Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 3, nov. 2021/fev. 2022
DOI: 10.36517/rcs.2021.3.a03
ISSN: 2318-4620

 

 

Corpos femininos em tempos de guerra:
Poéticas de Gustave Akakpo em La Mère Trop Tôt (2004)

 

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira OrcID
Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e
Universidade de Brasília, Brasil
deborasalesvieira19@gmail.com

 

“Mas você entende...
Em tempos de guerra, não existe nem bem, nem mal...
Apenas a vida, apenas a morte.”
Gustave Akakpo

Introdução

As dramaturgias diaspóricas e afro-contemporâneas sofreram inúmeras transformações nas últimas três décadas, distanciando-se de uma perspectiva estética identitária exotizante, voltada aos rituais e à tradição, assumindo uma abertura para a alteridade, o espaço do intervalo, o cruzamento e os atravessamentos por todas as influências, reivindicando uma contemporaneidade estética e a singularidade de suas escritas (CHALAYE, 2017).

O presente artigo discute a presença feminina na dramaturgia artivista de Gustave Akakpo, utilizando como recorte a peça La Mère Trop Tôt (2004),1 que aborda o drama de crianças e adolescentes sobreviventes de uma guerra civil na África. O escritor e dramaturgo Gustave Akakpo nasceu no Togo em 1974, reside na França e faz parte de uma geração de autores engajados com a produção de um teatro político, trazendo poeticamente para o palco as desigualdades sociais de classe, raça e gênero, pensando uma africanidade contemporânea, plural e diaspórica.

Autores que pretendem sair da imagem de uma África dos conquistadores, da propaganda colonial dos estereótipos que os apresenta ao mesmo tempo como selvagens e exuberantes. Desejam fugir da imagem de uma África folclorizada, imagem essa que ainda povoa os sonhos ocidentais, e mostrar suas identidades múltiplas e fragmentadas, identidades em devir, que hoje ainda lutam para romper as marcas da colonização. (REIS, 2017, p. 397).

José Eduardo Morais e Maria da Glória Reis (2018) em discussão sobre dramaturgias africanas destacam as obras de Gustave Akakpo Tac-Tic à la rue des Pingouins (2004), Catharsis (2006), La Mère Trop Tôt (2004) e À petites pierres (2007) que abordam temáticas políticas ligadas às relações entre Europa e África, como imigração, colonização, interesses econômicos e conflitos culturais entre populações oriundas desses dois continentes.

Para além da sua produção dramatúrgica, Gustave Akakpo é um militante comprometido com a formação de jovens escritores e escritoras por meio de projetos com fomento de bolsas de estudo em diferentes países. O engajamento com as infâncias está presente em sua obra por meio da publicação de livros de literatura para crianças, como Le petit monde merveilleux (2008) que aborda a questão ambiental, La véridique histoire du petit chaperon rouge (2015) uma releitura do conto clássico Chapeuzinho Vermelho, inclusive em versões bilíngues (francês-ewe) como Titi la fontaine — contes des quatre vents (2003) sobre os medos da pequena Titi e Querelle au pays de l'alphabetcontes des quatre vents (2003) sobre a menina Gragra que magicamente começa a falar sem usar as vogais.2

Contudo, é no texto dramatúrgico La Mère Trop Tôt (2004) que Gustave Akakpo desvela os traumas e feridas da guerra civil no continente africano, por meio das vozes das crianças e adolescentes sobreviventes que nos contam parte desse lamentável período da história recente da África. Rosana Correia e Maria da Glória Reis (2017) informam que a escrita dessa peça foi motivada por um encontro do autor com uma ex-criança-soldado em uma praça de um vilarejo da Libéria. Nesse sentido, percebe-se a sensibilização do autor a partir desse diálogo, gerando a necessidade de uma produção estética que apresente a guerra civil, dialeticamente, com suas nuances de realidade e ficção a partir dos conflitos étnicos africanos contemporâneos sob o enfoque de jovens sobreviventes.

É preciso se dar conta que a formulação estética inventa imagens, percepções e esferas do afetivo e do sentimento extremamente diferenciadas, que atravessam as tramas conceituais não existentes antes e fora de articulação. A sensação humana imita a arte assim como inversamente a arte imita a vida. (KOUDELLA, 2017, p. 41).

