Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 3, nov. 2021/fev. 2022
DOI: 10.36517/rcs.2021.3.d02
ISSN: 2318-4620
LGBTfobias no contexto escolar de Crateús e Sertão dos Inhamuns:
relatos de violência, resistência e vivência LGBT+
Marcela Bruna de Oliveira
Instituto Federal do Ceará — Tianguá, Brasil
marcela.bruna0001@gmail.com
Lia Pinheiro Barbosa
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
lia.barbosa@uece.br
O presente artigo apresenta e analisa situações de LGBTfobia sofridas, desde a infância até a adolescência, em contextos institucionais de educação ou em situações experienciadas e vividas socialmente, que apontam expressivas marcas para a construção individual das pessoas que as experienciaram. No escrito, apresentamos a síntese de pesquisa desenvolvida que analisa as situações de LGBTfobia e seus desdobramentos nas vivências de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros em Crateús, no Sertão dos Inhamuns do Ceará.1
Desenvolvido entre os anos de 2017 e 2018, o trabalho buscou, a partir de entrevistas com pessoas da LGBT+ da região, conhecer suas experiências nos espaços educacionais e analisar os relatos de violência LGBTfóbica trazidos por elas. Os resultados da pesquisa nos permitiram evidenciar como a Educação e os espaços de ensino têm sido local de reprodução e produção de normas, aqui compreendidas como esquema que tem base em diferentes dispositivos, como salienta Foucault (2017), a fim de reproduzir práticas, usos e saberes relacionados a comportamento, relações afetivas e sexuais, compreensão de que a anatomia de nossos corpos é determinante em relação a gênero, estética e, até mesmo, para os currículos de ensino que terminam por legitimar situações de marginalização para os estudantes LGBT+.
Desse modo, pretendeu-se investigar como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e mais têm suas subjetividades afetadas pelos processos de marginalização, exclusão e perseguição encontrados nos relatos — que compreendemos, a partir de pesquisas e estudos, como parte da realidade coletiva das pessoas LGBT+ — e como acontecem as resistências necessárias diante desse cotidiano. Analisa-se, ainda, como os recortes de gênero, classe e raça também compõem essa marginalização, sendo observados como agravantes para a vítima nas situações de violência presentes nos relatos.
Em uma breve retrospectiva, recordamos que, em 1990, o registro de mortes de pessoas LGBT+ no Brasil era de 164 pessoas. Trinta e um anos depois, no ano passado (2020), o Grupo Gay da Bahia (GGB) registrou 237 mortes em razão de LGBTfobia no país. No topo das 20 cidades mais violentas está Fortaleza, enquanto o Ceará é o estado da região Nordeste que mais registrou mortes violentas de pessoas LGBT+ em 2020.2 Em relação ao ano de 2017, quando os registros alcançaram 445 mortes — o maior número registrado até então — o número total registrado apresenta uma queda significativa.
No entanto, a organização do “Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil — 2020” alerta que a queda no número de mortes (homicídios, suicídios e latrocínios) não registrou o que aconteceu na realidade para as pessoas LGBT+ brasileiras no ano de 2020.
Segundo o Grupo Gay da Bahia,3 que junto com a Acontece Arte e Política LGBTI+4 organizam o Observatório, a redução dos números não indica necessariamente uma queda real em relação às situações de violência LGBTfóbicas; a pesquisa aponta que o número mais baixo de registros está diretamente ligado à subnotificação dos casos, o que dificulta o acompanhamento do número real de vítimas identificadas em buscas, registros e pesquisas. Ressaltam, ainda, que a falta de investimentos em políticas públicas na área é um fator que se agrava, sobretudo a partir de 2018, quando campanhas de denúncia ou programas de proteção às vítimas passaram a ser desmontados. Estes são fatores que contribuem para a aparente melhora nas estatísticas em relação à LGBTfobia no país.
Mesmo com os altos registros de violência contra as pessoas LGBT+, tornando o Brasil o país que mais mata pessoas trans no mundo por 12 anos consecutivos,5 até 13 de junho de 2019 — data em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decide sobre a criminalização da homofobia e da transfobia6 — o Congresso Nacional e o Código Penal brasileiros eram omissos em relação às violências LGBTfóbicas.
Desde a data citada, os crimes reconhecidos como LGBTfobia têm sido enquadrados nos termos da lei nº 7.716/89, que criminaliza o racismo, compreendendo, assim, sua dimensão social e reconhecendo que a conduta e a discriminação em relação às pessoas LGBT+ no Brasil foi tratada com omissão legislativa até o presente debate. A lei continua a guardar redação oficial até a data desta publicação.
A omissão do país em tratar do gênero e da sexualidade, e das manifestações de violência LGBTfóbica e de gênero, aponta para a necessária reflexão sobre o aumento e as expressividades das situações de ódio contra pessoas LGBT+ e contra as mulheres, tornando o Brasil o país que mais mata pessoas LGBT+ no mundo7 e o quinto em colocação de ocorrências de violência contra a mulher.8
Compreende-se, pois, que esses números revelam uma realidade violenta que tem feito parte das vivências de pessoas LGBT+ brasileiras por meio de processos sociais e culturais alicerçados na imposição de papéis instituídos por recortes de gênero e também de sexualidade, evidenciando uma realidade misógina, machista e sexista para a população brasileira.
Infere-se que a construção e a expressão das relações e identidades de gênero consideradas e tratadas como exceções à norma passam pela produção e reprodução de certos discursos e técnicas que têm abrangência estrutural e são aplicados a grupos diferentes, em que há pessoas em distintos contextos de classe, etnia, regionalidade, nacionalidade, etc. Aponta-se, então, uma necessária investigação no sentido de compreender como sentimentos e vivências de negação, repulsa, aceitação, ódio, violência e pertencimento fazem parte da construção das identidades individual e coletiva de pessoas LGBT+.
No caso do trabalho ora apresentado, analisamos alguns trechos dos relatos colhidos a fim de demonstrar como se marcam a violência moral, o ódio e, muitas vezes, a violência física em diferentes espaços sociais, como o familiar e o escolar. Apontamos, desse modo, os discursos que constituem a LGBTfobia como uma violência estrutural e que a têm tornado efetiva nas experiências individuais das pessoas LGBT+. Observamos, ainda, a escola e a educação como reprodutoras de recortes binários e heteronormativos — ressaltados e evidenciados, em seus diversos processos, tomando como natural que ser homem ou mulher são as únicas possibilidades no que diz respeito à vivência do gênero, assim como todas as relações afetivas e sexuais serem validadas apenas nas relações entre gêneros opostos, objetivando assim relações heterossexuais e marginalizando outras formas de vivenciar a sexualidade. Assim, a heteronormatividade se consolida como norma social, assim como a cisgeneridade — relacionados ao gênero e à sexualidade em seus diferentes espaços, discursos e relações —, e a educação tem atendido a esses interesses em diferentes momentos e com recortes de classe, raça e região.
Para tanto, faz-se uma breve abordagem a respeito das categorias do gênero e da sexualidade e dos discursos analisados, sobretudo nos estudos de Preciado (2002), Butler (2003), Andrade (2012), Louro (1997) e Foucault (2017). Outrossim, apresentamos um exame das diferentes experiências envolvendo as categorias observadas em diferentes épocas, espaços e perspectivas educacionais, bem como em experiências individuais de pessoas LGBT+.
