadastro Único (CadÚnico), ou seja, brasileiros com renda per capita de até meio salário mínimo” (MINISTÉRIO, 2018, p. 9). O Plano envolvia uma série de ações visando a inserção dos mais pobres no mercado de trabalho e no mercado financeiro, como, por exemplo, cursos do Pronatec e oficinas de educação financeira. Isso seria necessário porque os beneficiários dos programas de transferência de renda não conseguiam “oportunidades de emancipação econômica e social”. O Plano pretendia, ainda, ter um olhar privilegiado para as mulheres que contavam com programas de educação financeira exclusivos para elas.
Uma de suas cinco dimensões principais era a inclusão produtiva que tinha como uma de suas principais políticas o “microcrédito produtivo orientado”. O funcionamento do programa de microcrédito se dava da seguinte maneira: o interessado em participar no programa deveria se cadastrar no site do Plano e fazer o seu pedido de empréstimo, que era concedido depois de uma avaliação pelas 17 instituições financeiras parceiras que participavam do Sistema Nacional de Fomento. Dentre elas, é importante ressaltar que estavam os grandes representantes públicos do setor: o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste e a Caixa Econômica Federal. A avaliação dessas instituições definia o valor a ser concedido e a qual juros.
O Plano se enquadrou, assim, no Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO), sendo um avanço importante na promoção do mercado financeiro, tanto, a partir do direcionamento de recursos estatais para o microcrédito quanto na diminuição dos riscos para as instituições financeiras e no acompanhamento daquilo produzido pelos beneficiados (MINISTÉRIO, 2017).
O objetivo declarado do Plano Progredir era “reduzir a pobreza e as desigualdades sociais por meio da inclusão produtiva de famílias em situação de vulnerabilidade social” (MINISTÉRIO, 2018, p. 9). Dentre as ações do Plano Progredir, é importante destacar a concessão de microcrédito que liberou R$ 3,3 bilhões, em 2017, e R$4 bilhões em 2018 (GOVERNO, 2018). Segundo o Vis Data (2021), no primeiro mês de vigência do Plano, setembro de 2017, apenas 2.018 pessoas estavam inscritas. Em dezembro de 2018, esse número havia crescido para 53.466 pessoas. Além disso, dentre as medidas institucionais adotadas, destaca-se um rearranjo regulatório no Conselho Monetário Nacional, com a Resolução CMN nº 4.574/2017, que buscava “criar incentivo regulatório aos bancos na concessão de microcrédito ao público inscrito no CadÚnico” (MINISTÉRIO, 2018, p. 18).
Percebemos, portanto, que novamente estamos diante de uma iniciativa do governo Temer que indica a promoção da financeirização da pobreza como política estatal. Aqui fica claro o segundo momento da financeirização da pobreza, aquele relativo à necessidade de soluções financeiras para um problema de falta de finanças. O Plano, ao priorizar a concessão de microcrédito para beneficiários do CadÚnico, definiu seu público-alvo a partir da falta de renda e propôs como solução para a situação um empreendedorismo possibilitado por produtos financeiros. O Estado funcionava, então, como um promotor da bancarização de sujeitos que se encontravam antes à margem do sistema financeiro e, também, como um criador de garantias para a contração de créditos, já que eles estavam atrelados a programas estatais de transferência de renda. Vemos, portanto, que o Estado é um ator central na promoção do empreendedorismo como uma “ideologia do capitalismo atual” (LEITE; MELO, 2008) que busca a adesão das classes baixas e pretende legitimar atividades especulativas antes condenadas.
Percebe-se também que o Plano não atingiu um impacto significativo nem uma população abrangente durante seus primeiros anos, porém ele é bastante relevante como índice de um projeto de “erradicação da pobreza” por meio da “inclusão produtiva” que se iguala à “inclusão financeira” por meio do microcrédito. Essa é uma modalidade de crediário que disponibiliza pequenas quantidades de dívidas sem muitas exigências de garantia para populações-alvo que tradicionalmente estiveram excluídas do sistema bancário (GONZÁLEZ, 2020, p. 302). O microcrédito é ainda uma modalidade relativamente pequena dentre as que compõem o Sistema Financeiro Nacional, porém é relevante que a iniciativa pública seja um ator central no setor: quer seja como credor direto por meio de bancos estatais ou como fornecedor de crédito subsidiado para outras instituições privadas realizarem o empréstimo (MOURÃO, 2019). Esse protagonismo estatal na regulação e promoção do microcrédito é uma particularidade do caso brasileiro. Ao contrário do que se vê no cenário global, o setor de microcrédito brasileiro depende fortemente da administração e dos subsídios do governo federal e da regulação do Banco Central (FEIL; SLIVNIK, 2018).
