Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.d05
ISSN: 2318-4620
Moçambique e “uma guerra que parece não ter fim” em Terra Sonâmbula
Isabella Lamas
Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira, Brasil
isaalamas@unilab.edu.br
Natália Bueno
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal
nataliabueno@ces.uc.pt
Moçambique possui uma trajetória enquanto país independente ainda muito recente e que esteve durante a maior parte do tempo atravessada pela guerra. A independência de Portugal foi declarada no dia 25 de junho de 1975, depois de 10 anos de Luta Armada de Libertação Nacional (1964-1974). Após a independência, um dos diferentes movimentos que se articularam durante a luta, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) — primeiro e único partido até hoje no poder central — constituiu um governo de inspiração marxista-leninista. No entanto, a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) (antigo movimento guerrilheiro que se transformou em partido de oposição) passou a reivindicar, já em 1976, o poder político através de ações armadas (NEWITT, 2002). O conflito entre a Frelimo e a Renamo levou Moçambique a longos anos de guerra civil.1 Em 4 de outubro de 1992, o então presidente de Moçambique e líder da Frelimo, Joaquim Chissano, e o já falecido líder da Renamo, Afonso Dhlakama, assinaram o Acordo Geral de Paz (AGP) que pôs fim a esse conflito armado que durou 16 anos. Apesar de o 4 de outubro, celebrado como o dia da Paz e da Reconciliação, oficialmente marcar o fim da guerra entre a Frelimo e a Renamo (1976-1992), este também pode ser visto, de uma forma mais ampla, como representando o fim de uma era de violência direta e de conflito armado. Ao iniciar-se na esteira da Luta Armada de Libertação Nacional contra o colonialismo português, o conflito entre a Frelimo e a Renamo dá, neste sentido, continuidade à guerra que soma no total aproximadamente 28 anos.
Após esse período que marcou o fim da incidência de violência direta em Moçambique, o conflito armado entre a Frelimo e a Renamo reacendeu, em 2012, com esparsos episódios de ataques armados e oficialmente, em 2013, quando Dhlakama abandonou o AGP (DEUTSCHE WELLE, 2013). A volta do conflito armado vinte anos depois não só reacendeu memórias passadas, mas também ressentimentos, um cenário que poderia ser facilmente lido como “uma guerra que parece não ter fim”.2 Para o escritor moçambicano Mia Couto, a razão da reincidência da conflitualidade é que não se discutiu profundamente na sociedade as razões daquela violência: “houve uma percepção das pessoas de que era melhor não mexer muito nessa caixa de fantasmas, que era uma paz frágil” (MUNIZ, 2014).
No seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, Mia Couto mistura presente e passado, permitindo-nos refletir sobre essa “guerra que parece não ter fim”. Argumentamos que tal assertiva merece três observações. Primeiro, reflete a ideia de continuidade entre a guerra colonial-libertação e a guerra civil entre a Frelimo e a Renamo, a qual pode ser fundamentada principalmente na lógica da ordem pós-colonial violenta proposta por João Paulo Borges Coelho (2003). Segundo, faz pensar não só a continuidade objetiva da guerra, mas também a subjetiva e a atemporal, ou seja, a continuidade da guerra através das memórias daquelas pessoas que a vivenciaram de forma direta ou indireta, e através da memória pública de forma mais geral. Por fim, a partir de uma visão conceitual ampla sobre guerra e violência, remete para a permanência de relações de colonialidade na sociedade moçambicana contemporânea.
Para construir tal análise a partir do romance Terra Sonâmbula, recorremos às gramáticas dos Estudos da Memória e do Pós-colonialismo, este sobretudo enquanto relação e prática social, e dividimos este artigo em três partes adicionais.3 Na seção que se segue, contextualizamos a obra de Mia Couto com especial enfoque no romance Terra Sonâmbula como parte da literatura pós-colonial em Moçambique. Na terceira parte, mergulhamos na ideia de “uma guerra que parece não ter fim” e na forma como Terra Sonâmbula a reflete. Em particular, mostramos como esta obra de Mia Couto nos ajuda a perceber a relação entre presente e passado marcados pela violência, examinando os elementos acima indicados — guerra de libertação-colonial e civil, memórias e colonialidade. Por fim, a última parte resume o argumento e apresenta algumas considerações finais.
Ao longo do período de guerra colonial-libertação, a literatura de expressão portuguesa dos países africanos estava fortemente atrelada ao nacionalismo e era concebida enquanto espelho do real. A grande referência histórica do colonialismo no continente africano é a Conferência de Berlim, que aconteceu em 1884/85, e foi responsável pela famosa partilha da África entre as potências europeias. A Conferência foi reflexo do colonialismo capitalista central e hegemônico do século XIX que tinha a Inglaterra como seu principal expoente. A partir de então, seguiram mudanças significativas na forma de colonização de Portugal que agora visava enquadrar-se como potência colonial e garantir o domínio de suas “províncias ultramarinas”. Para Boaventura de Sousa Santos, essa “estranha suspensão do tempo” resultou em jogos de temporalidades próprias que impactaram profundamente as identidades e sociabilidades dos colonizadores e dos colonizados (SANTOS, 2006, p. 216).4 Soma-se a isso as reflexões trazidas por Santos que, baseado na peça The Tempest, de William Shakespeare, definiu Portugal como um Próspero Calibanizado, sendo o Próspero uma representação metafórica para o colonizador e o Caliban para o colonizado. Dito de outra forma, Portugal seria um colonizador colonizado pois ao mesmo tempo em que era potência colonial nunca pôde se instalar definitivamente naquilo que Santos chamou de o “espaço-tempo originário do Próspero europeu” (SANTOS, 2006, p. 216). Neste sentido, não sendo plenamente nem Próspero nem Caliban, “restou-lhes a liminaridade e a fronteira, a interidentidade como identidade originária” (SANTOS, 2006, p. 216), algo que teve impactos profundos na literatura emergente dos países africanos de expressão portuguesa.