Deste modo, analisaremos os relatos de três pessoas que se reconhecem como LGBT+, residentes de municípios da região do Sertão dos Inhamuns, no Ceará, e que frequentaram a rede de ensino público local entre os anos de 2000 a 2017. Nos trechos apresentados a seguir, seus nomes reais são protegidos com nomes-fantasia pelo fato de que as experiências relatadas não chegaram a ser resolvidas ou denunciadas formalmente.
A seguir, teremos acesso aos relatos de Mika, jovem lésbica, de etnia negra, residente da zona rural de um dos municípios do Sertão dos Inhamuns e que considera sua expressão de gênero marcadamente masculina, preferindo ser tratado no masculino a maior parte das vezes. Também conheceremos experiências narradas por Fábio, jovem negro, gay e que reside na zona urbana; e teremos acesso ao que foi relatado por Beatriz Vitória, jovem mulher trans, negra, residente da zona urbana.
Os estudos feministas e nas áreas da sexualidade e do gênero apontam que a sexualidade, mais do que uma construção alicerçada apenas na inibição, castração ou proibição, tem em sua base mecanismos, discursos e técnicas utilizados no sentido de sua produção. Preciado (2002) utiliza a expressão “tecnologias sexuais” e analisa que delas fazem parte
[...] diferentes elementos do sistema de sexo/gênero denominados “homem”, “mulher”, “homossexual”, “heterossexual”, “transexual”, assim como suas práticas e identidades sexuais são máquinas, produtos, instrumentos, aparatos, truques, próteses, redes, aplicativos, programas, conexões, fluxos de energia e de leis de circulação, fronteiras, constrangimentos, desenhos, lógicas, equipes, formatos, acidentes, detritos, mecanismos, usos, desvios... (PRECIADO, 2002, p. 19).
Compreende-se, então, que a leitura exigida para uma análise das construções dessas categorias passa pela compreensão de que as mesmas são reproduzidas em escala estrutural na sociedade por mecanismos variados. Resulta que, nesses processos, essas operações terminam por ser internalizadas — em nossas relações mais subjetivas e individuais, mas também em caráter coletivo, constituindo, assim, nossos corpos, práticas, usos e saberes sobre ele — como categorias naturais ou biológicas.
Segundo Butler (2003) e Haraway (1995), é nesse tipo de processo que mecanismos, cujas bases podem ser consideradas apoios na reprodução e produção de padrões, se constituem como “tecnologias sociais”. Assim, um processo de nível estrutural ocorrerá, necessariamente, nas relações cotidianas entre os indivíduos.
É nesse sentido que Foucault (2017) reflete que um “esquema de transformação” tão amplo deve estar apoiado em “relações precisas e tênues que lhe servissem, não de aplicação e consequência, mas de suporte e ponto de fixação” (FOUCAULT, 2017, p. 109). O autor chama de “duplo condicionamento” quando, por exemplo, são feitas campanhas de controle ou motivação de natalidade e essas têm efeitos diretos nas relações interpessoais e econômicas entre as pessoas em sociedade.
Assim, Butler (2003) explica que existe um “contrato heterocentrado” baseado no binarismo de gênero, que produz performatividades normativas masculinas e femininas e que este é inserido estruturalmente na sociedade como “verdade biológica”. A autora utiliza, como exemplo da construção das performances masculina e feminina, aquelas relacionadas à performance drag, em que a montagem e representação fazem do gênero “uma espécie de imitação persistente, que passa como real” (BUTLER, 2003, p. 8).
Compreende-se, ainda, conforme Preciado dialoga no Manifesto contrassexual (2002), que esse processo produz uma idealidade das identidades masculinas e femininas que as fixa em objetivos cujo percurso é marcado por operações que produzem esse ideal dentro do binarismo feminino e masculino em relação a estética, comportamento, economia, etc. Como consequência, qualquer “aproximação imperfeita” ou comportamento afastado das normas prescritas no processo é compreendido como “exceção perversa”.
Nesta direção, isto é, de uma “exceção perversa”, a homossexualidade, a bissexualidade, assexualidade, pansexualidade ou mesmo a transgeneridade, etc. são categorizadas como pecados, doenças, comportamentos desviantes, entre outros termos atribuídos. Essas atribuições evidenciam que o processo de construção da naturalização das identidades hétero-cis embasa e legitima a violência, a invisibilidade, a perseguição e o ódio aos quais estão expostas todas as pessoas que não se enquadram no padrão construído a partir desses processos.
Compreende-se o caráter individual e as características políticas, sociais, de classe e raça que constituem os processos de formação da identidade de cada pessoa. Interessa, então, neste artigo, discutir como as pessoas LGBT+ têm suas subjetividades tocadas por este processo que funciona de modo estrutural, por meio dos discursos da educação, da família, da medicina, da biologia, da psicologia, da política, da economia, etc., bem como das necessárias resistências por sobrevivência, direitos e visibilidade.
Preciado (2002) denuncia que a produção das normatividades ligadas à sexualidade e ao gênero fazem parte de um processo que vincula as relações de poder e a construção dos significados e estereótipos relacionados a diversos tipos de identidades e comportamentos. Desse modo, utilizando a análise que o autor faz a partir dos estudos de Haraway (1995), devemos refletir que o conceito de tecnologia é necessário para a definição de humanidade, ressaltando que utilização de instrumentos pelo ser humano, bem como o entendimento do que é tecnologia e de como instrumentos são fabricados e utilizados “serve de suporte às noções aparentemente intocáveis de ‘natureza humana’ e ‘diferença sexual’” (PRECIADO, 2002, p. 119, tradução nossa).
Argumenta-se, então, a necessidade de reiterar que técnica e tecnologia não devem ser, nesta discussão, compreendidas como surgidas para modificar uma natureza dada, mas como instrumentos que se produzem e desenvolvem dentro mesmo deste processo de construção do que se chama de natureza humana. É possível observar, então, que a fixação do padrão hétero-cis se manifesta e reproduz nas relações, no consumo e nas afetividades e comportamentos que são padronizados por um ou outro discurso.
Sugere, ainda, que a sexualização dos corpos femininos e a fixação de padrões de beleza, bem como as relações afetivas amorosas narradas através da história, da mídia e da publicidade sempre são heterossexuais, assim como as identidades das pessoas públicas ou famosas sempre serem presumivelmente hétero-cis, do nascimento à morte. Estes são fatores que devem ser considerados relevantes, pois pretendem a invisibilização e o consequente apagamento da existência e das possibilidades de ser e saber sobre si enquadradas como fora da norma.
Diante do exposto, compreendemos a importância de refletir sobre como as pessoas LGBT+ têm se encontrado e reconhecido de forma coletiva, ativista e militante. A este respeito, Pedrosa (2009) aponta que, no Brasil, no final da década de 1970, o movimento LGBT+ inicia sua articulação a partir de determinadas percepções e aspirações como coletivo, organizado pela sobrevivência, respeito e direitos, pois, como o autor afirma, nossas necessidades de melhor qualidade de vida e lutas contra as violências acabam por evocar uma noção do que o autor chama de “identidades compartilhadas, enquanto categorias políticas” (PEDROSA, 2009, p. 69).
Pedrosa traz, em seu artigo intitulado “Movimento LGBTT e suas práticas educativas no âmbito da sexualidade e da luta contra a AIDS” (PEDROSA, 2009), que o fator patológico tem grande relevância tanto na construção das subjetividades dessas pessoas como para sua elaboração e demanda como movimento político. Revela que, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, as articulações do movimento estavam relacionadas à chegada do vírus HIV (Human Immunodeficiency Virus) ao país e como isso afetou principalmente as rotinas e vidas de homens gays, travestis e pessoas trans, o que contribuiu como fator de reforço para a estigmatização e o medo em relação às pessoas LGBT+ na sociedade civil.