Josette Féral (2015) ao tratar dos conflitos étnicos, temática central da peça La Mère Trop Tôt (2004), afirma que quando a visão de território e Estado se sobrepõem, e se apoiam sobre uma visão de nação representada por uma única etnia, surgem as guerras de extermínio, em especial as guerras étnicas. Contudo, quando há desigualdade nas relações de força de um grupo em detrimento de outro, e que todo um grupo étnico guerreia contra o outro grupo desarmado, pode-se designar essa ação como genocídio. Tais relações de poder genocidas se inscrevem na narrativa dramatúrgica de Gustave Akakpo, ilustrando o conflito étnico entre os povos fictícios Bantis e Bantus.

Desse modo, a discussão da obra está organizada em três seções, conforme: análise da estrutura da peça La Mère Trop Tôt (2004) apoiada nos estudos de Jean-Pierre Sarrazac (2017); análise da poética de Gustave Akakpo assentada na produção teórica de Sylvie Chalaye (2017) e discussão da obra enfocando a objetificação de corpos femininos e memórias de violência sob a ótica dos Estudos Feministas em diálogo com Michael Pollak (1989).

La Mère Trop Tôt — a história de uma mãe precoce e seus “filhos”

A peça teatral, uma tragédia-farsa moderna (REIS, 2017) está organizada em sete cenas, nas quais alternam-se os coros e as falas das personagens: A Mãe Cedo Demais, Kobogo, Miolo-Mole, O Outro, Molequinho, O Menino-Soldado, O Açougueiro-das-Mil-Faces, O Verdadeiro-Falso Mercenário e Negócio-Coisa.3 A partir dessas personagens, narra-se a história da menina que liderava um grupo de meninos em travessia por uma cidade destruída pela guerra civil entre Bantis e Bantus em um país africano não identificado. O conflito entre Bantis e Bantus é uma metáfora do autor aos sangrentos conflitos étnicos reais vividos na história recente do continente africano.

O texto mantém estrutura dramática, é dividido em cenas, com falas marcadas das personagens, sucintas didascálias e a presença de um coro narrador, não de fatos da fábula, mas de reflexões das personagens, na qual há uma escuta e reescuta da própria voz, num processo de subjetivação da cena. Jean-Pierre Sarrazac (2017, p. 171) destaca que por meio da coralidade, a personagem “torna-se múltipla e plural”, gerando optação, ou seja, abrindo na ação dramática campos virtuais de subjetividade, por meio do discurso interior e fluxo de consciência da personagem, onde a memória dos fatos passados é evocada na cena.

A fábula da peça apresenta uma estrutura moderna com saltos, elipses e lacunas, na qual a situação tem primazia sobre a ação. Há presença de retrospectivas ao longo da peça, uma das operações fundamentais do novo processo de (de)composição dramática e à medida que as personagens rememoram, efetuam-se saltos no tempo e espaço e ajuda os(as) espectadores(as)/leitores(as) compreenderem a complexidade envolvida nas trajetórias pessoais das personagens.

A peça tem como cenário as ruínas de uma casa destruída pela guerra, invadida por vegetação selvagem e inicia com uma mensagem radiofônica do anúncio oficial de paz. A Mãe Cedo Demais, seu amigo Kobogo, e os irmãos Miolo-Mole, O Outro e Molequinho discutiam sobre o anúncio do fim da guerra quando são surpreendidos com a chegada dos militares: O Menino-Soldado e O Açougueiro-das-Mil-Faces, e se escondem. Os militares são apelidados de Cobras e roubam parte da comida do grupo.

Com intuito de evitar que os militares encontrem toda a comida, Miolo-Mole sai do esconderijo e tenta enganá-los, para distanciarem-se do grupo de crianças. Por meio de uma retrospectiva, é revelado que Miolo-Mole havia assassinado um antigo chefe militar do país, O Verdadeiro Falso Mercenário, por este querer ter relações sexuais com o irmão mais novo, Molequinho.

Enquanto A Mãe Cedo Demais decide como salvar Miolo-Mole, ela vê o espírito do atual ditador Negócio-Coisa e lhe propõe um acordo: sua vida por uma mentira. Ela deveria dar seu testemunho à comunidade internacional, após a paz, acusando seu próprio grupo étnico de causador dos massacres no país. Descobre-se que Molequinho é uma menina que acabou de ter sua primeira menstruação e que tinha sido disfarçada de menino como estratégia de sobrevivência durante a guerra.

Os militares retornam em busca de sobreviventes e informam que mataram Miolo-Mole, notícia que faz O Outro se denunciar e também ser morto pela dupla. Quando o espírito de Negócio-coisa volta para garantir o acordo firmado, A Mãe Cedo Demais o mata com a ajuda de Molequinho. A peça é finalizada com uma mensagem radiofônica que anuncia a morte e que o poder passou para o filho do ditador, que fará novas eleições assim que assegurar a paz durante alguns anos.