Enquanto no colonialismo hegemônico da Inglaterra, a polaridade entre colonizador e colonizado foi construída através de discursos coloniais homogêneos na zona de contato colonial, no colonialismo português uma hibridização particular permeou também tais discursos. É nesse contexto que se enquadram a política de assimilação e a ideias do lusotropicalismo de Gilberto Freyre, que defende as especificidades da colonização portuguesa de adaptação aos trópicos e miscigenação, e foi usada pelo império português, nos anos 1950, para legitimar os seus processos coloniais na África em uma conjuntura internacional cada vez mais hostil ao domínio colonial (CABAÇO, 2007). Dessa maneira, a literatura era usada como contra-argumento do poder colonial através de uma construção repleta de afirmação de binarismos que o discurso oficial de Portugal pretendia dissolver. Assim foi em Angola, com autores como Agostinho Neto e Viriato da Cruz e, em Moçambique, com escritores como José Craveirinha. O discurso era de resistência, anti-imperialista, nacionalista e anticolonialista. Destaca-se, em especial, que, nos anos 1960 e na maior parte dos anos 1970, os/as escritores/as moçambicanos/as trabalharam de maneira a ressaltar os binarismos para que assim pudesse se estabelecer o campo de uma diferenciação identitária que caracterizaria o campo do original, a identidade absolutamente única de um Moçambique independente (LARANJEIRAS, 1995; LOPES, 1998).
Já no período histórico pós-colonial, a literatura começa a sofrer profundas modificações em decorrência da transição e emancipação política desses países. Em Moçambique, esse processo começou a ocorrer com maior intensidade após a independência, em 1975, quando o monolitismo literário então vigente começou a ser abalado devido ao aproveitamento, por parte dos/as escritores/as, das brechas que começaram a existir para o tratamento de temas diferenciados e diversos (LARANJEIRAS, 1995). Não obstante, nesse contexto, a literatura ainda era marcada por temas de exaltação da independência e apologia à revolução característicos do momento de conflitualidade que vivia o país.
O escritor Antonio Emílio Leite Couto, o Mia Couto, é fruto desse contexto e tece uma espécie de negociação de saberes entre dois mundos, o colonial e o pós-colonial. Filho de pais portugueses, ele nasceu na cidade da Beira, região central de Moçambique. Biólogo de formação, foi jornalista e integrante da Frelimo nos anos 1970 e 1980, mas foi através da escrita que ganhou reconhecimento internacional. Os seus escritos fazem parte da construção de uma moçambicanidade, com elementos de criatividade e inventividade na linguagem que a diferencia no interior da língua portuguesa do colonizador (LARANJEIRAS, 1995).5 É nesse sentido que conseguimos compreender o movimento de trazer a oralidade para dentro da escrita e da língua literária como parte da construção da norma e de formas de expressão moçambicanas. Este espaço intermediário permite que o sujeito pós-colonial possa se expressar fora das tradicionais dicotomias, fazendo assim um caminho alternativo de enunciação (ROTHWELL, 2004). Esse caminho alternativo é parte da construção de uma possibilidade de transformação social em relação à manutenção de padrões de relacionamento colonial no país.
Outro elemento que merece destaque nas obras de Mia Couto é o da conflitualidade contemporânea de Moçambique. A forte presença da conflitualidade em diversos livros revela uma postura ativa de construção de memórias perante a caixa de fantasmas que a violência da guerra e a frágil paz representam. Em especial, em Terra Sonâmbula, seu primeiro romance, publicado em 1992, oferece um testemunho sobre a guerra civil que assolou Moçambique após os dez anos de uma densa guerra colonial-libertação. Terra Sonâmbula conta a história do encontro do velho Tuahir com o menino Muidinga provocado pela guerra civil moçambicana. Muidinga foi resgatado da morte em um campo de refugiados por Tuahir e, no caminho de fuga, ambos se deparam com um ônibus incendiado que passa a ser o abrigo deles. Em meio às vítimas do ônibus, ao lado de um dos corpos recém-carbonizados, os dois encontram uma mala que contém cartas que começam a ser lidas em voz alta por Muidinga. As cartas são os “Cadernos de Kindzu” e contam a história de Kindzu com início na época da independência e fio condutor a partir de sua viagem em busca dos naparamas, guerreiros tradicionais que lutam contra os “fazedores da guerra” (COUTO, 2008, p. 27). Através de capítulos alternados entre o presente de Tuahir e Muidinga narrado em terceira pessoa e os “Cadernos de Kindzu” em primeira pessoa, o livro é o encontro de histórias marcadas pela guerra, mas também de tradições e da capacidade de sonhar e de se reinventar em meio às adversidades do contexto político-social moçambicano.
A publicação de Terra Sonâmbula em 1992, além de ser um marco importante para a literatura moçambicana do período pós-independência, coincide com o fim da guerra e a assinatura do AGP. Esse período marca também a abertura política e econômica do país após anos de estagnação econômica e de conflitualidade. Na próxima seção, abordaremos, a partir desse romance, as dimensões de uma “guerra que parece não ter fim”.