Ressalta-se ainda a resistência como fator presente para a formação das pessoas LGBT+ como grupo político organizado socialmente, evidenciando suas vivências e práticas de resistência, como lembra Loiola:
De modo que o outro resultado de tudo isso são os movimentos comunitários de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais organizados na luta pelos direitos humanos no combate aos preconceitos a eles dirigidos. Um grande instrumento neste percurso tem sido a visibilidade dessas categorias (LOIOLA, 2009, p. 55).
Butler reflete a respeito da produção e reprodução de estigmas e estereótipos que agem sobre a construção das identidades dos sujeitos e de como está ligada a uma série de objetivos que são, na realidade, operações políticas. Explica que os processos de poder, sobretudo o poder jurídico, são responsáveis pela produção do “sujeito perante a lei”. No entanto, neste processo, a produção deve ser ocultada a fim de legitimar a regulação da própria lei “como premissa básica natural” (BUTLER, 2003, p. 19).
Compreende-se, deste modo, a relevância de uma abordagem sobre a participação dos discursos e técnicas voltadas para a produção de sujeitos hétero-cis e das consequências das mesmas para as vivências e construção das subjetividades das pessoas LGBT+.
Assim, parte-se do pressuposto de que ao criar o “sujeito perante a lei”, o poder jurídico e toda a estrutura que funciona junto com ele são também necessariamente responsáveis pelas operações que tornam os espaços institucionais formais — como a família, a escola, o trabalho, a saúde, etc. — de difícil acesso ou permanência, ou mesmo inacessíveis para as pessoas LGBT+.
De acordo com o exposto, pode-se dizer que a imposição do padrão cis-hétero cria os sujeitos por ela almejados, ao tempo que justifica e fomenta discursos que negam e marginalizam os que estão fora da margem dessa norma. A criação de estereótipos que recaem sobre as diferentes vivências LGBT+ se concentra na banalização das feminilidades (misoginia) e na sentença dos comportamentos que se afastam da norma como fora da lei, doentios, pecaminosos, perversos, etc.
Assim, nas exposições e análises sobre situações de violência lesbofóbica, homofóbica e transfóbica, importa-nos observar como os recortes de gênero, classe e raça também fazem parte dos processos que expõem à marginalização e ao silenciamento das pessoas que sofrem essas violências dentro dos espaços formais de educação.
Inicialmente foi feita uma reflexão a respeito das relações entre mulheres, assim, segundo Preciado (2002), ressalta-se a relevância do surgimento da mão como órgão sexual e todos os esforços dos discursos social, educacional e médico na tentativa de barrar as práticas de masturbação. O autor observa, ainda, que a masturbação denuncia a falta de “autonomia dos órgãos genitais como órgãos sexuais” e a necessidade de compreender a totalidade do corpo como centro de prazer das pessoas, e não apenas os designados órgãos sexuais.
O autor nos faz lembrar que as técnicas utilizadas para a construção da sexualidade e do gênero são variadas e incluem tanto a interdição como a liberação de práticas, comportamentos e expressividades dos desejos e prazeres. Assim, relaciona que, na contemporaneidade, a produção em massa de objetos de consumo de plástico, o retorno dos corpos com implantes e próteses da Segunda Guerra Mundial e o “surgimento” de lésbicas masculinizadas e sua inserção nos ambientes das fábricas podem estar ligados e fazer parte do que Foucault denunciou como “duplo condicionamento” e que Preciado narra a seguir:
Em meio às casas pré-fabricadas e robôs de cozinha, a butch aparece como um corpo de desenho, tecnicamente simples e que pode ser alcançado, sofisticado e custoso em termos sociais e políticos. Como se tivesse sido submetida à mesma transformação que o capitalismo tecno-patriarcal, o corpo lésbico retrô dos anos cinquenta muda ao ritmo da máquina [...]. Cresceu na fábrica. Triplamente oprimida, a causa de sua classe, de seu gênero e de seu desejo sexual, a butch está mais próxima da objetivação das máquinas do que da suposta subjetividade dos seres humanos. É proletária e guerrilheira. Não tem medo de pôr seu corpo em jogo. Conhece bem o trabalho manual (PRECIADO, 2002, p. 165, tradução nossa).
Para além da análise sobre a construção e descoberta dessas mulheres, no artigo “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”, Rich (1993) ressalta que o cotidiano lésbico é atravessado pela opressão de ser mulher e, como tal, ser um corpo inserido como “propriedade emocional e sexual dos homens”, revelando, assim, questões relevantes que podem ser refletidas nas relações entre mulheres. Observa que a relação lésbica inclui “tanto a ruptura de um tabu quanto a rejeição de um modo compulsório de vida. É também um ataque direto e indireto ao direito masculino de ter acesso às mulheres.” (RICH, 1993, p. 36).
Desse modo, evoca-se o aporte teórico citado até aqui a fim de desenvolver discussões que são necessárias para analisar o relato de Mika, presente em nossa pesquisa realizada no contexto educacional do Sertão dos Inhamuns, no Ceará, sobre LGBTfobia e a construção das identidades LGBT+.
Mika, designado como do sexo feminino ao nascer, identifica-se como lésbica e negro; decidiu ser tratado no masculino por compreender que, na maior parte do tempo, sua expressão de gênero é assimilada pelos outros como masculina e comenta:
É confuso! Você chega assim no meio da rua — que eu já passo por isso todo dia mesmo — e se apresenta como Mika; até que alguém solta um “ela” e as pessoas ficam “ela?”, procurando saber. Aí eu fico assim meio constrangido pela forma que as pessoas ficam na curiosidade. Eu prefiro “ele”. Porque aí já tá na forma (Mika).
Em relação a uma situação de violência dentro de espaço de ensino, narra uma situação de assédio e bullying lesbofóbico que sofreu por um monitor-professor dentro de uma escola rural de educação contextualizada. Conta que o professor o encontrou sozinho, limpando o refeitório e lhe disse que qualquer dia o pegaria e o “transformaria em mulher”.
Para análise desta situação de violência, retomamos a análise feita por Rich (1993) acerca do estudo de Gough (1975), que denuncia, como uma das formas de poder sobre as mulheres, a negação de sua sexualidade. Aponta-se, ainda, para a ameaça de “estupro corretivo”, crime frequentemente justificado por desconhecidos (mas também conhecidos e até mesmo parentes das vítimas), como uma alusão de “mostrar como é estar com um homem” ou “ensinar a ser mulher”. A situação expõe a concepção de que a vida sexual da mulher, ou de pessoas com vagina, existe necessariamente em função da complementação que, obrigatoriamente, só poderia ser encontrada no homem cis e no seu pênis.
Ainda sobre esta situação, ressalta-se que essa é uma prática contemporaneamente promovida pelos avanços das mensagens do que Rich (1993) chama de “Nova Direita”, e que, segundo a autora, compreende que “a autonomia e a igualdade das mulheres ameaçam a família, a religião e o Estado” (RICH, 1993, p. 19). Encontrando-se, geralmente, por meio de fóruns de debate em ambientes online, utilizados para sua comunicação, esse tipo de grupo é assumidamente neonazista, LGBTfóbico, antifeminista e outros.9
A situação vivida por Mika expressa ódio e violência, resultados da misoginia a que estão expostas mulheres lésbicas e outras pessoas com vagina. Na situação relatada, Mika procurou a ajuda da mãe, que trabalhava na cozinha da escola e que, na ocasião, por medo da expulsão de seu filho e até uma possível demissão, pediu-lhe que não contasse nada a ninguém.