Uma personagem-recordante, como o coro da personagem A Mãe Cedo Demais, fica “permeável a todas as emoções que permitem uma lembrança, ou melhor uma revivescência do drama anterior”, conforme Jean-Pierre Sarrazac (2017, p. 177). Ao recordar, a personagem traz para a cena saltos no tempo e no espaço e é possível uma reescuta de sua própria voz por meio da coralidade.

Coro A Mãe Cedo Demais: Ele não entende porque ele não pode ir atrás do seu irmão gêmeo... e repetir tudo que ele diz, como ele se acostumou a fazer; ele não entende que seu irmão e ele não têm a mesma cara.… ele com a sua cara de Banti, e seu irmão com a cara de Bantu. Ele não entende. Ele não entende que antes de se casar com nosso pai, um Banti, a nossa mãe, uma Banti, fez seu irmão e ele com um pai Bantu. Uma grande piada da natureza... irmãos gêmeos de rostos diferentes: um a cara do dia, o outro a cara da noite...Uma tremenda piada, você imagina! Ele não entende. A mãe disse: ''Ele não entende; desde pequenino, ele não entende bem as coisas; então ele faz tudo como seu irmão... e não é bom, fazer tudo como seu irmão.'' E a mãe disse: “Miolo-Mole”, para o irmão que desde muito cedo aprendeu a fazer besteiras enormes, sozinho, como um rapaz... E “O Outro”, para aquele que não deveria imitá-lo. Mas de qualquer jeito ele imitava... e eu, a irmãzinha, devia impedir o primeiro de fazer besteiras para que O outro não o imitasse.… A mãe me pediu... me parece que ela me pediu com o seu olhar que diz tudo, sem dizer uma palavra... E muito cedo, eu compreendi que cabe às mulheres impedir os homens de fazerem besteiras... é o papel delas... é por isso que elas são mulheres e não homens... Então eu disse a ele, eu me lembro, parece que estou me vendo dizer a ele… para nunca matar. Senão, não ia parar mais... ele que refazia e refazia de novo cada nova besteira que ia descobrindo… e que o seu irmão acabava por imitar sem sequer compreender porque o fazia... (AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène).

De forma implícita ou explícita, a presença espectral, representada por mortos e/ou agonizantes, está presente na cena contemporânea e nela “introduzem o afastamento, o segundo plano, em síntese, esse espaço dialógico que permite colocar a questão do devir da espécie humana”, como nos diz Jean-Pierre Sarrazac (2017, p. 217). O diálogo entre A Mãe Cedo Demais e Negócio-Coisa evidencia as dicotomias entre morte-vida e ficção-realidade na cena, materializando a complexidade envolvida na relação entre os dois, conforme:

Negócio-Coisa: Nossa, ela é teimosa, se debatendo assim! Não, o país não mentiu. Calma, não fique tão agitada: os outros vão pensar que você está ficando louca. Pois, você só pode me ver.

A Mãe Cedo Demais: Que piada! Eu não acredito em fantasmas.

Negócio coisa: Então chegue mais perto e interrogue meu rosto! O que você lê?

A Mãe Cedo Demais: (estupefata): Que você é…

Negócio coisa: E como você acha que eu posso estar aqui, de corpo presente, neste momento bem preciso e sem meus homens?

A Mãe Cedo Demais: Não, você quer é me perturbar o espírito…

Negócio Coisa: Tenha calma!... O país fala dos poderes místicos que eu consegui obter através de sacrifícios de sangue. Não acredita? Você não consegue me imaginar tomando o sangue das minhas vítimas no café da manhã? (AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène).

Na peça, o “drama-da-vida” (SARRAZAC, 2017) faz essa transposição entre singularidade e pluralidade. As personagens materializam não apenas o seu próprio drama singular, mas representam um drama plural, consequência dos conflitos geográficos, políticos e sociais no continente africano.