Iniciamos a análise da ideia relativamente a “uma guerra que parece não ter fim” ao atentar para as conexões entre as guerras colonial-libertação e civil. Ao desenvolver a noção de “potencial de violência”, Borges Coelho examina as ex-colônias portuguesas — nomeadamente Angola, Guiné-Bissau e Moçambique — com o fim de identificar os fatores que, em conjunto, “favorecer[a]m o acumular de tensões nessas sociedades e fizeram com que elas se manifestassem de forma aberta após a independência” (BORGES COELHO, 2003, p. 175-176). Chamamos especial atenção para dois desses elementos. Primeiro, para os conflitos que existiram no seio da Frelimo durante a guerra colonial-libertação e que motivaram dissidências e a formação de outros movimentos, assim também como foram posteriormente utilizados como “percurso histórico justificador da […] existência” (BORGES COELHO, 2003, p. 176) da Renamo. Segundo, destaca-se a militarização da sociedade moçambicana de forma geral e particular, como explicado mais adiante, durante os dez anos de guerra colonial-libertação e a subsequente inscrição da violência como mecanismo de regulação social. Tais elementos podem facilmente ser vistos como alicerces de “uma guerra que parece não ter fim” ou, no limiar, como fatores que facilitaram a sua continuidade. Dito de outra forma, “tal como se diz que nos conflitos pós-coloniais, subsistiam ainda elementos dos conflitos coloniais do passado, também, inversamente, se pode dizer que no conflito colonial existiam já elementos importantes das guerras civis que se seguiriam” (BORGES COELHO, 2003, p. 177).
Com relação ao primeiro elemento, nomeadamente os conflitos que existiram no seio da Frelimo, no seu livro Lutar por Moçambique (1969), Eduardo Mondlane6 chama atenção para os problemas do tribalismo e do regionalismo tratados durante uma sessão do Comité Central da Frelimo em outubro de 1966. De acordo com Mondlane,
[O Comité] condenou vigorosamente as tendências tribalistas ou regionalistas que certos camaradas manifestaram na realização das suas tarefas, reafirmou solenemente que tais comportamentos são contrários aos interesses do povo moçambicano e impedem o desenvolvimento vitorioso da luta popular de libertação, e sublinhou que o combate ao tribalismo e ao regionalismo é tão importante como o combate ao próprio colonialismo, e salvaguarda a nossa unidade nacional e a nossa liberdade (MONDLANE, 1969, p. 130).
Figuras famosas da historiografia moçambicana como, por exemplo, Lázaro Kavandame e Uria Simango foram tidos como inimigos ao apresentarem tendências consideradas tribalistas ou regionalistas, e, como eles, existiram muitos outros. Com base em arquivos inéditos, o investigador moçambicano Sérgio Chichava (2018) sugere que, já em 1976, poucos meses após a independência em 1975, um movimento armado contra a Frelimo surgiu na província da Zambézia: o Partido Revolucionário de Moçambique (PRM). De acordo com o autor, o PRM foi o renascimento da União Nacional Africana de Rombézia (UNAR) e da União Nacional Moçambicana (UNAMO). Estes foram movimentos formados durante a guerra colonial-libertação por dissidentes da Frelimo e do Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO) que apoiavam a independência da “Rombézia” (CHICHAVA, 2018, p. 18). Deixando os detalhes destes vários movimentos à parte, é importante indicar que o PRM foi inicialmente liderado por Amós Sumane, antigo secretário da Frelimo para Assuntos Sociais, que deixou o movimento em 1966 e criou a UNAR em 1968 (CHICHAVA, 2018, p. 18-19). Ao defender, pelo menos inicialmente, a independência da “Rombézia” — região que hoje cobriria as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Tete, Nampula e Zambézia — a UNAR também era vista como tribalista.
Anos mais tarde, em 1982, o PRM uniu forças com a Renamo, marcando a entrada deste movimento na província da Zambézia durante a guerra civil. Sua origem e a existência ou não de uma base social em seu apoio ainda são motivos de grande debate entre acadêmicos. De forma muito simplificada, entende-se que o movimento surgiu na antiga Rodésia (hoje Zimbabué), foi apoiado pelo regime do Apartheid na África do Sul, e, ao longo dos anos, ganhou base social devido às políticas repressivas e autoritárias implementadas pela Frelimo no período pós-independência (MORIER-GENOUD et al., 2018). Ademais, nota-se que os fundadores da Renamo, enquanto movimento de guerrilha, “foram, na verdade, ex-militares de baixa ou média patente da FPLM (Forças Populares de Libertação de Moçambique)” (CAHEN, 2018, p. 143), ou, em outras palavras, ex-apoiantes da Frelimo.
Através de seus personagens, Mia Couto resgata tais movimentos e permite a reflexão acerca dos mesmos. No início de Terra Sonâmbula, o menino Kindzu diz: “O tempo passeava com mansas lentidões quando chegou a guerra. Meu pai dizia que era confusão vinda de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilégios” (COUTO, 2008, p. 7). Ao ler essa digressão do menino Kindzu, a associação óbvia, ou pelo menos a mais simples, parece ser aquela com a Renamo principalmente quando focamos na expressão “confusão vinda de fora”. Mas é importante lembrar que outros movimentos também receberam apoios (mesmo que mínimos) como o suposto apoio do Malawi em operações propagandísticas da UNAR (CHICHAVA, 2018, p. 19). Outro elemento que chama a atenção é o ligado à questão “[d]aqueles que tinham perdido seus privilégios”. Um leitor mais atento e conhecedor dos muitos conflitos que existiram no seio da Frelimo ou mesmo entre os diferentes movimentos pró-independência também poderá refletir sobre este elemento ao ler essa passagem.
