Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.d04
ISSN: 2318-4620
Memórias de guerra:
(res)sentimentos e revolta na escrita de Langidila
Mateus Pedro Pimpão António
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
mateuspimpao@yahoo.com.br
Nosso estudo está baseado em duas obras, nomeadamente: Diário de um exílio sem regresso (2003) e Cartas de Langidila e outros documentos (2004), ambas da ex-guerrilheira angolana Deolinda Rodrigues (1939-1967).1 Refletindo, num sentido amplo, sobre as memórias da guerra colonial, pretendemos analisar especificamente sobre como a escrita de Deolinda Rodrigues faz emergir os (res)sentimentos e a revolta dos angolanos contra o sistema colonial português no início da primeira metade do século XX.
A expressão ressentimento, em sua concepção etimológica, deriva do verbo “ressentir”, que significa o ato de sentir novamente. Esse sentimento que se instaura no psiquismo humano deve-se a uma impressão motivada por um estímulo externo na afetividade pessoal, que não apenas é sentido, mas (res)sentido, mesmo quando já não mais existe, ao menos externamente, pois, internamente, ou seja, no íntimo desse sujeito, ele permanece a produzir seus efeitos. O ressentimento é, assim, visto como um transtorno psicológico, uma espécie de vontade doentiamente vingativa de um sujeito recalcado que transfere as responsabilidades de seu sofrimento para outrem.
No Diário e nas Cartas de Deolinda Rodrigues, repetem-se as perseguições, a fome, as agressões físicas e morais, as prisões, a desumanização, a violência em geral, as mortes, a dor, os desabafos, as sentenças enfáticas etc. De modo geral, poderemos verificar que o ressentimento do sujeito, nas obras de Deolinda Rodrigues, se evidencia não apenas pelas reações psicossomáticas do sujeito, decorrentes das repetições das práticas bárbaras do colonizador, mas também pela repetição dessas práticas na própria escrita.
A despeito das diferenças em suas estruturas composicionais, o Diário e as Cartas de Deolinda Rodrigues expressam um exercício pessoal em que se desvela a “alma” de um sujeito traumatizado. Esse desvelar da “alma” aponta para a finalidade dessas escritas do eu, também conhecidas como escritas autobiográficas: a subjetivação do discurso e a constituição de si.
Essa subjetivação do discurso é apresentada em seu desdobramento por Leonor Arfuch. Se antes os leitores tinham que lidar com representações fabulosas em torno de personagens míticas ou imaginárias, hoje eles encontram um novo e apaixonado tema de ilustração: “a representação de si mesmos nos costumes cotidianos e o desenho de uma moralidade menos ligada ao teologal”. (ARFUCH, 2010, p. 45). O sujeito passa a ser visto dentro de uma esfera outra, a esfera do íntimo privado que faz emergir essas narrativas. É nesse lugar outro que o sujeito se revela como outridade — um si mesmo como outro construído imaginariamente, ou ainda, usando uma expressão de Leonor Arfuch, “a outridade de si mesmo”. (ARFUCH, 2010, p. 70). Tais construções de subjetividades querem romper com uma barreira que se ergue diante do sujeito, impedindo-lhe a reconstrução de sua história, a reconstrução de si mesmo. É nisso que se enquadram o Diário e as Cartas de Deolinda.
Em um artigo intitulado The writer’s diary as borderland: the public and private selves of Virginia Woolf, Katherine Mansfield, and Louisa May Alcott, Meg Jensen (2012) elege uma expressão de Guerra para mostrar o funcionamento das subjetividades nos diários de Woolf, bem como a sua preocupação em inovar em suas narrativas e com o crescimento de sua reputação literária. Ela afirma: “os diários de Woolf são tanto o campo de batalha em que ela se confronta quanto a fronteira entre essas preocupações”. (JENSEN, 2012, p. 3, tradução nossa).2 Para Meg Jensen, os diários de Woolf, bem como os de Mansfield e Alcott, não são apenas um campo de batalha dos eus, mas também, e principalmente, locais transformadores: “Seus diários funcionavam como locais transformadores nos quais as preocupações pessoais se transformavam em artefatos textuais”. (JENSEN, 2012, p. 2, tradução nossa).3
Esses locais transformadores se configuram como espaços que propiciam uma maneira possível de viver; funcionam como locais de autolegitimação. E essas escritas podem ser tidas como vivificantes. Em seu artigo intitulado Fronteiras de identidades: a escrita do eu em O diário de Anne Frank, Denise Borille de Abreu afirma que esse tipo de escrita, que ela chama de escrita de vida,
pode vir a propiciar ao sujeito traumatizado a oportunidade de reconstruir uma história e também a si próprio, agregando certa linearidade a uma história que, devido à intensidade de um encontro com o Design traumático, não teve início, meio e fim. (ABREU, 2016, p. 2).