Poéticas de travessia, de ausências e de corpos em La Mère Trop Tôt (2004)

Sylvie Chalaye (2017) destaca três grandes poéticas nas dramaturgias afro-contemporâneas, como: a) travessia; b) perdas, ausências, vazio; e c) corpo. No texto de Gustave Akakpo a travessia é realizada pelo grupo de crianças e adolescentes em um projeto de peregrinação pelo país em fuga dos conflitos étnicos que causaram a guerra civil e da própria guerra civil, configurando-se uma travessia não apenas física, mas uma jornada de transformação pessoal, na qual as personagens foram se modificando ao longo da caminhada, que só aparece em cena através das narrativas das personagens, conforme:

Kobogo: Pra onde foi aquela menininha de onze anos que... que ... que era... que fazia... que tinha... eu esqueci o que vem depois... Esses dois buracos que você carrega na cabeça... esse olhar apaga tudo que eu sabia, tudo que eu sei sobre a garota de onze anos... que me ajudou a atravessar esse país minado da terra ao céu... Pois o país me falou de você. E eu falei dos olhos dessa menina de onze anos que... que... Escuta, vamos voltar para nossa casa para além das colinas, agora que a guerra acabou...

A Mãe Cedo Demais: Não! Uma guerra não termina com um apito final! Nós não vamos pra lugar nenhum!... E, aliás, para de me olhar com esses olhos mareados de eternidades de incompreensões! O que é preciso entender... (AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scéne).

Um outro grupo em travessia, na peça, é o dos militares do exército, representados pelo O Menino-Soldado e O Açougueiro-das-Mil-Faces, que cruzam o país matando. O Menino-Soldado tem anseios e projeta um futuro feliz ao lado de A Mãe Cedo Demais, por quem é apaixonado. Na travessia imaginada pelo pequeno Cobra, o jovem casal é levado para a França, afastando-se da colônia e ele se torna um graduado soldado francês, mesmo com a negação da origem étnica de A Mãe Cedo Demais. Percebe-se o plano dialético de Gustave Akakpo ao trazer a contradição entre realidade e imaginação no entrecruzamento dos caminhos das personagens, no qual o fim da guerra traria realizações, do mesmo modo que O Menino-Soldado descreve a jovem menina no presente-passado e futuro, conforme:

O Açougueiro-das-Mil-Faces: Você sonha?

O Menino-Soldado: Não tenho cara de quem sonha? Aquele que não sonha, é como alguém que não sabe… que nem imagina onde vai.

O Açougueiro-das-MilFaces: Com o que você sonha?

O Menino-Soldado: Toda uma literatura, meus sonhos! Mas principalmente… o que eu vou te dizer, é um segredo; você guarde para os teus ouvidos… Se por acaso a tua língua se soltar, eu desmentirei tudo antes de cortá-la… (O Açougueiro-das-Mil-Faces concorda com gesto de cabeça). É principalmente com ela que eu sonho… em todas as cores, em todas as formas, em todas as situações, eu sonho com ela… O país só fala dela…

O Açougueiro-das-Mil-Faces: A Mãe Cedo Demais? Uma Banti suja?

O Menino-Soldado: Eu te proíbo… Não a conheceste antes da guerra… Eu estava na mesma escola que ela… Ela estava dois anos na minha frente… Nunca viste os olhos dela antes da guerra… olhos de turbinar tua carne de homem.

O Açougueiro-das-Mil-Faces: Vocês….

O Menino-Soldado: Não. Tinha um idiota mais velho que ficava rondando em torno dela. Mas eu sabia que tinha chance! É só que eu não tinha coragem… Depois, eu a vi novamente… ela dava um jeitinho com os homens da tropa do Verdadeiro-Falso Mercenário, para traçar seu caminho pela nossa barricada...

O Açougueiro-das-Mil-Faces: Então, você com ela… vocês...

O Menino-Soldado: Os outros, sim. Eu, eu não quero dar um jeitinho com ela. Você sabe, meu sonho é de ir embora com ela. Para Paris.

O Açougueiro-das-Mil-Faces: Ela não vai querer nunca ir com você. É uma Banti.

O Menino-Soldado: Sim, ela quer. Ela me disse. Nós iremos para Paris… Você sabe, não há muitas garotas que recusariam acompanhar alguém para Paris. Eu recomeçarei meus estudos, ela irá comigo, eu farei a escola militar, eu serei um soldado francês e depois, depois, um verdadeiro-falso mercenário! Tu me imaginas como Verdadeiro-Falso Mercenário?!

O Açougueiro-das-Mil-Faces: E ela te dará filhos… filhos Bantis.

O Menino-Soldado: Estás brincando? Um Bantu não tem filhos Bantis! Essa menina é… não é uma Banti… enfim não simplesmente uma Banti… É uma menina como tu não terás nunca, com a tua cara de fazer fugir um rato! Nunca ela vai plantar em ti o seu olhar a fazer vertigens no corpo.

O Açougueiro-das-Mil-Faces: Não consigo imaginar que ela aceite ir embora com você.