Ademais, retomando o segundo elemento indicado por Borges Coelho como forma de evidenciar a continuidade da guerra, é importante lembrar que o autor aponta como a guerra colonial-libertação levou a militarização geral e específica da sociedade moçambicana. Em relação à militarização geral, o autor faz referência ao armamento da população no meio rural, nomeadamente dos “homens [considerados] válidos das aldeias, organizados pelas suas chefias e armados com as suas armas, para realizarem movimentações ditas de auto-defesa e de perseguição e detecção de combatentes nacionalistas” (BORGES COELHO, 2003, p. 179). No caso de Moçambique, essa militarização geral traduziu-se em grupos de camponeses mal treinados e armados que acompanhavam a formação e, posteriormente, cuidavam da “autodefesa” dos aldeamentos. Com relação à militarização específica, Borges Coelho apresenta como as autoridades coloniais também fizeram uso do recrutamento local com o treinamento formal de soldados para as forças militares regulares (2003, p. 181). Como consequência desses processos, o autor conclui que “a extrema militarização induzida pelas autoridades coloniais portuguesas no seu esforço de guerra deixou um legado de contornos ainda não inteiramente circunscritos mas que, pelo seu potencial de violência, constituiu poderoso factor alimentador dos conflitos pós-coloniais” (BORGES COELHO, 2003, p. 193).
Em termos concretos, esse potencial de violência materializou-se através da existência de armas no seio da população, na disponibilidade de pessoal com treino militar especializado e, de forma mais ampla, na inscrição da violência como forma de regulação social. Essa presença “quase onipresente” da violência e as diferentes formas que a mesma assumiu durante a guerra civil é também retratada em Terra Sonâmbula. Os trechos abaixo servem como exemplos.
Os bandidos sempre raptavam as crianças. Foi assim que se decidiu transferir os jovens para um outro campo (COUTO, 2008, p. 108).
Entram no autocarro. O corredor e os bancos estão ainda cobertos de corpos carbonizados. Muidinga se recusa a entrar. O velho avança pelo corredor, vai espreitando os cantos da viatura (COUTO, 2008, p. 3).
Uma noite os bandidos atacaram a loja do indiano, roubaram os panos, queimaram o edifício. A notícia correu rápido (COUTO, 2008, p. 13).
O primeiro trecho chama a atenção para o recrutamento forçado, e muitas vezes abusivo e coercitivo, de crianças pelos diferentes atores da guerra — Frelimo e Renamo (BOOTHBY, 2011), enquanto o segundo e o terceiro retratam os ataques diretos sofridos pela população em geral para a pilhagem de recursos, ou como forma de controle para inibir a proteção ou a assistência ao grupo opositor.
Além disso, através da fala de um de seus personagens, Mia Couto retrata como as guerras, ou melhor, como “uma guerra que parece não ter fim”, trouxe morte, destruição e dor aos moçambicanos. Diz Kindzu: “Fecho os olhos e só vejo mortos, vejo a morte dos vivos, a morte dos mortos” (COUTO, 2008, p. 15). Durante a guerra colonial-libertação, estima-se que aproximadamente entre 750.000 e um milhão de pessoas tenham sido forçadamente deslocadas para os chamados aldeamentos — campos rurais fechados criados pelos portugueses com a justificativa de fomentar o desenvolvimento econômico e social, mas com o real propósito de evitar que a Frelimo tivesse acesso aos civis, aumentando a insurgência contra o domínio colonial (JUNDANIAN, 1974). Muitas das mortes de civis são associadas aos aldeamentos, dentre outros motivos, devido às péssimas condições dos mesmos e à falta de alimentação. Além disso, apesar da dificuldade em obter os números reais, calcula-se que o número de civis mortos varia entre os 30.000 a 40.000 (MAE, 2015). Já no período de 1976-1992, estima-se que a guerra tenha feito um milhão de vítimas diretas e indiretas (HANLON, 1991).7 De acordo com dados da UNICEF, no início dos anos 1990, 90% da população estava vivendo na pobreza, com 60% vivendo em pobreza absoluta (NORDSTROM, 1997).
Os cenários de destruição, sofrimento e exaustão retratados em Terra Sonâmbula fazem parte da história do país assim como da memória pública dos/as moçambicanos/as.8 Essas múltiplas memórias servem de fonte para as diferentes narrativas que, naturalmente, surgiram e continuam a ser reproduzidas na sequência de eventos traumáticos como a de “uma guerra que não parece ter fim” em Moçambique.
Ao tratarmos de memórias, Elizabeth Jelin nos lembra que “é impossível encontrar uma memória ou uma única visão e interpretação do passado compartilhada por toda a sociedade” (JELIN, 2003, p. xviii). Quando olhamos para Moçambique, observamos diferentes versões sobre as causas e as motivações tanto da guerra colonial-libertação quanto da guerra civil entre a Frelimo e a Renamo. Essas diferentes versões do passado resultam da agência dos chamados “empreendedores da memória”, ou seja, daqueles “que buscam reconhecimento social e legitimidade política de uma interpretação ou narrativa do passado” (JELIN, 2003, p. 33-34). Ao considerarmos a relevância do romance Terra Sonâmbula, propomos o alargamento do conceito de “empreendedores da memória” para incluir também o papel de escritores/as, ou seja, da literatura como promotora de diferentes versões ou narrativas de memória. Não necessariamente no sentido de buscar legitimidade social e política, mas como janela para que diferentes vozes do passado possam contribuir na construção de diferentes leituras do mesmo.