Outro aspecto presente no relato diz respeito a como a classe social, ligada ao gênero e à sexualidade, representa um fator relevante a mais em situações como a relatada.
Economicamente em desvantagem, as mulheres, sejam garçonetes, sejam professoras titulares toleram o assédio sexual para se manter em seus empregos e aprendem a se comportar de uma maneira heterossexual complacente e agradável porque elas descobrem que essa é sua verdadeira qualificação para ter emprego, qualquer que seja o tipo de emprego (RICH, 1993, p. 29).
Conclui-se, então, que a rotina de violência seguida de silenciamento faz parte do “aprender a se comportar”, o que nesta situação resultou na omissão, por medo de desdobramentos negativos ou por saberem de antemão — também por conta da compreensão, mesmo que de forma inconsciente, desse tipo de norma — que a denúncia não seria escutada, e o filho e ela poderiam vir a ser penalizados por fazerem a denúncia.
A situação de violência praticada por um professor dentro de uma escola aponta que esse tipo de experiência faz parte das representações e relações constituídas e estruturadas em ambientes diversos, utilizando diferentes tipos de poderes que garantem a reprodução das normas, ao mesmo tempo em que invisibilizam e silenciam aquelas pessoas que são por ela mesmas marginalizadas.
Na situação narrada, além das violências sofridas por Mika, que estão alicerçadas nas categorias do gênero e da sexualidade, deve-se ressaltar a relevância do caráter de classe e raça, que garante a omissão por ameaçar o emprego da mãe, que conhece a violência sofrida pelo filho negro, mas se vê oprimida em sua posição de classe dentro do seu local de trabalho.
Em seu depoimento, Mika relata que, depois da situação contada, passou a sofrer perseguição do professor, de outros monitores e também de alunos, até que uma situação culminou com sua expulsão da escola.
[...] ele encarnou em mim. Disso ele começou a se intrigar comigo; tudo que eu fazia era errado. Minhas provas: eu podia era botar certo, que ele botava errado, botava nota baixa. Começou a colocar outros alunos para vigiarem o que eu fazia e não fazia; até que uma colega me viu ficando com minha namorada nos alojamentos e contou para os monitores (Mika).
Em seu relato, Mika ressalta que este foi o pior momento, pois passou a receber outro tipo de tratamento dos outros professores e colegas de escola, que o evitavam nos corredores ou cochichavam quando ele passava. Relata que, nesse período, chorava muito e pensava no que via na televisão sobre outras pessoas homossexuais ou mesmo a história de seu padrinho, que foi morto por espancamento, em Fortaleza, após ser visto com seu namorado.
Além da situação de violência vivida dentro da escola, Mika explica como outras situações cotidianas também são violentas para ele. No dia da entrevista citada, conta que passou por uma revista policial, ressaltando que a situação é comum já que ele é um jovem negro.
Relata que sempre que possível, nessas situações, ele e as outras pessoas presentes apressam-se em lhe identificar como mulher lésbica no intuito de evitar que a revista seja feita por um policial homem, mas que é frequente que escute dos policiais comentários como “pra sociedade é homem, mas na hora da revista é mulher, né?”.
Sobre esta reflexão de Mika, cabe o que reflete Guacira Louro:
Estamos aqui operando a partir de uma perspectiva teórica que entende a representação não como um reflexo ou espelho da realidade, mas como sua constituidora. Nessa perspectiva, não cabe perguntar se uma representação “corresponde” ou não ao “real”, mas, ao invés disso, como as representações produzem sentidos, quais seus efeitos sobre os sujeitos, como elas constroem o “real” (LOURO, 1997, p. 99).
Assim, a experiência de violência sofrida por Mika dentro de uma escola e que culminou com sua expulsão da mesma confirma a prerrogativa de Gough (1975) sobre a restrição da criatividade e da participação de mulheres em áreas de conhecimento e produção, além de evidenciar como as situações de violência em relação a sexualidades lésbica, gay, bissexual e outras tornam difícil a socialização das pessoas LGBT+ e prejudicam diretamente seu desenvolvimento intelectual e emocional.
Já no final de sua entrevista, Mika fala do contexto político da época (início de 2018) e do conservadorismo que tem se mostrado cada vez mais evidente:
As pessoas ainda têm a cabeça muito fechada pra esse assunto LGBT. Um dia desses, sentado no banco da praça, vi duas pessoas com a camisa do candidato Jair Bolsonaro, reconhecidamente homofóbico, racista, machista e outras coisas. Essas pessoas parecem que tão pedindo pra morrer. Cada vez fica mais difícil. E eu não tô nem aí. Foda-se! Pode vim polícia, pode vim qualquer coisa: o peito não é de ferro, mas ele aguenta muita coisa. Aguentou muita coisa, por que não vai aguentar hoje? (Mika).
A respeito da construção de estereótipos homofóbicos, o estudo já citado demonstra sua ligação direta com a construção da figura masculina destemida, altiva e até violenta. Assim, meninos que, desde a primeira infância, não demonstram interesses por carros e bolas, jogos de luta e esportes, passam a sofrer perseguições; primeiro na família e depois nos diferentes ambientes em que são inseridos. Deste modo, Loiola ressalta:
Numa sociedade disfarçadamente tolerante como a nossa, o processo de assumir-se gay torna-se muito complexo, podendo causar profundas sequelas psicológicas e emocionais por toda a vida, haja vista, que as crianças desde muito cedo são ensinadas a se comportarem dentro dos estereótipos de masculinidade e, a inferiorizarem as demais que não se enquadram nessa perspectiva. Seguindo o percurso da vida, vai se cristalizando uma estrutura de saber acerca da sexualidade que torna os indivíduos confusos e frágeis diante da normalidade exigida (LOIOLA, 2009, p. 59).
Sendo assim, os relatos de Fábio, que se identifica como homem cis, gay e negro, narram um processo marcado por incompreensão, isolamento e silenciamento. Ele conta que sua vida escolar inteira foi solitária e que não participava da maior parte das atividades escolares por não se sentir incluído. A este respeito reflete-se sobre o que fala Andrade:
Uma criança pode ser biologicamente do sexo masculino, mas, quando apresenta este comportamento, que convencionamos chamar de feminino, nas brincadeiras e nos gestos, ela passa a ser vítima dos professores, dos gestores, dos funcionários, dos pais e dos alunos que condenam e tentam, a qualquer custo, corrigir essa inversão (ANDRADE, 2012, p. 73).
Fábio relata, ainda, que na adolescência o isolamento se intensificou, pois nesta época começam as relações afetivas e sexuais e ele diz que nem meninos nem meninas se sentiam atraídos por ele. Este isolamento, narrado por Fábio, experienciado em diferentes ambientes dos quais participava, pode ser considerado como resultado de diferentes situações que colocam à margem formas de expressão e comportamentos ligadas ao gênero e à sexualidade. Reflete-se, assim, sobre o que diz Britzman a respeito do silenciamento ou invisibilidade estrutural legada a estes grupos, que funciona, segundo a autora, “como uma espécie de garantia de que o/a estudante irá preferir ser heterossexual” (BRITZMAN, 1996, p. 79-80).
Assim, este silenciamento, inclusive e talvez principalmente, nos ambientes de educação institucionalizada, afeta diretamente a história de vida de pessoas reais, como Fábio, que terminou o ensino médio e não observa expectativas profissionais vindas da área acadêmica, por exemplo, por conta de como se sente em relação aos estudos e às experiências que vivenciou nos espaços educacionais.