Um ponto a ser notado na afirmação acima é que é o sujeito quem tenta buscar linearidade para a sua história, devido ao trauma sofrido. O acontecimento traumático provoca uma fragmentação no sujeito. A escrita de vida, que lida com os sujeitos que tentam conciliar o eu fragmentado, se propõe a transcender esse eu esfacelado e busca unir os pedaços estilhaçados pela experiência traumática. Nesse sentido, concordamos com Pedro Galas Araújo quando afirma que
a escrita de si na contemporaneidade funciona como uma busca para conciliar os cacos da fragmentação decorridos dessa crise. A narrativa do eu é uma tentativa de recuperar e fixar a imagem, sempre dispersa, de um eu coeso, uno, constante. No caos das sociedades contemporâneas, a escrita de si sinaliza para uma tentativa de organização do eu pós-moderno, descentrado, fragmentado, cujas identidades múltiplas giram ao redor de um núcleo caótico e mutante. E, além disso, ela busca também registrar a experiência fugaz do cotidiano. (ARAÚJO, 2011, 20).
É feita a reconexão dos estilhaços do passado por meio de uma tecitura que luta para dar-lhe certa linearidade. Esse trabalho, que é feito por meio da linguagem, se apresenta como um local da realização do eu. O ato de escrever, por ser a narração da própria vida como expressão de intimidade e afirmação do eu, possibilita a existência da pessoa que narra, da pessoa que luta para (sobre)viver, da pessoa ressentida e revoltada contra um sistema colonial bárbaro.
O sistema colonial, em última análise, é basicamente “o domínio pela força de um povo, domínio exercido por um poder externo” (YOUNG, 2005, p. 202), visto como se fosse uma qualidade que torna o colonizador superior e melhor em relação aos nativos. Atos bárbaros na história, como os do sistema colonial, são perpetrados em nome da civilização, instaurando-se uma relação entre civilização e barbárie. A civilização está relacionada à acepção inicial da “cultura”, que, gradualmente, “inclui um processo social mais abstrato e geral” (YOUNG, 2005, p. 37), ou seja, é “o lado intelectual da civilização, o inteligível contra o material” (YOUNG, 2005, p. 37). Esse e todo e qualquer discurso colonial, observa Robert J. C. Young (2005, p. 198), operam “não apenas como uma construção instrumental de conhecimento, mas também segundo os protocolos ambivalentes de fantasia e desejo”. O colonizador, por ver uma terra próspera e um povo supostamente desprovido de “cultura”, pois não é civilizado, deseja-a e se apropria dela. O desejo colonial, baseado na relação de poder, apresenta formas múltiplas e “ambivalentes”, pois descreve a flutuação contínua entre o desejo colonial pela terra de Angola e a sua rejeição, pela barbárie (YOUNG, 2005).
Na escrita de Deolinda Rodrigues, os nativos, ressentidos, pois despertaram para a possibilidade de revidar, tentam retomar o que é seu: suas terras e sua dignidade. Nesse sentido, dizendo com Nietzsche (2013), os angolanos seriam um povo do ressentimento, e a luta pela libertação, um movimento de ressentimento. Esse movimento revela que o ódio interiorizado e denegado, a inveja, o ciúme assassino e o desejo de vingança estão a ser metamorfoseados em valor positivo. O sujeito deixa de se vingar imaginariamente para esboçar uma reação vingativa real que o leva a empunhar o fuzil da liberdade. O ressentimento conduz os angolanos à ação, à revolta, num ato de cumplicidade e solidariedade que é característico do comportamento tribal (SANTOS, 2012).