O Menino-Soldado: Quando a guerra terminar, ela irá.

(AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène).

Por se tratar de uma guerra civil, as perdas são inevitáveis na trama, assim como as ausências e o vazio. As ausências para o grupo de crianças e adolescentes são inúmeras, dentre elas: a) pessoais: familiares adultos; b) materiais: alimentação e habitação; e c) emocionais: afeto e proteção. As múltiplas possibilidades sociais de existência do grupo são reconfiguradas ao longo da peça, conforme as perdas vão se dando, desde a ingenuidade da protagonista até da própria vida de alguns deles. A memória das mortes se configura como perda na voz da personagem A Mãe Cedo Demais, que reverbera um vazio de esperança em dias melhores.

A Mãe Cedo Demais: Eu não preciso de mortos! Só mortos! Só mortos, tenho toneladas de mortos! Quilômetros de todos os jeitos; uma eternidade de mortos que violam meu sono!... Você quer que eu grite qual é a maior prova de amor? Arrume uma arma e mate! Eu preciso de um homem que possa matar por mim, não morrer!

Kobogo: Mas eu não...

A Mãe Cedo Demais: O que você quer que eu faça de você na posição de cadáver? Por acaso é o seu fantasma quem vai nos proteger de todos esses Cobras com a vontade de massacrar erguida como um estandarte? Tudo que minha cabeça e meu ventre se esgotam de desejar o mais ardentemente possível, é como nos tirar dessa morte gratuita, eu e os meus! E você vem me falar das suas manias de querer morrer, só para fazer eu me sentir culpada por ter abandonado, sem sepultura, o seu cadáver aos urubus? Enfia isso bem na tua cabeça: se você morrer, eu te deixo aqui. E aliás, ninguém enterra mais ninguém.

Kobogo: Você não era assim...

(AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène).

A personagem principal, A Mãe Cedo Demais, uma menina de 13 anos que sofreu em seu corpo as dores e os traumas de ser vítima de abuso sexual em diferentes situações, representa a força feminina manifesta na liderança e no sentimento protetor em relação aos demais integrantes do grupo. Sylvie Chalaye (2017, p. 245) enfatiza que as dramaturgias afro-contemporâneas se voltam para o corpo, “o corpo memória, o corpo território, corpo para toda bagagem, corpo ressonância da oralidade”. E é o jovem corpo da Mãe Cedo Demais que se destaca ao longo de todo o drama, desde os olhares apaixonados de Kobogo e O Menino-Soldado aos toques lascivos do Verdadeiro-Falso Mercenário e Negócio-Coisa. É o corpo da jovem que é observado e contado pelo país trazendo-lhe a fama de boa amante que atravessa o território nacional.

Objetificação de corpos e memórias de violência

A infância como categoria social valida uma perspectiva mais individualizada na sua compreensão como processo singular de significação, desconstrói-se com isso antigas imagens redutoras estabelecidas, que preconizam as crianças como seres encantadores e frágeis ou como seres incompletos. Manoel Sarmento (2007) aponta para a “diversidade de possibilidades sociais de existência”, onde a compreensão da infância se constitui de modo contextualizado, compreendendo que as dimensões de classe, raça e gênero, para além da dimensão etária e outros marcadores, interseccionam-se (AKOTIRENE, 2019) e convergem em infâncias plurais.

Nesse sentido, as infâncias retratadas por Gustave Akakpo apontam para as contradições vivenciadas pelo grupo na peça, no qual assumem papéis adultos ao autogerirem suas vidas, cuidando do próprio sustento e da sobrevivência em meio ao cenário de guerra, alternando episódios de violência com as brincadeiras e sonhos infantis. No plano dialético, ser criança e ser adulto em meio à guerra se configura como possibilidade social de existência dessas personagens, que são uma metáfora não apenas de crianças africanas, mas das demais crianças que vivem situações semelhantes de privação de direitos em diferentes contextos geopolíticos, marcados pela crueldade da guerra.

Na peça La Mère Trop Tôt (2004) há a presença de três personagens femininas apenas: A Mãe Cedo Demais, sua mãe que foi estuprada e morta e sua irmã que ficou menstruada, desmascarando o disfarce de menino arquitetado pela protagonista. Nesse contexto de conflito bélico, ser mulher representa um risco de vida e morte e com sensibilidade o autor concebe uma protagonista forte e decidida, semelhante à Mãe Coragem brechtiana, que cria estratégias para sua sobrevivência e do grupo durante a guerra. A Mãe Cedo Demais usa seu corpo de menina como moeda de troca para atravessar o país, prostituindo-se pela proteção de sua vida e de seus companheiros de jornada.