Foucault (2017) chama essa vivência social de “mecânica do poder”, a qual, segundo ele, utilizando técnicas, dá às pessoas e suas expressões e comportamentos “uma realidade analítica, visível e permanente”, e que é descrito no trecho a seguir como uma operação que:
Encrava-o nos corpos, introduz-lo nas condutas, torna-o princípio de classificação e de inteligibilidade e o constitui em razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão desses milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação, distribuição regional de cada uma delas. Trata-se, através de sua disseminação, de semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo (FOUCAULT, 2017, p. 49).
Podemos assim observar nos relatos de Fábio, em que as diferentes experiências de aceitação ou exclusão vividas experienciadas pelas pessoas LGBT+ podem ser consideradas a aplicação dessas técnicas, bem como, já o efeito de sua incorporação à subjetividade dos indivíduos.
Fábio relembra sua infância:
Eu sempre fui muito “criança viada” (sic). Colocava pano na cabeça, um cabo de vassoura pra ser o microfone e ficava cantando e dançando banda Calypso sozinho, era minha performance. Minha mãe não se importava, mas eu tentava evitar fazer isso na frente do meu pai porque algumas vezes que ele viu, dizia pra eu dançar feito homem e esse tipo de comentários. (Fábio).
Dada esta narrativa, em que episódios de violência e silenciamento são tão frequentes, é possível admitir que o processo de se assumir para gays — assim como para as demais pessoas que se reconhecem LGBT+ — passa pela necessidade de primeiro se reconhecer e se descobrir, pois, como já dito, uma das técnicas utilizadas a fim de dificultar nossa existência é o apagamento das possibilidades de se existir fora do sistema hétero e cis.
Voltando aos relatos de Mika, podemos analisar a situação, dentro dos argumentos já expostos, a respeito do momento em que se assumiu; a reação de sua mãe, que hoje o apoia incondicionalmente, mas que no primeiro momento agiu inclusive com violência física, e também a forma como ele mesmo interpretava essa experiência no momento da entrevista, ou seja, cerca de seis anos depois de se assumir para a mãe:
O difícil foi só o resto, porque eu já tinha o apoio dela! Mas eu acho que a mãe já sentia desde criança. Não tinha como esconder. Eu usava as roupas do meu irmão. Ela mesma me vestia. Eu que usava as coisas do meu irmão mais novo. Coisa de mãe... Dava pra saber já. Foi só porque ela tava (sic) bêbada e eu cheguei no impacto: “mãe, eu gosto de mulher. Eu sou sapatão”. E aquilo ali assustou ela. Depois ela me disse a reação dela quando sentou e pensou “como é que eu vou conseguir aguentar o que minha filha vai passar junto com ela?” (Mika).
Já Fábio relata que sua sexualidade sempre foi uma questão para a sua família, desde a infância, sendo motivo de curiosidade e situações de violência, que não houve exatamente um momento específico em que se assumiu, justamente porque o tipo de situação narrado a seguir aconteceu muitas vezes ao longo de sua infância e adolescência:
Uma vez tinha várias tias minhas reunidas e também as filhas delas e, de repente, elas começaram a perguntar se eu já tinha ficado com alguma menina, porque é estranho que tu fique (sic) dançando e fazendo essas coisa... eu só tinha uns dez anos quando essa situação aconteceu. E não foi a única vez. Minhas tias são bem religiosas, pra elas eu tinha que ser bem “menininho”, então eu apanhava delas e da minha mãe também, que acaba sendo influenciada por elas. (Fábio).
Vale ressaltar, então, que Butler (2003) reflete sobre os processos de construção da identidade de gênero ou orientação sexual serem perpassados por diferentes características, elementos, momentos e experiências vividas coletiva e individualmente, bem distante de serem ideais normativos a serem alcançados, revelando ainda que esta inversão é diretamente responsável pela exclusão das pessoas que não se adequam ao “normal”.
Para pensar sobre o diferente uso dessas técnicas e aplicações a respeito da produção da sexualidade e como diversas interseções se inscrevem como parte das vivências e experiências que constituem as identidades da figura do homossexual, Foucault (2017) lhe descreve como uma “personagem” desde o século XIX, como sujeito ao qual nenhuma parte de seu ser “escapa à sua sexualidade”, funcionando “como uma natureza singular”.
A “natureza singular”, anunciada “na face e no seu corpo”, dentro da heterocisnormatividade, leva à estigmatização dos desejos e afetos e faz com que suas diferentes manifestações afetivas e sexuais sejam muitas vezes colocadas em falas que as apontam como promiscuidade, pecado e patologização.
Fábio conta, então, que a família de um dos seus namorados, após conhecê-lo pessoalmente, quis obrigar seu namorado a terminar com ele, afirmando que “não aceitariam esse tipo de pessoa”. Fábio reflete que o comentário tem a ver com o fato de ser um gay afeminado, negro e pobre.
Como já lembrado na pesquisa feita por Pedrosa (2009), as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo discurso que denominou popularmente o HIV como a “peste gay”, estigma perpetuado aos dias atuais, quando sobretudo gays afeminados são vítimas de bullying homofóbico desde a infância, situações que passam do assédio moral à violência física e que resultam hoje com que homens gays sejam o segundo maior número em vítimas fatais por violências LGBTfóbicas. Assim, em 2018, o Grupo Gay da Bahia constatou 191 homicídios e suicídios de homens gays, mais de 45% das mortes registradas por motivos LGBTfóbicos no ano anterior.10
O trabalho feito a respeito das situações de LGBTfobia nos meios educacionais aponta que as pessoas bissexuais sofrem com a invisibilização de sua existência, mesmo entre outras pessoas LGBT+. Kenji Yoshino (2000) aponta alguns fatores responsáveis por esse cenário, ressaltando que heterossexuais, bem como homossexuais, utilizam a negação da bissexualidade como uma forma de afirmar sua própria orientação sexual. O autor analisa, ainda, que pelo fato de nossa sociedade utilizar o sexo como uma categoria distintiva, heterossexuais, gays e lésbicas possuem suas relações afetivas e/ou sexuais estritamente ligadas ao sexo, evidenciando que, nesse processo, heterossexuais possuem o privilégio de se encaixarem dentro da norma sexo e gênero, enquanto que para homossexuais estaria mais ligado a uma forma de separação em relação ao gênero oposto.
Outras questões têm sido fatores relevantes para a construção do estigma em relação à bissexualidade, como uma suposta promiscuidade, incapacidade de viver relações monogâmicas ou de não verem gêneros em suas relações. Yoshino (2000) ressalta, por exemplo, que uma pessoa bissexual poderá sentir atração exatamente porque uma pessoa é mulher ou homem, mas que também não se exclui a possibilidade de que algumas pessoas bissexuais se relacionem com outras, independente do gênero. Reflete-se, então, a respeito da sexualidade:
A questão de saber se alguém era “realmente” hetero ou “realmente” gay deixa de reconhecer a natureza da sexualidade, que é fluida, não-fixa, uma narrativa que muda com o tempo, em vez de uma identidade fixa, ainda que complexa. A descoberta erótica da bissexualidade é o fato de ela revelar que a sexualidade é um processo de crescimento, transformação e surpresa, e não um estado de ser conhecível e estável. (GARBER, 1997, p. 73).