Neste sentido, podemos dizer que, em Terra Sonâmbula, Mia Couto usa o presente para tratar do passado, ao chamar atenção para algumas raízes do conflito civil, ao mesmo tempo em que retrata como esse passado passa por processos de memorialização através da construção e da reprodução de diferentes narrativas acerca do mesmo. Por um lado, as autoridades da Frelimo retratam a guerra civil como uma extensão da guerra de agressão externa, inicialmente liderada pela Rodésia, e depois continuada pelo regime do Apartheid na África do Sul, ou, de forma mais simples, uma guerra de desestabilização. Por outro lado, ao caracterizar a guerra civil como uma batalha pela democracia, a Renamo enfatiza o elemento interno da mesma, nomeadamente como uma resposta violenta desencadeada pelo regime autoritário pós-independência da Frelimo com suas políticas repressivas. Ao fazer referência inúmeras vezes ao longo do livro aos “bandidos armados” (ex-guerrilheiros da Renamo) ou mesmo aos “Matsangas”9 — “designação pela qual são conhecidos os bandidos armados” (COUTO, 2008, p. 27) —, Mia Couto retrata uma sociedade em que a narrativa da Frelimo ou da guerra de desestabilização, em que os ex-combatentes da Renamo são caracterizados como bandidos armados, era e continua a ser dominante. Declarações como a que se segue do ex-presidente Joaquim Chissano são bastante comuns no país: “Eles dizem que estavam a opor-se ao comunismo, à ditadura, mas esta guerra de desestabilização começa apenas seis meses [depois de proclamada a independência], não tinham visto como a FRELIMO ia governar, portanto estavam já com ideias pré-concebidas e começam a lutar contra nós” (CHISSANO, 2012, p. 6).
Além de chamar a atenção para as múltiplas formas de memorialização do passado violento moçambicano, Terra Sonâmbula também abre espaço, como já referido, para o retrato das vozes individuais daqueles que viram ou experimentaram tais momentos de violência na pele. Apesar das violações de direitos humanos e dos crimes de guerra cometidos durante a guerra civil, logo após a assinatura do AGP, a elite política moçambicana concordou em ignorar os mesmos e optou pela aprovação da Lei de Amnistia 15/92, a qual eximiu ex-combatentes da Frelimo e da Renamo de qualquer responsabilidade pelos atos cometidos de 1979 a 1992.10 Dito de outra forma, “como resultado da amnistia, ninguém foi julgado ou punido pelos abusos dos direitos humanos ou pelos crimes de guerra cometidos durante o conflito armado. [Também] não houve investigações e nenhuma comissão da verdade foi estabelecida” (BUENO, 2019, p. 431). Ao retratar cenas de violência e destruição vivenciados por muitos ao longo da guerra, Terra Sonâmbula dá voz a muitas vítimas que não tiveram suas dores ouvidas e reconhecidas, assim também como aponta para muitos crimes e abusos que não foram investigados e esclarecidos. Exemplos no livro abundam. Destaca-se alguns deles abaixo:
Pai eu não aguento aqui. Fecho os olhos e só vejo mortos, vejo a morte dos vivos, a morte dos mortos (COUTO, 2008, p. 15).
Olha lhe vou dizer uma coisa: seus pais faleceram. Sim, eles foram mortos com balas de bandidos (COUTO, 2008, p. 28).
Consoante as pobres gentes fugiam também os bandidos vinham em seu rastro como hienas perseguindo agonizantes gazelas (COUTO, 2008, p. 31).
Não obstante, apesar de fazer alusão a esses aspectos mais evidentes e visíveis da conflitualidade, algo que nos remete diretamente às formas de expressão da violência armada, Terra Sonâmbula também subverte a narrativa tradicional do conflito e da guerra e aponta para a complexidade dos padrões de opressão e desafios que Moçambique enfrenta no período pós-colonial.
Terra Sonâmbula retrata uma “guerra que parece não ter fim” também através da expressão da permanência de relações de colonialidade na sociedade moçambicana contemporânea. Para avançar essa terceira dimensão do argumento, faremos uma breve discussão conceitual em torno dos conceitos de paz e de violência (e, consequentemente, de guerra) que são aqui compreendidos como representando um continuum (FREIRE; LOPES, 2008), ao invés de concebidos como elementos estanques e contraditórios.
A abordagem tradicional da narrativa da guerra é conceitualmente estreita e parte da premissa hobbesiana de que a natureza humana é violenta e, portanto, não passível de transformação. Ela foi desenvolvida para explicar uma conflitualidade de matriz vestefaliana que correspondeu à construção do Estado moderno, territorial, centralizado e hierarquicamente ordenado (MOURA, 2005) e que, por esse motivo, não é adequada para a análise de cenários de conflitualidade contemporânea que muitas vezes se expressam no âmbito interno de Estados recém-independentes. Em contraposição a essa narrativa tradicional, contribuições como as da tradição teórica crítica dos Estudos para a Paz evidenciam como os conceitos de paz e violência possuem escopo alargado, multidimensional e um forte caráter normativo (PUREZA; MOURA, 2005). Assim, a paz pode ser compreendida como algo que vai além da ausência de guerra, incorporando a ideia de paz como justiça social (GALTUNG, 1964). Neste sentido, a ausência de violência física e direta quando os “meios de realização não são retidos, mas diretamente destruídos” (GALTUNG, 1969, p. 169) não significa necessariamente a existência de um contexto de paz. Dessa forma, esta abordagem rompe a visão dicotômica entre paz e guerra e possibilita um entendimento crítico sobre a guerra e a conflitualidade a partir de um conceito de violência que vai muito além de eventos brutais e espetaculares de violência física, e incorpora as violências estrutural e cultural (GALTUNG, 1990). As desigualdades de oportunidade, a exploração e a marginalização de populações evidenciam formas de violência estruturais e culturais que são obstáculos para a paz.