A Mãe Cedo Demais: Seria melhor que você morresse do que exalar seu cheiro de fêmea como um farol! Você detona todas as minhas estratégias elaboradas para mascarar o teu corpo em garoto. (Um tempo). O que supostamente eu poderia te dizer?

Molequinho: Tá começando de novo… Meu Deus, eu vou morrer!

A Mãe Cedo Demais: Não diga bobagens! Isso também acontece comigo de ter...como você... (Ao Outro) Para de olhar para ela! (O Outro se vai para trás dos arbustos) Um garoto não tem o direito de fixar o olhar em uma menina quando ela está em período de ter essas coisas. (Ao Molequinho) Você, me escuta com atenção: não deixe que os outros percebam o que está te acontecendo. Não é necessário que aconteça com você a mesma coisa que aconteceu comigo… (AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène).

A ação da personagem A Mãe Cedo Demais em disfarçar a irmã caçula de homem para protegê-la de possíveis abusos sexuais evidencia a preocupação em impedir que o ciclo de violência sexual também vivido por sua mãe seja iniciado com Molequinho, conforme:

A Mãe Cedo Demais: Quando eles terminaram de fazer aquelas coisas com a minha mãe, ela suplicou… ela não conseguia se mexer, com o sangue se esvaindo então, ela lhes suplicou. Tá tudo acabado, ela dizia… a vida, acabada para ela… Eu a amava mas não pude segui-la… ela me proibiu… e também por ela. (AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène).

Gustave Akakpo representa no plano ficcional dessa dramaturgia a memória coletiva de violência sofrida por mulheres africanas em contextos de guerra, sendo que a fábula se materializa como espaço do corpo social. Expressa ao mundo “uma singular emoção que realiza deflagrações de sentido para expressar o caos e a coralidade ao mesmo tempo; corpo despedaçado, corpo desmantelado e ao mesmo tempo em reconstrução no espaço virtual da cena” (CHALAYE, 2017, p. 244).

Michael Pollak elucida que as lembranças traumatizantes que são transmitidas oralmente perduram e sobrevivem vivas no tempo, “[...] lembranças traumatizantes, lembranças que esperam o momento propício para serem expressas” (POLLAK, 1989, p. 12), ou seja, o autor acredita que a memória não dissipa, que ela resiste. Assim como as lembranças de violência sexual sofrida pela mãe de A Mãe Cedo Demais é narrada para Molequinho com a intenção de alertá-la e protegê-la de possíveis abusos.

Catarina Isabel Caldeira Martins (2019) afirma que Patricia McFadden, teórica do feminismo africano, em diálogo com a escritora estadunidense Audre Lorde, sustenta que o poder político do erótico manifesta-se particularmente na África, em que a sexualidade feminina foi objeto de apropriações e violências materiais e discursivas várias. Inclusive por meio de narrativas masculinas que, ao mesmo tempo em que constroem o feminino como lugar de preservação da tradição, interrompem a continuidade feminina dos legados das antepassadas sobre a indissociabilidade de prazer e poder. A relação contraditória de A Mãe Cedo Demais entre poder e prazer nas experiências sexuais aparecem ao longo de todo o texto, pois a personagem tem consciência do seu poder erótico e usa-o, independentemente de quem seja o alvo a ser seduzido, conforme:

Coro A Mãe Cedo Demais: Todos dizem isso... Eu entendi bem rápido que, de qualquer forma, eles tomam das meninas aquilo que quiserem tomar... Ninguém me ensinou a fazer essas coisas... Eu confiei totalmente no meu corpo... Muitas vezes digo a eles: podem usar a força, mas não terão o mesmo prazer do que se for de livre e espontânea vontade.

- A Mãe Cedo Demais: Agora.

- Negócio coisa: Agora?

- A Mãe Cedo Demais: Eu quero agora.

- Negócio coisa: Por que agora?

- A Mãe Cedo Demais: Quero saber como é quando a gente deseja mesmo fazer, não só como quando a gente faz algo em troca. (AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène).