O revoltado, de acordo com Albert Camus (2011), “no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta. Contrapõe o que é preferível ao que não o é.” (CAMUS, 2011, p. 26). O autor afirma que o homem revoltado diz não e sim ao mesmo tempo. O revoltado “não afirma a existência de uma fronteira” (CAMUS, 2011, p. 25), ele passa a entender que há um exagero por parte do outro, “que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e o delimita.” (CAMUS, 2011, p. 25).
Deolinda e os angolanos dizem sim a esse movimento de revolta porque dizem não ao estilo de vidas encarceradas e a todas as atrocidades que eram provas do rompimento dessa fronteira pelo colonizador: “[...] a liberdade de não comer, não morar, não vestir. A liberdade de não viver. A liberdade de sobreviver, de subviver e de morrer.” (NASCIMENTO, 1968, p. 21). Há uma tomada de consciência dos angolanos, que se lançam “ao Tudo ou Nada” (CAMUS, 2011, p. 27). Não é egoísta esse movimento de revolta, pois há uma identificação do revoltado com uma “comunidade natural” (CAMUS, 2011, p. 28) que leva o homem revoltado a se transcender no outro, dando uma dimensão metafísica à solidariedade humana (CAMUS, 2011, p. 29).
Em contextos assim, embora se tenha o elemento racional, por suas condições e peculiaridades, exige-se mais do grupo uma coerência afetiva e emocional. Os atos contra os companheiros são justificados como sendo de grande relevância, e o sentimento de dor é amplamente compartilhado entre os membros do grupo (SANTOS, 2012). A violência contra um angolano se torna violência contra todos os angolanos; a morte de um angolano é vingada por todos os angolanos. Uma carta deixa isso evidente, quando Deolinda conclama o seguinte aos compatriotas que estudam no exterior, “fora da linha de tiro dos portugueses”:
[...] Se nós que estamos cá no exterior, nada fazemos e nos deixamos estar sossegados, quando a nossa gente está a lutar, com desprezo pelas suas vidas, melhor será voltar para a terra para ajudá-los e que os portugueses nos liquidem já em qualquer parte. Não podemos ficar sentados e a ouvir apenas o que se passa; este é o momento de trabalharmos. (RODRIGUES, 2004, p. 103).
Ela tem uma profunda convicção da necessidade de se unirem aos camaradas que se encontram na linha de frente, em África, para lutarem e, se necessário, morrerem juntos pelos seus irmãos. As palavras de Albert Camus, quando afirma que “Se a dor da morte generalizada define a condição humana, a revolta, de certa forma, lhe é contemporânea” (CAMUS, 2011, p. 40), ganham um sentido mais vívido quando as relacionamos ao clamor de Deolinda. Corajosa e destemida, Deolinda repete o seu clamor em uma carta escrita onze dias depois da anterior (23/05/1961): “A vida está muito difícil na nossa terra; os corações de todos nós que estamos no exterior manda-nos voltar para a nossa Angola, para morrermos com a nossa gente.” (RODRIGUES, 2004, p. 108).
A tomada de consciência dessa mulher revoltada “não se limita a expressar uma mágoa, nem se esgota no ressentimento” (NASCIMENTO, 1968, p. 22), mas é “profundamente criadora” (NASCIMENTO, 1968, p. 21).
Mas as obras mostram para nós que a resposta a esse chamado não se dá de forma imediata e tranquila, inclusive na própria Deolinda. Há uma tensão interna no sujeito. Uma dúvida paira em sua mente sobre as prioridades para que a luta seja efetivamente consolidada: seria viável se formar primeiro e voltar assim que terminar ou melhor voltar logo para lutar junto aos companheiros?