Compreende-se, assim, que a imposição de estigmas sobre bissexuais e suas relações despreza o fato de que as pessoas e também seus desejos e modos de se relacionar são diversos. É possível refletir que:
[...] sabemos que esse não-lugar se expressa de diferentes maneiras, é constituído por diferentes desejos: tanto por gostar de pessoas, quanto por gostar de X coisas em mulheres e em Y coisas em homens, ou sei lá mais por que formas. Mas já que demos esse nome pra essa inquietação, a esse não-lugar, e que nos entendemos como bissexuais, apesar da pluralidade de nossas vivências pessoais, é uma possibilidade de encontrarmos conforto, é importante para nós que as pessoas reconheçam que há gente que não se sente heterossexual nem homossexual. (MAURANO; FACCHINI; JESUS, 2010).
Yoshino explicitará, ainda, que o apagamento da existência bissexual é um fator que serve à manutenção de relações monogâmicas nos moldes atuais. Explica que, nesse intuito, heterossexuais evocarão o fator promiscuidade como ameaça às suas relações, enquanto homossexuais, frequentemente, utilizam a monogamia como fator que legitima suas relações afetivo-amorosas ao aproximá-las do padrão de relações heterossexuais, com casais formados por duas pessoas.
A fim de falar das pessoas transgêneras e travestis, ressaltamos a importância de que se explique que são consideradas cisgêneras as pessoas que se identificam e se reconhecem com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Enquanto as pessoas trans são aquelas que fogem da determinação de seu gênero dada pelo sexo biológico, aquelas que não se identificam com o gênero que lhe foi designado ao nascer. Importa ainda ressaltar que a cisnormatividade determina a obrigação de que mulheres serão aquelas nascidas com vaginas e homens aqueles nascidos com pênis.
Loiola fala sobre as travestis (2009):
A caracterização de uma travesti apresenta formas variadas de expressão [...] O seu processo de feminilização geralmente se inicia na adolescência, passa, na maioria das vezes, pela ingestão de hormônios e aplicação de silicone, sendo comum a afirmação de uma identidade feminina pela adoção de um nome, substituindo seu registro masculino (LOIOLA, 2009, p. 64).
Reflete também que as diferentes subjetividades de travestis e pessoas trans denunciam o fato de que vai além de um “dado natural” ser homem ou mulher. A este respeito é relevante a afirmação de Preciado (2002) de que substâncias que são naturalmente manipuladas e utilizadas nos contextos médico-farmacêutico, inclusive hormônios sexuais, precisam ser compreendidas como drogas político-sociais que têm efeitos sobre os corpos de todos os indivíduos — inclusive os cis-hétero — provocando e produzindo alterações em seus comportamentos, libidos e corpos.
Compreende-se, pois, que o processo da construção das diferentes subjetividades de travestis e pessoas trans envolve, muitas vezes, mas não necessariamente, tratamentos hormonais, terapêuticos e cirurgias plásticas, incluindo implantes de silicone, mastectomia e redesignação sexual.
O relato de Beatriz Vitória, mulher trans bissexual, presente em nossa pesquisa realizada sobre situações de LGBTfobia no contexto educacional do Sertão dos Inhamuns, narra experiências que fazem parte do cotidiano de muitas travestis, pessoas não binárias e mulheres e homens trans.
Ela conta que começou sua transição “se montando com as amigas” para ir a festas ou fazer programas em postos de gasolina da região. Diz que, aos quatorze anos, era como se fosse uma transformista; comprava suas roupas, maquiagens e apliques — deixava guardado na casa de uma amiga — e na hora de sair se montava.
Beatriz ressalta, então, que desde a infância estudar foi uma questão problemática:
Na verdade, eu sempre tive uma dificuldade pra estudar, nunca foi fácil pra mim. Não só por ser negra, mas sim por ser uma negra travesti, uma mulher trans. E, além disso, na infância, eu sempre fui uma criança muito gordinha, muito fofinha e isso era um dos alvos. Aquela gay afeminada, muito pintosa e gorda, e ainda preta (Beatriz Vitória).
Relata que na infância suportou muita homofobia, mas que a partir do momento que se compreendeu como mulher, passou a reclamar por seus direitos, exigindo que a escola em que estudava adotasse seu nome. Conta que teve alguns problemas com colegas de aula, mas que os corrigia sempre pois “o outro nome não me representava mais de forma nenhuma” (Beatriz Vitória).
Entretanto, alguns professores recusavam-se a deixar de utilizar o nome que estava presente em seus documentos. Foi quando Beatriz procurou a direção da escola, exigindo que todas as listas de frequência adotassem seu verdadeiro nome; o que não ocorreu. Diz, então, que esse fato foi determinante para que ela desistisse da escola naquele ano e em outras vezes em que tentou retornar, mas recebeu o mesmo tratamento.
Reflete que se sentir expulsa da escola é mais uma forma que a sociedade tem de garantir que nunca vamos ter empregos decentes e que realmente sejam capazes de garantir uma sobrevivência digna para ela e outras mulheres trans e travestis.
Beatriz conta que seus meios de renda são ligados a procedimentos de estética capilar feitos por ela na vizinhança e com as amigas, além de alguns programas. A este respeito, Beatriz Vitória fala:
Essa vibe de prostituição não é meio que uma escolha; é um destino. Ninguém ajuda, a família não dá emprego, o mercado não dá emprego, a escola abandona. A gente se obriga a fazer isso. Não é de ficar com fome, a gente quer um teto. Porque ficar na casa dos pais é aquela humilhação. (Beatriz Vitória).
No Brasil, 90% das travestis e trans — assim como Beatriz Vitória — encontram na prostituição11 o único meio de trabalhar para conseguir seu sustento. Em nosso estudo, ao nos depararmos com o relato de Beatriz Vitória, identificamos que, para a sociedade cis-hétero, quando uma pessoa fica desempregada, ela pode recorrer a amigos ou familiares, mas que geralmente essas pessoas só ajudam as outras pessoas hétero-cis, enquanto para as travestis resta a prostituição como saída.
Em seu relato, Beatriz Vitória descreve uma lista de procedimentos: aplicação de silicone, preenchimentos no rosto e outras partes do corpo com ácido hialurônico; todos feitos de modo clandestino. Relata que sabe que esse mercado é o único que a maioria das travestis pode ter acesso, mas que compreende os riscos.
A este respeito, o trabalho (OLIVEIRA, 2018, p. 64) reflete que a dificuldade de “acesso aos meios para os processos de construção dos corpos de travestis e transgêneros” é uma das formas de controle sobre os corpos de pessoas trans. Atuam dificultando ou negando o acesso às técnicas, conhecimentos e procedimentos de acesso ao corpo almejado por estas pessoas, reafirmando a produção dentro do padrão cis-heteronormativo por meio da aplicação e/ou interdição de controles e técnicas.
Corroborando com esta reflexão, Preciado reitera que os chamados hormônios sexuais são drogas político-sociais sob o controle das instituições heteronormativas do Estado e afirma:
O conjunto dos processos de “redesignação” não são apenas o segundo recorte, a segunda fragmentação do corpo. Esta não é mais violenta que a primeira, é simplesmente mais gore e, sobretudo, mais cara. A interdição da mudança de sexo e gênero, a violência presente nas entranhas dessas operações e seu elevado custo econômico e social, devem ser compreendidos como formas políticas de censura sexual (PRECIADO, 2002, p. 104, tradução nossa).
Beatriz Vitória conta de como o sentimento de inadequação, sentido a partir da forma como as outras pessoas a tratavam, fez parte da sua vida desde a infância, mas que ao longo da vida precisou de olhar com mais cuidado, entendendo sua trajetória de vida:
Eu fui criada pelos meus avós paternos, que já é uma mente mais atrasada ainda. Eu procurei na rua conhecimento, porque se eu tivesse ouvido eles, nunca seria essa pessoa. Então eu tive que sair da casa deles e sentir a independência na pele pra finalmente saber que eu realmente estou no corpo certo, não tem nada anormal. Está tudo certo. (Beatriz Vitória).