No trecho acima, o corpo feminino existe não apenas em função da satisfação do guerreiro ou converte-se na natureza em que este mergulha para renovar as forças para o combate pela nação, mas para o próprio prazer da protagonista. Nesse sentido, a contradição entre o desejo e repulsa sexual expresso na peça, no qual o desejo erótico parece permanecer em segundo plano, enquanto o poder materializado na atividade sexual da personagem A Mãe Cedo Demais configura-se como uma arma na própria guerra, conforme:

A lógica da guerra segundo a qual meninas são vítimas inertes, sofrendo toda sorte de infortúnio e sendo inevitavelmente estupradas pelos soldados, é subvertida para colocar em cena uma menina que dá um jeitinho (s’arrange) com os soldados e transforma o sexo em sua própria arma de guerra. O leitor/espectador é levado a mobilizar sua consciência, a se desprender de seus valores morais rijos para tentar compreender essa criança para quem o sexo é, até então, apenas uma arma. (CORREIA; REIS, 2017, p. 480).

A Mãe Cedo Demais assume uma postura realista em relação a si mesma, de modo que as marcas da guerra deixadas em seu corpo transcendem seu interior, reverberando subjetivamente na sua narrativa, conforme: “A Mãe Cedo Demais: Não é verdade! A pureza da alma é um luxo reservado para aqueles que não estão em guerra… Eu sei bem que não sou como antes.” (AKAKPO, 2004, tradução Coletivo En Classe et en Scène). A vivência épica da menina ao longo da peça traduz a complexidade da personalidade da personagem que incorpora a abnegação de uma mãe dedicada ao seu grupo, a frieza de uma assassina e alterna o desejo de fazer sexo com um desconhecido, mas nega um simples beijo ao rapaz que a ama.

Iná Camargo Costa (1996) explica que a estruturação interna e o rigor de uma obra dependem de algum tipo de compreensão da realidade, vem do exterior, portanto, aquilo que lhe dá coerência interna e se constitui uma reflexão social. Pois, configura-se no plano dialético como a arte se realiza em si mesma e o seu conhecimento. Nesse sentido, a dramaturgia de Gustave Akakpo traduz uma memória coletiva representada na saga da personagem principal e de seus companheiros de travessia através de sua cosmovisão crítica de uma realidade coletiva.

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. (POLLAK, 1989, p. 8).

As dimensões social e política são apresentadas a partir da experiência pessoal da protagonista, “seu discurso e aquele dos outros personagens deslocam da violência coletiva para vidas trágicas”. Nesse sentido, nega-se que a personagem seja individualizada no sentido do drama burguês, ela, assim como seu coro, está situada num entre-lugar, no qual a vida trágica conta um drama coletivo.

Considerações finais

Ao representar não somente as feridas de uma guerra civil, efeito de um conflito étnico recente no continente africano, Gustave Akakpo fabula e evoca a presença feminina marcante da protagonista na peça La Mère Trop Tôt (2004) que retrata a complexidade de uma personalidade contraditória no drama de crianças e adolescentes sobreviventes.

Ressalta-se a presença de elementos dramáticos e pós-dramáticos no texto configurando uma narrativa moderna, com o entrecruzamento de tempos, reconfigurando a trama, conforme os(as) leitores(as)/espectadores(as) têm acesso às informações das personagens, seja por meio de suas vozes e/ou por meio da coralidade. Destaca-se a presença das poéticas de travessia, de ausências e de corpos em La Mère Trop Tôt (2004), em consonância com a dramaturgia afro-contemporânea (CHALAYE, 2017), no qual os dramaturgos vivenciaram o exílio e compartilham uma consciência diaspórica, como lugar de resistência política e re-existência estética.

A memória coletiva sobre a guerra situa-se no entre-lugar, no qual o dramaturgo Gustave Akakpo desenvolveu a jornada da personagem principal e das demais personagens. Amplifica a dramaturgia afro-contemporânea para além África, ao enfocar a contradição e a complexidade dos corpos femininos que se ressignificam na obra discutida.

Referências

AKAKPO, Gustave. La mère trop tôt. [s. l] : Lansman, 2004.

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Polém, 2019.

CHALAYE, Sylvie. O quilombismo das dramaturgias afro-contemporâneas francófonas. Revista Rebento, São Paulo, n. 6, p. 236-251, maio, 2017. Disponível em www.periodicos.ia.unesp.br Acesso em 10.10.2020.

CORREIA, Rosana de Araújo; REIS, Maria da Glória Magalhães dos. Gustave Akakpo: palavras que viajam. IN: FERREIRA, Alice Maria de Araújo; REIS, Maria da Glória Magalhães dos; BRITO, Tarsilla Couto de (Org.). Crítica e tradução do exílio: ensaios e experiências. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária UFG, 2017.

COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática em teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.