Moçambique, apesar dos episódios de conflitualidade armada recentes,11 foi enquadrado internacionalmente, no período pós-acordo de paz de 1992, como um país pacífico. Não obstante, essa classificação não considera cenários nos quais a população moçambicana é alvo de uma diversidade de formas de violência (LAMAS, 2018). No período pós-guerra, o desempenho de Moçambique foi usado como exemplo de sucesso pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e comunidade de doadores internacionais (IDA, 2009; NUCIFORA; SILVA, 2011). O “queridinho dos doadores” (HANLON, 2010) também foi retratado como um caso de sucesso de reconstrução pós-guerra (ASTILL-BROWN; WEIMER, 2010; PNUD, 2005), principalmente devido à estabilidade política pós-acordo de paz e aos indicadores macroeconômicos que mostravam uma recuperação econômica substancial em relação ao estado da economia pré-reformas de liberalização econômica (MASCHIETTO, 2016, p. 119; PHIRI, 2012). Não obstante, esta narrativa do caso de sucesso e de país pacífico é desacreditada pelo paradoxo central da economia política contemporânea do país: apesar de o crescimento econômico entre a década passada e 201612 ter girado em torno dos 7% e a inflação ter se mantido controlada (dois dos mais importantes indicadores macroeconômicos), a desigualdade tem-se acentuado nos últimos seis anos e estima-se que mais de 50% da população viva com menos de um dólar americano por dia (SANTOS et al., 2016). Há uma importante disparidade entre os altos índices de crescimento econômico e a estagnação dos níveis de pobreza notada principalmente a partir de 2010. Uma importante parcela da população sofre com doenças como a malária e o HIV e não possui acesso a infraestruturas básicas como água potável, centros médicos e escolas (BRITO; CHIVULELE, 2017, p. 267-270; CUNGUARA, 2012; HANLON; SMART, 2008). O país é considerado como de baixo desenvolvimento humano (PNUD, 2019).
Assim, a partir da consideração dessa multiplicidade de formas de violência, com destaque para a violência estrutural característica de uma sociedade profundamente desigual, é possível dizer que existe uma continuidade não só entre a guerra colonial-libertação e a guerra civil (marcadas pela violência direta e pela conflitualidade armada), mas também uma permanência do colonialismo em Moçambique, mesmo com o seu fim enquanto processo histórico caracterizado pela ocupação territorial estrangeira. Essa continuidade pode ser compreendida a partir de abordagens pós-coloniais que entendem que o “fim do colonialismo enquanto relação política não acarretou o fim do colonialismo enquanto relação social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritária e discriminatória” (SANTOS, 2008, p. 8). A persistência de relações de desigualdade e padrões de opressão faz com que seja difícil saber até que ponto vivemos em sociedades pós-coloniais.
Fomos todos tão socializados na ideia de que as lutas de libertação anti-colonial do século XX puseram fim ao colonialismo que é quase uma heresia pensar que afinal o colonialismo não acabou, apenas mudou de forma ou de roupagem, e que a nossa dificuldade é sobretudo a de nomear adequadamente este complexo processo de continuidade e mudança (SANTOS, 2019, s.p.).
Como também acontece em outros contextos, em Moçambique, o colonialismo enquanto relação socioeconômica sobreviveu ao fim formal do colonialismo enquanto relação política. Isso fez com que os padrões estruturais de violência, opressão e discriminação se mantivessem e se reinventassem. Sendo assim, entendemos que Terra Sonâmbula dialoga com o pós-colonialismo não apenas por ter sido escrito majoritariamente em um momento histórico, marco temporal e político, que sucedeu o colonialismo, mas também por ser uma forma de expressão de fenômenos de injustiça social que a sociedade moçambicana enfrenta na atualidade. Algumas das engrenagens de continuidade do colonialismo são expostas através do retrato de agentes internos diretamente relacionados à perpetuação de violências e de padrões de desigualdade na sociedade moçambicana. Um dos exemplos mais evidentes é o neologismo “administraidor”, empregado para se referir ao administrador da vila de Matimati, um antigo guerrilheiro cheio de ideais que se burocratizou e se corrompeu. A referência ao representante do governo corrompido que faz uma aliança com o fantasma de um colono português, o Romão Pinto, é uma crítica aberta às contradições políticas do período pós-colonial.
Ademais, em Terra Sonâmbula, Mia Couto ressignifica, por meio de cenas e de situações fantasiosas que remetem ao uso de elementos do realismo mágico, a recente história pós-colonial de Moçambique. Essa pode ser entendida como uma estratégia estético-ideológica que visa protestar contra as distorções e incoerências presentes tanto no passado colonial, expresso indiretamente através da personagem Tuahir, que o viveu, é marcado por ele, mas evita falar sobre, mesmo perante as frequentes indagações de Muidinga, como no presente desolador de uma brutal guerra civil que assola o país com grande impacto na vida de todos ali presentes. Dessa forma, Terra Sonâmbula entrelaça duas histórias diferentes, uma do presente e outra do passado, retratando assim as frustrações dos sonhos revolucionários de um país recém-independente, mas repleto de conflitualidade. O destino conturbado de Moçambique pós-colonial é representado através da cena em que o velho Taímo, pai de Kindzu, anuncia a independência do país — narrada por Kindzu:
Naquela altura, nós nem sabíamos o verdadeiro significado daquele anúncio. Mas havia na voz do velho uma emoção tão funda, parecia estar ali a consumação de todos seus sonhos. Chamou minha mãe e, tocando sua barriga redonda como lua cheia, disse: — Esta criança há-de ser chamada de Vinticinco de Junho (COUTO, 2008, p. 16).