É em seu diário que ela trava essa batalha: “28 de Junho de 1964 — Chegou telegrama de Accra pedindo urgente representante do MPLA. Outra tentação pra abandonar os estudos?” (RODRIGUES, 2003, p. 56). Notemos que a carta em que ela conclama os compatriotas a voltarem para lutar em Angola foi escrita no ano de 1961; mas, em 1964, cerca de três anos depois, ainda luta com essa tensão. Esse é um grande dilema na vida de Deolinda. E isso pode ser notado pelo número de vezes que ela demonstra essa tensão: mais de dez vezes ao longo da obra. Mesmo depois de ter voltado para junto dos compatriotas, o dilema continuou:
16 de Junho de 1964 — Como as pequeninas coisas podem influir nas grandes. O Bourreau disse-me: “amanhã vou sair para uma missão. Fiquem bem.” Falou num tom consciente do dever e saudoso também. Impressionou-me muito, só em casa é que me pus a ver melhor a coisa. O Bourreau vai pra uma missão com tanto orgulho e eu ponho o rabo entre as pernas e vou estudar em Ghana? Há alguma coisa de normal nisso? O que se passa comigo, afinal? Cruzo os braços a tudo isto e vou estudar? Com que cara saio daqui? E que dizer aos presos e aos que estão a sofrer lá dentro? Não, não é possível. (RODRIGUES, 2003, p. 58).
Deolinda atribui a culpa desse e de outros dilemas e problemas ao colonialismo: “4 de Junho de 1965 — [...] O colonialismo português semeou tanta confusão nas coisas e até nos indivíduos mesmos!” (RODRIGUES, 2003, p. 108).
Mas Deolinda é uma mulher intelectual e ousada, ela precisa transpor essa barreira colocada pelo colonialismo. É então que delineia um tripé que estabelece a ordem de prioridades que a regerão no contexto da luta. Nesse tripé, aparentemente, o estudo não ocupa um espaço: 1º) a luta (país); 2º) a família; e 3º) os camaradas do Processo dos 50.4
Eis o tripé de Deolinda:
27 de Setembro de 1964 — Junqueira, Brica e Paiva mais velho passaram a tarde a ouvir discos em casa da Mariazinha. O Junqueira referiu-se à vontade do Condesse, Rangel, Quito e ele próprio de continuar os estudos daqui a dois anos. Esse é também o meu desejo mas, solenemente, ANGOLA lá de dentro está em primeiro, primeiríssimo lugar. Enquanto o Movimento, a nossa luta precisar de mim, ou melhor puder aproveitar-me, não vou insistir mais nesta questão dos estudos. É verdade que preciso preparar-me para o futuro, mas também é verdade que o futuro depende muito da libertação do País. Depois há a delicadíssima questão da família que dia a dia sofre a humilhação, a sova, ameaça e tudo mais dos portugueses. Eu, Deolinda, não posso abandonar a minha família. Não posso abandonar a luta que vai acabar com a miséria que os meus pais, irmã e família e irmãos, etc., estão a sofrer. E depois da família vêm os Camaradas do Processo dos 50: Noé, Ti Nobre, Mino, Carvalho, Pascoais e outros. Nós desafiamos juntos a Pide, trabalhamos juntos na clandestinidade lá. Agora que tenho sorte de estar cá fora com possibilidades de lutar melhor, vou abandonar a luta, única chance de melhorar a vida desses Camaradas da primeira hora da clandestinidade? Não. Eu, Deolinda, não posso fazer isso. (RODRIGUES, 2003, p. 68-69).
É apenas mais adiante, na mesma entrada, que nos apercebemos que ela, por optar pelo autodidatismo, colocou a luta e os estudos quase que lado a lado. Os estudos ficam condicionados à demanda da luta, mas não são abandonados:
É certo que o mundo evolui. As condições duma ANGOLA LIVRE vão exigir uma Deolinda preparada para servir o País nessa fase nova. E verdade (sic). Depois há o perigo dos intelectuais de passado burguês, desonestos e soi-disant revolucionários, substituírem os portugas numa Angola independente por estarem intelectualmente mais preparados que nós. É verdade isso também. Mas a luta também é uma Escola. E não é de todo impossível conseguir livros e ir estudando sozinha nos maquis, nos centros ou onde a luta me levar para não ficar muito atrás de tudo. Enfim, os dois lados são necessários: lutar e estudar. Vou tratar de conciliá-los e manobrar os dois ao mesmo tempo. (RODRIGUES, 2003, p. 69, grifos da autora).