KOUDELLA, Ingrid Dormien. O teatro político e o pós-dramático. IN: GUINSBURG, J; FERNANDES, (orgs.). O Pós-dramático: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2017.

MARTINS, Catarina Isabel Caldeira. Corpos nus de mulheres negras: eixos poéticos e políticos da escrita de mulheres africanas lusófonas. Revista de Estudos Feministas,  Florianópolis ,  v. 27, n. 1, 2019.  Disponível em www.scielo.br. Acesso em 31.10.2020.

MORAES, José Eduardo Rocha; REIS, Maria da Glória Magalhães dos. As Dramaturgias de Guerra de Sony Labou Tansi e Gustave Akakpo. Revista Estação Literária. Londrina, Volume 21, p. 129-140, jun. 2018. Disponível em www.uel.br. Acesso em 10.10.2020.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº3, p. 3-15, 1989. Disponível em www.uel.br.

REIS, Maria da Glória Magalhães dos. Dramaturgias Contemporâneas da África Subsaariana: Koffi Kwahulé e Gustave Akakpo. IN: FERREIRA, Alice Maria de Araújo; REIS, Maria da Glória Magalhães dos; BRITO, Tarsilla Couto de (Org.). Crítica e tradução do exílio: ensaios e experiências. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária UFG, 2017.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Visibilidade social e estudo da infância. IN: VASCONCELOS, Vera Maria R.e SARMENTO, Manuel Jacinto (orgs.). Infância (in)visível. Araraquara, SP: Junqueira&Marin, 2007.

SARRAZAC, Jean-Pierre. Poética do drama moderno: de Ibsen a Koltès. São Paulo: Perspectiva, 2017.


  1. Neste artigo será utilizada a versão traduzida da peça La Mère Trop Tôt (AKAKPO, 2004) pelo Coletivo Teatral En classe et en Scène da Universidade de Brasília nas citações diretas da obra.↩︎

  2. Comunicação oral proferida na disciplina Dramaturgias: tradição e contemporaneidade, ministrada pela Profa. Maria da Glória Magalhães dos Reis, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília, em 13 de dezembro de 2019.↩︎

  3. Os nomes são não só paradoxais como também posteriores à guerra. É como se a guerra lhes desse novas identidades e impedisse a continuidade com o período anterior, havendo uma ruptura. Os nomes compostos servem também como indicação de que a identidade é aqui uma não-identidade. Ela é simultaneamente única e plural. (MORAES; REIS, 2018, p. 134).↩︎

Resumo:
Este artigo discute a presença feminina na dramaturgia artivista do togolês Gustave Akakpo, utilizando como recorte a peça La Mère Trop Tôt (2004) que aborda o drama de crianças e adolescentes sobreviventes de uma guerra civil na África. O texto está organizado em três seções, conforme: análise da estrutura da peça La Mère Trop Tôt (2004) apoiada nos estudos de Jean-Pierre Sarrazac (2017); análise da poética de Gustave Akakpo assentada na produção teórica de Sylvie Chalaye (2017) e discussão da obra enfocando a objetificação de corpos femininos e memórias de violência sob a ótica dos Estudos Feministas em diálogo com Michael Pollak (1989). A memória coletiva sobre a guerra situa-se no entre-lugar, pois amplifica a dramaturgia afro-contemporânea para além África, ao enfocar a contradição e a complexidade dos corpos femininos que se ressignificam na obra analisada.

Palavras-chave:
Teatro Africano Contemporâneo; Teatro Africano Francófono; Gustave Akakpo; Dramaturgia de Guerra. Memória Coletiva.

 

Abstract:
This article discusses the female presence in the artivist dramaturgy of Togolese Gustave Akakpo, using the play La Mère Trop Trôt (2004) as a cut-out that addresses the drama of children and adolescents surviving a civil war in Africa. The text is organized in three sections, according to: analysis of the structure of the play La Mère Trop Trôt (2004) in supported by the studies of Jean-Pierre Sarrazac (2017); analysis of Gustave Akakpo’s poetics based on the theoretical production of Sylvie Chalaye (2017) and discussion of the work focusing on the objectification of bodies and memories of violence from the perspective of Feminist Studies in dialogue with Michael Pollak (1989). The collective memory of war is located in between, as it amplifies Afro-contemporary dramaturgy beyond Africa, by focusing on the contradiction and complexity of the female bodies that are re-signified in the work.

Keywords:
Contemporary African Theater; French-Speaking African Theater; Gustave Akakpo; War Dramaturgy. Collective Memory.

 

Recebido para publicação em 01/11/2020
Aceito em 10/02/2021