Vemos claramente que o Estado facilitador de pagamentos de que fala Rolnik (2015) tem uma outra faceta que não visa somente o incentivo do consumo de serviços privados, mas também a transferência da obrigação de inserção no mercado de trabalho para o indivíduo. Uma parte da literatura nacional (SCIRÉ, 2011; RODRIGUEZ, 2020) tem prestado mais atenção ao endividamento para fins imediatos do consumo do que para a inserção no mercado de trabalho, algo que com a precarização do trabalho e a proliferação do trabalho informal tem ganhado cada vez mais importância. Se já era um achado preocupante identificar que os pobres estavam se endividando para consumir não apenas bens supostamente supérfluos, mas bens de necessidade básica (RODRIGUEZ, 2020), é preciso atentar que o endividamento torna-se necessário inclusive para que o pobre trabalhe. O projeto do governo Temer ao implementar o Plano Progredir baseava-se justamente no incentivo de que o indivíduo, na figura do microempreendedor, se visse obrigado a assumir a responsabilidade de criar as condições para a sua subsistência material através do endividamento.
Tanto Fama (2018) quanto Kyung-Sup (2016) identificaram algo semelhante e defendem que o atual capitalismo financeirizado promove a financeirização da pobreza articulando-a com duas transformações centrais na relação dos trabalhadores com suas rendas: a promoção de uma concepção do sujeito empreendedor e a precarização do trabalho. O governo Temer compõe esse cenário ao incentivar o microcrédito para trabalhadores que não conseguem uma inserção adequada no mercado de trabalho. Como esses trabalhadores são os inscritos no CadÚnico, no caso do Plano Progredir, vemos o Estado promovendo a inserção daqueles com baixo rendimento em circuitos mais amplos de acumulação.
Estamos diante, portanto, de um Estado que desempenha uma série de esforços para promover a financeirização da pobreza. Lavinas (2020) sistematiza bem esse processo ao propor quatro iniciativas estatais relacionadas com a financeirização. A primeira é a concessão de renda através de transferência monetária permitindo que os beneficiários se tornem endividados em potencial. Diminui-se, desse modo, a necessidade de garantias para a concessão do crediário. A segunda iniciativa é a bancarização forçada desses sujeitos que recebem as transferências de renda por meio de depósitos ou em contas individuais, gerando uma série de dados importantes para a gestão dessa população e que são comumente compartilhados com o setor financeiro. A terceira é a promoção da educação financeira que visa regular a relação entre os endividados e o setor financeiro. Por fim, o Estado estimula a criação de passivos, pois o endividamento familiar constitui um recurso essencial para a financeirização.
Ao analisar os efeitos da crise de 2007-8 na Europa, Dardot e Laval (2016) chegam à conclusão de que ela não havia enfraquecido as políticas neoliberais,16 mas sim conduzido a seu “brutal fortalecimento”. As políticas de austeridade e a defesa do sistema financeiro demonstraram que o Estado “era parte interessada nas novas formas de sujeição do assalariado ao endividamento de massa que caracteriza o funcionamento do capitalismo contemporâneo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 31). Após alguns anos, vemos algo semelhante ocorrer no Brasil. A crise, não solucionada e impulsionada pela equipe econômica de Temer, serviu, assim, como um modo de governo e uma possibilidade de controle e de regulação social. Esse é um processo antidemocrático que Saad-Filho (2020) propõe chamar de “neoliberalismo autoritário”. Algo que evidentemente não ocorre sem contradições, pois, como vimos no caso específico aqui analisado, a financeirização da pobreza esteve ao mesmo tempo (1) articulada com tentativas de redução de gastos sociais e (2) atrelada aos programas federais de transferência de renda. O governo Temer esteve, portanto, concomitantemente superando e dando continuidade ao “paradoxo brasileiro”. O comum, em ambos os casos, é um esforço de gestão da pobreza através da promoção da financeirização. A gestão da população se tornou, também no caso nacional, cada vez mais um esforço de maximizar a “utilidade da população” (DARDOT; LAVAL, 2016), garantindo recursos a serem utilizados pelo capitalismo financeirizado.