Na sequência, Taímo comunica à família o seu sonho premonitório de que Junhito, como acabou chamando o filho mais novo do casal em homenagem ao dia da independência que ocorreu em 25 de junho de 1975, iria morrer na guerra. E, como forma de evitar o seu destino, Taímo ordena que Junhito deveria passar a viver no galinheiro. Algum tempo depois, o destino de morte anunciada de Junhito acabou sendo supostamente consumado com o seu desaparecimento do galinheiro. Neste sentido, a morte/desaparecimento de Junhito pode ser entendida simbolicamente como o apagamento dos sonhos e das esperanças associados à Moçambique independente. Nessa mesma linha de raciocínio, em outro trecho em que narra a morte de uma baleia encalhada na praia, Kindzu diz: “Agora eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si” (COUTO, 2008, p. 23).
As linhas teóricas pós-coloniais também possuem uma dimensão normativa importante na construção de caminhos para ultrapassar a persistência das relações coloniais. Assim, a obra de Mia Couto também dialoga com o pós-colonialismo por contribuir ativamente para a construção de meios para ultrapassar estas relações pós-coloniais desiguais. Ou seja, prevê e contribui ativamente para a possibilidade de transformação social. Nesse sentido, à medida que Muidinga avança sobre os “Cadernos de Kindzu”, a estrada paralisada pela guerra se transforma conforme anunciado por Tuahir no prefácio do livro: “O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro” (COUTO, 2008, p. 5). A possibilidade de sonhar provocada pela história de Kindzu constitui no romance reais mudanças na paisagem do presente, o que faz alusão ao papel do próprio romance e da literatura pós-colonial em Moçambique.
Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho.
Crenças dos habitantes de Matimati
(COUTO, 2008, p. 5).
Moçambique viveu, durante a maior parte da sua história enquanto país independente, em conflito. Através das abordagens dos Estudos da Memória e do Pós-colonialismo, procuramos mostrar como Terra Sonâmbula reflete sobre uma “guerra que parece não ter fim” a partir de três dimensões. Uma primeira, desenvolvida sobretudo a partir do trabalho de João Paulo Borges Coelho, que diz respeito à existência de uma continuidade entre a guerra colonial-libertação e a guerra civil entre a Frelimo e Renamo. Uma segunda, que entende essa continuidade da guerra a partir das memórias das pessoas que a vivenciaram de maneira direta e indireta, bem como da memória pública dos moçambicanos. Neste âmbito, destacamos como o papel do escritor é de grande valia uma vez que pode ser entendido como um “empreendedor da memória”. E, por fim, a ideia baseada na abordagem pós-colonial de que existe uma permanência de relações de colonialidade na sociedade moçambicana contemporânea.
Os episódios recentes de conflitualidade armada em Moçambique apontam para o que Mia Couto diz ser uma “memória mal resolvida” da guerra (MUNIZ, 2014). Especialmente nesse contexto, se faz necessária a literatura pós-colonial do escritor, que procura revisitar esse passado marcado pela guerra e pela dominação colonial, ao mesmo tempo em que evidencia as contradições contemporâneas da paz e a permanência de relações de colonialidade através de novas roupagens em Moçambique. Não obstante, a obra de Mia Couto também constrói possibilidades de transformação através de narrativas alternativas. Como implícito no trecho do prefácio do livro citado no início desta seção, o título Terra Sonâmbula faz alusão a uma terra que nunca descansa e remete para a possibilidade de sonhar em meio à instabilidade do país.
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Não há consenso entre os estudiosos em relação à origem da guerra. Acerca desse debate, ver, por exemplo, Hanlon (1990); Vines (1991); Geffray (1991); Pereira (2006); e Morier-Genoud et al. (2018).↩︎
Vale indicar que as aspas aqui utilizadas têm apenas o efeito de ênfase, uma vez que a proposição de uma “guerra que parece não ter fim” é da autoria das proponentes do presente texto.↩︎
Este texto resulta em parte do trabalho desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, no âmbito do projeto CROME — Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio: as guerras coloniais e de libertação em tempos pós-coloniais, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no contexto do Programa Quadro Comunitário de Investigação e Inovação “Horizonte 2020”, da União Europeia, com a referência 715593.↩︎
O pesquisador Eduardo Lourenço também chama atenção para este fato quando observa que o império português só “tomou forma metropolitana quando se tornou objeto de disputa intereuropéia”, o que constituiu “uma das mais sentidas humilhações da história do país” que se deu conta de que não pesava nada “na balança da Europa civilizada e imperialista” (LOURENÇO, 2012, p. 46).↩︎
É importante mencionar o debate intenso que existe sobre os privilégios decorrentes da posição social que Mia Couto ocupa dentro da sociedade moçambicana e o questionamento sobre a sua legitimidade enquanto representante de uma moçambicanidade. Acerca deste debate, ver, por exemplo, Chabal (1994).↩︎