Relata que a convivência com a avó mudou um pouco depois que a mesma viu um programa de TV tratar do tema da transgeneridade:
Ela passou a me entender mais quando passou um babado (sic) na TV, acho que foi no Fantástico, que falava das pessoas transgêneras, aí foi que ela foi abrir um pouquinho a mente dela. Porque o bofe (sic) da TV, o médico que tava falando na televisão. Porque as coisas que eu falava pra ela, ela não botava fé (Beatriz Vitória).
Nota-se, então, a relevância dos discursos oficiais para a construção dos saberes que informam sobre as pessoas e suas subjetividades. Sobre isso, Preciado diz:
Se os discursos das ciências naturais e das ciências humanas continuam carregados de retóricas dualistas cartesianas de corpo/espírito, natureza/tecnologia [...] é porque esses binarismos reforçam a estigmatização política de determinados grupos (as mulheres, os não brancos, as queers, os descapacitados, os enfermos, etc.), e permitem lhes impedir sistematicamente o acesso às tecnologias textuais, discursivas, corporais... que os produzem e os objetivam (PRECIADO, 2002, p. 135, tradução nossa).
Beatriz Vitória ainda relata que antes da avó assistir a esse programa de televisão, se chegasse alguma amiga ou amigo em sua casa e perguntasse por “Beatriz”, ela respondia que não existia ninguém ali com esse nome e corrigia a pessoa. Em seu relato, Beatriz conta que naquele momento “Era ela dizendo que eu não existia!”.
Com os relatos é possível refletir que a rotina de exclusão e não pertencimento é recorrente. Segundo Loiola (2009), é iniciada pela família (violência física e psicológica, expulsão de casa, constrangimentos públicos, etc.) e alcança a escola, ambiente onde a criança trans é perseguida por outras crianças e por professoras e professores, funcionários, gestores e responsáveis por outras crianças, por meio de cobranças para expressões e comportamentos dentro das normas e regras, além de perseguições por qualquer mínimo trejeito ou comportamento identificados como desviantes.
Quando entrevistamos Beatriz Vitória, então com 24 anos, ela nos relatou que sua última passagem pela escola foi em 2017, quando tentou se matricular no 3º ano do ensino médio e disse à direção que só o faria se fosse adotado seu nome social, inclusive nas listas de frequência. A direção negou seu pedido e lhe entregou sua transferência para que tentasse uma vaga em uma escola que “aceitasse suas condições”.
Assim como a identidade e o corpo são constituídos através de um processo, a utilização do nome social de pessoas trans e travestis é considerada uma afirmação dessas pessoas em relação à sua identidade de gênero, garantida pelo decreto nº 8.727/2016.12 Desse modo, podemos compreender que a diretora do caso relatado por Beatriz Vitória agiu fora da lei, prejudicando uma estudante em pleno uso de seus direitos.
Sobre a situação vivenciada por Beatriz, reflete-se:
Essa “pedagogia da violência”, utilizada por “professores do crime” e do desrespeito, não possui um espaço específico, está em toda parte, em todos os lugares e em diversos cargos, perpetuando o que entendem como verdade, expondo sua didática e sua pedagogia arbitrária. Na escola, essa arte de ensinar o que (supostamente) é normal e anormal encontra sua maior linha de atuação no “currículo oculto” ou “currículo cotidiano”, que acaba sendo invisibilizado pelo currículo oficial (ANDRADE, 2012, p. 73-74).
As situações elencadas no artigo a respeito da negação das identidades de travestis, pessoas transgêneras e outras expressões de gênero não alinhadas à norma cis são reflexos do que Foucault chama de lógica da censura:
Supõe-se que essa interdição tome três formas: afirmar que não é permitido, impedir que se diga, negar que exista. [...] do que é interdito não se deve falar até ser anulado no real; o que é inexistente não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra que enuncia sua inexistência; e o que deve ser calado encontra-se banido do real como o interdito por excelência (FOUCAULT, 2017, p. 92).
Salienta-se, ainda, a necessidade de se refletir sobre as formas como a Educação e os espaços educacionais têm constituído parte importante das normas relacionadas ao gênero e à sexualidade, como reflete-se a seguir:
É indispensável que reconheçamos que a escola não apenas produz ou reflete as concepções de gênero e sexualidade que circulam na sociedade, mas ela própria as produz, podemos estender as análises de Foucault, que demonstram o quanto as escolas ocidentais se ocuparam de tais questões desde seus primeiros tempos, aos cotidianos escolares atuais, nos quais podemos perceber o quanto e como se está tratando (e constituindo) as sexualidades dos sujeitos (LOURO, 1997, p. 81).
Com base no exposto em trabalho sobre LGBTfobia no contexto educacional do Sertão dos Inhamuns, é possível afirmar que parte significativa das situações de violência relacionadas à identidade de gênero ou à sexualidade acontece dentro do ambiente escolar, praticada, muitas vezes, de acordo com normas e comportamentos prescritos pelos regulamentos institucionalizados e seguidos por professores, gestores e funcionários.
Neste quadro, em 2009, uma pesquisa13 realizada pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) mostrou que 87% da comunidade escolar (estudantes, responsáveis, professores e servidores) tem algum tipo de preconceito contra LGBTs. A pesquisa da FEA-USP mostrou, também, que 60% dos professores admitem não ter qualquer tipo de formação na área.
Seguindo o mesmo percurso, e apresentando seus desdobramentos nas vidas de estudantes, outro estudo14 realizado em ambiente virtual pela Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais apontou que, no ano letivo de 2015, do total de mais de mil adolescentes e jovens que se reconhecem como LGBT+ entrevistados, 73% afirmaram ter sido agredidos verbalmente, 36% relataram sofrer violência física e 60% admitem não se sentir seguros no ambiente escolar. Do total de estudantes que respondeu à pesquisa, 36% compreende que a resposta da escola ou professores em relação à situação foi insuficiente ou ineficaz.
Os resultados dessas pesquisas evidenciam como medidas estruturais precisam necessariamente estar apoiadas em bases mais simples e agindo em nosso cotidiano, mudando, inclusive, nossas formas de saber e também o tipo de conhecimento a que podemos ter acesso. No mesmo ano, em Crateús, sertão dos Inhamuns cearense, uma versão preliminar do Plano Municipal de Educação, desenvolvida por profissionais da Educação em reuniões de fóruns, contemplava as áreas de estudos de gênero e sexualidade e a proposta de formação continuada na área. Essa versão do Plano Municipal de Educação chegou a ser aprovada na câmara dos vereadores da cidade.
No entanto, a exemplo do que aconteceu naquele ano em outras cidades do país com os planos municipais, em outros estados com os planos estaduais, bem como com o Plano Nacional de Educação e a Base Comum Curricular, o projeto não seguiu adiante sem que antes fossem retiradas as partes que citavam os estudos de gênero e sexualidade.