Sabemos, por fim, que a questão de pesquisa aqui adotada implicou em uma abstração que deixa intencionalmente uma lacuna central a ser preenchida posteriormente: a participação de outros atores na promoção desse processo nesse período. A literatura especializada já identificou distintas formas de cooperação entre o Estado e o mercado para impulsionar a financeirização (VAN DER ZWAN, 2014), sendo necessário ainda que sejam realizados estudos que identifiquem a forma como isso se dá no governo Temer. É preciso enfatizar, portanto, que não se defende aqui que o Estado seja o único ator a impulsionar a financeirização da pobreza, o que seria obviamente um contrassenso, pois há ganhos econômicos e políticos explícitos para os atores do mercado financeiro e há a adesão de outros atores, como a crescente proliferação de iniciativas comunitárias de “empreendedorismo social” por meio das finanças.
Esse olhar mais restrito, entretanto, permitiu-nos a compreensão de processos relevantes do período aqui analisado. Vimos como o governo Temer ocorreu em um período de aumento da desigualdade de renda com um empobrecimento maior dos que já tinham uma menor renda. Diante desse cenário, identificamos um Estado que impulsionou a financeirização por tentativas de cortes nas políticas sociais e por ativamente promover a inclusão financeira das populações empobrecidas. Percebeu-se, ainda, que ocorreu uma articulação perversa entre aumento da pobreza, precarização do trabalho, promoção do microcrédito e diminuição do fornecimento de serviços públicos de qualidade.
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A nota escrita por Rossi e Melo em 2017 considerava apenas os anos de 2015 e 2016. Considerando 2014 o ano base, a queda acumulada do PIB era de 7% e o aumento do desemprego beirava os 90%, chegando a 11,9% da população.↩︎
Esse é um exemplo evidente do dito por Lebaron (2012, p. 6) acerca de “uma ordem simbólica mercantil” que permite “ao mercado existir tanto como referência mental, quanto como espaço de ação para os agentes sociais”.↩︎
A microfinança é definida como “a venda de serviços financeiros padronizados em pequenas quantidades em alto volume” (SCHWITTAY, 2014, p. 8), geralmente em ciclos de duração menor do que um ano.↩︎
Sabe-se que a bancarização não é um problema em si, pois significa aqui simplesmente o acesso popular aos bancos (COSTA, 2015) e esse é um pré-requisito para muitas das relações econômicas contemporâneas. Ainda assim, esse é um processo importante para entender a financeirização da pobreza porque faz parte da delimitação da pobreza em termos financeiros. De modo mais preciso, o acesso ao crédito formal tem como pressuposto operacional o estabelecimento de relações bancárias. Assim, verifica-se que a posse de contas bancárias da população mais pobre vem sendo promovida como um requisito importante na expansão das microfinanças, tanto para regular o acesso a produtos financeiros quanto para a produção de dados sobre esse uso (LAVINAS, 2020).↩︎
Essa e todas as outras citações provenientes de línguas estrangeiras são apresentadas em traduções próprias.↩︎
Vê-se nesse processo algo demonstrado por Lebaron (2012) e por Blyth (2018): as definições na ciência econômica hegemônica estão fortemente relacionadas com as regras e as instituições construídas para fazer funcionar a economia. O que significa que o procedimento de definição está articulado com comportamentos e expectativas das instituições e agentes econômicos.↩︎
Aprovada em 2017 depois de um forte empenho político de Temer, a Reforma teria como argumento governamental principal sua capacidade de combate ao desemprego por promover uma flexibilização da legislação trabalhista brasileira. Dentre suas modificações principais está a instituição do trabalhador intermitente e do autônomo exclusivo, ambas contribuindo com um maior grau de informalidade no mercado de trabalho brasileiro.↩︎
É preciso ponderar, entretanto, que, como constatado por Rodriguez (2020) em uma pesquisa qualitativa com mulheres endividadas, uma parcela das pessoas na faixa de menor renda fazem uso de empréstimos por meio de agiotas. Apesar dos juros maiores e dos maiores riscos, essa é uma opção justificada por conta da maior facilidade em conseguir o crédito. Isso significa que não é possível, a partir dos dados coletados pelo Banco Central, identificar exatamente o grau de inserção da pobreza em sistemas financeiros irregulares ou ilegais.↩︎