Eduardo Mondlane é celebrado em Moçambique como o arquiteto da unidade nacional, uma vez que, de acordo com a história oficial, foi o responsável por reunir os movimentos menores que formaram a Frelimo em 25 de junho de 1962. Segundo Mondlane, “as primeiras tentativas de criação de um movimento nacionalista à nível nacional foram feitas por moçambicanos que trabalhavam nos países vizinhos, onde estavam fora do alcance imediato da PIDE. No início, o velho problema de comunicações levou à criação de três movimentos separados: UDENAMO (União Nacional Democrática de Moçambique) formada em 1960 em Salisbury; MANU (Mozambique African National Union), formada em 1961, a partir de vários pequenos grupos já existentes entre os moçambicanos trabalhando no Tanganhica e Quênia, sendo um dos maiores a Mozambique Makonde Union; A UNAMI (União Africana de Moçambique Independente) fundada por exilados da região de Tete que viviam no Malawi” (MONDLANE, 1969, p. 99).↩︎
Estima-se que, enquanto a Renamo matou entre 50.000 e 200.000 pessoas, a grande maioria das pessoas morreram de causas relacionadas à guerra, como fome e doença (HULTMAN, 2009).↩︎
Neste artigo, entende-se memória pública como a “circulação de lembranças entre os membros de uma determinada comunidade. Essas lembranças estão longe de ser registros perfeitos do passado; em vez disso, envolvem o que lembramos, as maneiras como o enquadramos e quais aspectos esquecemos. De modo geral, a memória pública difere das histórias oficiais porque a primeira é mais informal, diversa e mutável, enquanto a última é frequentemente apresentada como formal, singular e estável” (HOUDEK; PHILLIPS, 2017, p. 1).↩︎
Uma figura emblemática para os seguidores da Renamo, André Matsangaíssa é considerado o fundador da Renamo e admirado por iniciar a guerrilha contra a Frelimo.↩︎
Para o conteúdo completo da Lei de Amnistia 15/92, ver Boletim da República (BR), 1992. ‘I Série — Número 42. Quarta-feira, 14 de Outubro 1992’.↩︎
O retorno do conflito armado, em 2012, deu origem ao Acordo de Cessação das Hostilidades, assinado no dia 5 de setembro de 2014 pelo então presidente de Moçambique, Armando Guebuza, e o líder da Renamo, Dhlakama, permitindo a realização das eleições gerais de outubro de 2014. Por diferentes razões, dentre as quais a recusa da Renamo em aceitar os resultados eleitorais, acusando a Frelimo de fraude, os ataques armados recomeçaram pouco tempo depois das eleições. Depois de diversos processos de negociações com mediadores internacionais e nacionais, um terceiro acordo de paz — O Acordo de Paz e Reconciliação de Maputo — foi assinado no dia 6 de agosto de 2019 pelo atual presidente de Moçambique e presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, e pelo novo líder da Renamo, Ossufo Momade. Apesar de aclamado como o acordo de paz definitiva, sua efetividade segue ameaçada por diferentes motivos, dentre eles, a autoproclamada Junta Militar — grupo de guerrilheiros dissidentes da Renamo e liderados pelo general Mariano Nhongo — que considera a assinatura de tal acordo nula (WEIMER; BUENO, 2020).↩︎
Houve uma forte desaceleração do crescimento no ano de 2016 que, na média, ficou em 3,8%. Não obstante, segundo o relatório do Banco Mundial, 2017 mostrou sinais de melhoria principalmente devido ao aumento nos preços das matérias-primas e a recuperação da indústria do carvão (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 1).↩︎
Resumo:
Em 4 de outubro de 1992, foi assinado o Acordo Geral de Paz (AGP), pondo fim ao conflito armado que assolou Moçambique por dezesseis anos (1976-1992). Apesar deste dia ser celebrado como o dia da Paz e da Reconciliação e oficialmente marcar o fim da guerra entre a Frelimo e a Renamo, ele também pode ser visto, de forma mais ampla, como o fim de uma era de violência direta e de conflito armado que começou com a Luta Armada de Libertação Nacional (1964-1974) contra o colonialismo português. No romance Terra Sonâmbula, Mia Couto entrelaça duas histórias diferentes, misturando o presente e o passado, e narra a destruição causada por essa “guerra que parece não ter fim”. Argumentamos, assim, que o romance expressa uma ideia de continuidade da guerra em Moçambique que se traduz através de três dimensões: das ligações entre a guerra colonial-libertação e a guerra civil; das memórias daquelas pessoas que a vivenciaram de forma direta ou indireta e da memória pública de forma mais geral; e, por fim, através da permanência de relações de colonialidade na sociedade moçambicana contemporânea. Para construir essa análise, recorremos ao romance Terra Sonâmbula e às gramáticas dos Pós-colonialismo e dos Estudos da Memória.
Palavras-chave:
Moçambique; Mia Couto; Guerra Civil; Luta de Libertação; Memória.
Abstract:
On 4 October 1992, the General Peace Agreement (GPA) was signed bringing to an end the armed conflict that plagued Mozambique for sixteen years (1976-1992). Even though this day is celebrated as the Day of Peace and Reconciliation, officially marking the end of the war between Frelimo and Renamo, it can also be seen, more broadly, as the end of an era of direct violence and armed conflict that had began with the National Armed Liberation Struggle (1964-1974) against Portuguese colonialism. In his novel Terra Sonâmbula, Mia Couto intertwines two different stories, combining present and past, and uncovers the destruction caused by this “war that seems to have no end”. We argue that this idea of continuity of the war in Mozambique can be understood through three different ways: through the links between the colonial-liberation war and the civil war; through the individual memories of those people who experienced it directly or indirectly and, more broadly, through public memory; and, finally, through the endurance of colonial relations in contemporary Mozambican society. To build our analysis, we drawn on Terra Sonâmbula and on the scholarships on Post-colonialism and Memory Studies.
Keywords:
Mozambique; Mia Couto; Civil War; Liberation Struggle; Memory.
Recebido para publicação em 30/10/2020
Aceito em 29/01/2021