Em Crateús, uma circular dos “Bispos Católicos do Estado do Ceará, reunidos no Conselho Episcopal Regional (CONSER) em Messejana”, ligados à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), pronunciou-se a respeito dos “riscos da introdução da ‘Ideologia de Gênero’ nos planos estadual e municipal de Educação”.15 A fim de apoiar a circular da CNBB junto à Câmara dos Vereadores e de alarmar a comunidade local para os perigos da, por eles chamada “Ideologia de Gênero”, um jornal da cidade chegou a fazer uma publicação em que atacava os profissionais da Educação envolvidos na elaboração do plano e condenando a ação como um “um ardil diabólico e irracional contra a família, contra nossas crianças, contra a religiosidade do povo e até contra a Razão”.16
Guacira Louro (1997) afirma que os setores conservadores sabem do caráter político englobado nas relações sexuais e de gênero, “o que leva tais setores a disputar todos os espaços em que uma ‘educação sexual’ possa ser desenvolvida”. Desse modo, políticas educacionais se tornam alvo de suas investidas para regulação e orientação de “crianças e jovens dentro dos padrões que consideram moralmente ‘sãos’” (LOURO, 1997, p. 130).
A autora aponta que estes setores têm colocado questões como a prioridade de que esta discussão pertence à família e não à escola ou a possibilidade de que se incite precocemente a sexualidade dos jovens ao se falar sobre o assunto. Elencam, também, questões ligadas à sua forma ou ao discurso que assumiria, se preventivo, informativo, moralizante, orientador, etc.
Assim, o estudo por nós realizado responde que todas as questões são pertinentes e devem ser discutidas nas elaborações dos planos educacionais e de suas práticas, logo, não são empecilhos para que o debate aconteça e nem fatores que evocarão e trarão para dentro da escola algo que lhe seja exterior, pois:
As questões referentes à sexualidade estão, queira-se ou não, na escola. Elas fazem parte das conversas dos/as estudantes, elas estão nos grafites dos banheiros, nas piadas e brincadeiras, nas aproximações afetivas, nos namoros, e não apenas aí, elas estão também de fato nas salas de aula — assumidamente ou não — nas falas e atitudes de professoras, dos professores e estudantes (LOURO, 1997, p. 137).
A análise de fragmentos dos relatos de situações de LGBTfobia experienciados dentro dos espaços formais de educação e da reflexão sobre técnicas, situações, procedimentos e discursos institucionalizados mostram que a LGBTfobia é uma violência estrutural. Desse modo, podemos considerá-la fator relevante para os processos de descoberta e construção de identidade individual e coletiva LGBT+.
Assim, buscou-se compreender como gênero e sexualidade têm se inscrito como categorias que significam as identidades e expressões de pessoas LGBT+ como categoria coletiva, mas também nas individualidades e vidas privadas das pessoas que a constituem.
Portanto, foi possível observar que elementos, características e operações realizadas histórica e estruturalmente, em diferentes contextos e situações, no sentido da produção das identidades de gênero, sempre utilizam a correspondência de mulheres com vaginas e homens com pênis, constituindo o concretizando a identidade de gênero cis. No âmbito social, isto resulta na produção de estigmas, ao adotarem uma norma restrita e que marginaliza aquelas pessoas que nela não se enquadram, construindo para essas pessoas espaços de violência à margem dos direitos da sociedade.
Outro aspecto desse processo social consiste no fato construído como histórico e natural de que as relações afetivas e sexuais sempre ocorrerão entre gêneros opostos, resultando na orientação sexual hétero.
Desse modo, compreende-se, então, que a utilização dos discursos que constroem e perpetuam as identidades hétero e cis como norma a ser seguida e aceita socialmente é também responsável pela criação das violências LGBTfóbicas a partir da perpetuação de comportamentos e valores machistas, sexistas e misóginos.
Analisando os relatos de LGBTfobia ocorridos em espaços educacionais no Sertão dos Inhamuns, no Ceará, foi possível observar que a Educação e a escola, como espaço onde ela ocorre de modo institucional, têm utilizado técnicas que podem ser observadas desde a adoção de uniformes por estudantes e professores, passando pelo currículo oficial e sua organização espacial, até as hierarquias estabelecidas, sem esquecer o controle direto e intencional de comportamentos e corpos de estudantes.
A reflexão a respeito de como o tipo de violência narrada interfere na vida de pessoas LGBT+, leva-nos a considerar que o percurso de violência tem inscrito marcas sobre o desenvolvimento intelectual, psicológico, político e profissional dessas pessoas, evidenciando, assim, que se trata sobretudo de um sistema de produção, como ressalta Foucault (2017). Como grupo coletivo, ressalta-se ainda que as resistências e lutas por direitos e políticas públicas que nos protejam inscrevem importantes percursos e conquistas em nossas trajetórias individual e coletiva.
Concluímos que os diferentes episódios de LGBTfobia ocorridos dentro de escolas em Crateús e na região do Sertão dos Inhamuns, relatados por Mika, Fábio e Beatriz Vitória, podem ser considerados os resultados de operações como a utilizada para retirar do Plano Municipal de Educação os termos gênero e sexualidade. Evidencia-se, deste modo, a urgência da implementação de estudos e formação continuada para os profissionais da Educação nas áreas de gênero e sexualidade, pois a omissão tem sido cúmplice dos mecanismos de produção da LGBTfobia e os resultados estão, como observado ao longo deste artigo, sendo vivenciados por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e outras pessoas LGBT+ todos os dias.
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Disponível em: catracalivre.com.br. Acesso em: out. 2018.↩︎
Disponível em: www.al.sp.gov.br. Acesso em: fev. 2019.↩︎
Sobre estupro corretivo. Disponível em: escrevalolaescreva.blogspot.com. Acesso em: out. 2018.↩︎
Disponível em: homofobiamata.files.wordpress.com. Acesso em: fev. 2019.↩︎
Emprego formal ainda é exceção entre pessoas trans. Disponível em: www1.folha.uol.com.br. Acesso em: maio 2020.↩︎
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A edição da obra consultada ainda trazia a referência no nome de Beatriz. A fim ser possível sua conferência, segue a referência original da edição utilizada: PRECIADO, Beatriz. Manifesto contra-sexual — Prácticas subversivas de identidad sexual. Madrid: Opera Prima, 2002.↩︎
Resumo:
O presente artigo é síntese de trabalho acadêmico realizado no contexto educacional de Crateús e Sertão dos Inhamuns, no Ceará. Relata situações de LGBTfobia a fim de evidenciar mecanismos de produção e reprodução dessa violência em diversos contextos e situações, ressaltando, deste modo, seu caráter estrutural. O estudo tomou por base o arcabouço teórico de Butler (2003), Preciado (2002), Foucault (2017) e Louro (1997; 2004) em relação ao estudo do gênero e da sexualidade, bem como da produção de mecanismos e discursos de poder. Outrossim, realizou-se entrevistas com pessoas LGBT+ da região. Concluímos que as diferentes situações de LGBTfobia experienciadas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e pessoas transgêneras no contexto educacional apontam para a emergência de que sejam viabilizados o debate e a formação continuada dos profissionais da Educação nas áreas de gênero e sexualidade.
Palavras-chave:
LGBTfobia; Educação; Mecanismos de Poder.
Abstract:
The present article is the synthesis of research conducted in the educational context of Crateús and the Sertão dos Inhamuns in Ceará, Brazil. It reports situations of LGBTphobia in order to highlight mechanisms of production and reproduction of violence in various contexts and situations, thus highlighting the structural character. The study was based on the theoretical framework of Butler (2003), Preciado (2002), Foucault (2017) and Louro (1997; 2004), in relation to the study of gender and sexuality, as well as the production of mechanisms and discourses of power. Interviews were conducted with people from the LGBT+ community in the region. We conclude that the different situations of LGBTphobia experienced by people from this community, in the educational context, point to the possibility of making the issue visible, and points to the need for the continued training of educational professionals in the areas of gender and sexuality.
Keywords:
LGBTphobia; Education; Mechanisms of Power.
Recebido para publicação em 20/07/2021
Aceito em 06/10/2021