O comprometimento de renda é definido pela instituição do seguinte modo: “razão entre o serviço da dívida mensal e a renda disponível” (BANCO, 2018b, p. 144).↩︎
A inadimplência “é o resultado da divisão do somatório das operações com parcelas vencidas acima de noventa dias pelo somatório de todas as operações de crédito” (BANCO, 2018b, p. 146).↩︎
A desalavancagem é medida pela relação entre o total das dívidas e a renda anual do tomador de crédito.↩︎
A ruptura do governo Temer com uma política econômica que impõe demandas sociais ao mercado financeiro, como foi o intuito dos governos petistas, foi identificado precocemente por Jardim (2016) no caso específico dos fundos de pensão. Projetos de lei encampados pelo governo impuseram uma série de limitações à participação de sindicalistas nos fundos de pensão, um ator central no processo nacional de financeirização.↩︎
Apesar disso, talvez pela centralidade do consumo familiar na economia brasileira, o número de beneficiários do principal programa brasileiro de transferência de renda, o Bolsa Família, não teve uma redução nesse período (VIS, 2021).↩︎
O Sistema Nacional de Fomento engloba instituições públicas e privadas que teriam por objetivo promover o desenvolvimento nacional por meio do financiamento a setores estratégicos.↩︎
Essas narrativas muitas vezes estão baseadas em um argumento falsamente realista de que essa é a única maneira possível de superação da pobreza. Schwittay (2014) defende, entretanto, que a literatura acadêmica acerca dos efeitos das microfinanças na resolução da pobreza continua inconclusiva. Mader (2015) vai além e sugere que as evidências apontam para o fato de que não são os pobres que estão se beneficiando da financeirização da pobreza e, sim, os ricos. Ele defende que a microfinança faz com que a pobreza se torne mais facilmente lucrativa transformando-a em um problema financeiro. O que apontaria para a ineficácia de uma erradicação da pobreza pela financeirização e para o seu caráter de política de benefício econômico dos atores do sistema financeiro.↩︎
Os autores definem o neoliberalismo como uma racionalidade política e governamental que tem como característica central a criação de subjetividades concorrenciais. Esse é um processo mundial e sistêmico que vem transformando as relações sociais e o funcionamento das empresas e dos Estados.↩︎
Resumo:
O artigo aborda a financeirização da
pobreza durante o governo Michel Temer. O objetivo principal é
identificar o modo como o Estado contribuiu para o processo de
enquadramento da pobreza como um problema exclusivamente financeiro que
requer soluções prioritariamente financeiras. Foram analisados dados
econômicos e sociais, assim como iniciativas de “inclusão financeira”
promovidas pelo Estado. O argumento tem um caráter descritivo e
estabelece algumas comparações com os governos anteriores que revelam
dois movimentos complementares de continuidades e rupturas: (1) uma
promoção indireta da financeirização articulada com as políticas de
austeridade e (2) uma promoção ativa por meio da bancarização dos
beneficiários dos programas sociais e dos programas de microfinanças
voltados aos pobres.
Palavras-chave:
Financeirização da Pobreza;
Pobreza; Financeirização; Michel Temer.
Abstract:
The article considers the
financialization of poverty during the Michel Temer administration. The
main objective is to identify how the State contributed to the process
of framing poverty as an exclusively financial problem that requires
primarily financial solutions. Economic and social data were analyzed,
as well as “financial inclusion” initiatives promoted by the State. The
argument has a descriptive character and seeks to establish some
comparisons with previous governments that reveal continuities and
ruptures. It was noticed two complementary movements: an indirect
promotion of financialization articulated with austerity policies and an
active promotion with beneficiaries of social programs’ bankarization
and microfinance programs aimed at the poor.
Keywords:
Financialization of Poverty; Poverty;
Financialization; Michel Temer.
Recebido para publicação em 19/08/2021
Aceito em 28/09/2021
ACESSO ABERTO
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