Deolinda entra na luta consciente, sabedora de que existem apenas duas possibilidades: vitória ou derrota. Essas duas possibilidades se traduzem na forma como, num determinado estágio da luta pela libertação, quando o cálice deste povo ressentido parecia já transbordar, passou a finalizar algumas entradas do diário e as últimas cartas endereçadas aos companheiros no exterior: VITÓRIA OU MORTE (VM). O editor traz uma nota em que nos informa o que seria essa palavra de ordem. De acordo com ele, “VM — ‘Vitória ou Morte’, título do jornal do MPLA.” (RODRIGUES, 2004, p. 151). Deolinda dá indício nesse sentido ao afirmar em uma carta o seguinte: “O VM carece de ser publicado” (RODRIGUES, 2004, p. 151). Obtivemos mais informações sobre esse lema na entrevista que fizemos com Roberto de Almeida, irmão de Deolinda Rodrigues. Segundo ele,
Vitória ou Morte era o lema do Movimento naquela altura. Não é a Deolinda que criou isso. Isso era o lema do Movimento do MPLA naquela altura. Só em 72 ou 73 é que se alterou para Vitória é Certa. É a evolução do mesmo lema, da mesma palavra de ordem. A partir de certa altura, com a evolução da luta, o Movimento ficou mais certo de que a vitória era inevitável, tinham que ganhar. Então, ai alteraram o Vitória ou Morte, que era o caráter de decisão da guerrilha — o guerrilheiro ia para a luta certo de que podia ganhar ou também podia morrer —; mas, depois, quando a luta ganhou uma maior amplitude, então alteraram essa palavra de ordem para Vitória é Certa. (ALMEIDA, 2020, p. 159).
Deolinda traduz essa forma em seu diário:
26 de Junho de 1964 — Dia fatalíssimo. Como é duro separar-se definitivamente dos queridos. A maior veneração que posso dar à memória do PEDRINHO é continuar fincada na luta. Mas tenho de dedicar-me à medicina e fazer o possível pra salvar vidas úteis e jovens como a do Pedrinho que são indispensáveis à luta e ao país. VITÓRIA OU MORTE. (RODRIGUES, 2003, p. 69).
Mas é nas Cartas que isso fica mais evidente e recorrente. No início, ela assina “Deolinda” uma vez, e “deolinda”, com d minúsculo, nas várias cartas que se seguem. Nas últimas cartas, ela acrescenta as palavras de ordem às saudações: “[...] Temos muita esperança em ti, Maria. Saudades, VM” (RODRIGUES, 2004, p. 151, grifos da autora); ou ainda: “SAÚDE E VITÓRIA OU MORTE” (RODRIGUES, 2004, p. 156). Em outras cartas, ela acrescenta VITÓRIA OU MORTE ou apenas VM nas assinaturas. Essas mudanças podem indicar os movimentos da escrita de Deolinda, o que revela, ao mesmo tempo, os movimentos internos do sujeito ressentido, disposto a qualquer coisa para o avanço da luta. Isso porque “O revoltado nada preserva, já que coloca tudo em jogo” (CAMUS, 2011, p. 28), inclusive a própria vida. É a materialização do “Tudo ou Nada” referido por Albert Camus, que continua a sua reflexão afirmando:
O surgimento do Tudo ou Nada mostra que a revolta, contrariamente à voz corrente, e apesar de oriunda daquilo que o homem tem de mais estritamente individual, questiona a própria noção de indivíduo. Se com efeito o indivíduo aceita morrer, e morre quando surge a ocasião, no movimento de sua revolta, ele mostra com isso que se sacrifica em prol de um bem que julga transcender o seu próprio destino. Se prefere a eventualidade da morte à negação desse direito que ele defende, é porque o coloca acima de si próprio. Age portanto em nome de um valor, ainda confuso, mas que pelo menos sente ser comum a si próprio e a todos os homens (CAMUS, 2011, p. 27-28).
Quase todas as atividades humanas dos negros angolanos foram afetadas negativamente, o que revela uma desestrutura em praticamente todas as áreas: política, social, religiosa etc. Deolinda e os angolanos vão à luta com tudo isso em mente, na tentativa de resgate de “seus valores, violentados, negados, oprimidos e desfigurados” (NASCIMENTO, 1968, p. 37). A revolta de Deolinda e dos angolanos em geral invoca, nesse sentido, “seu valor de Homem, seu valor de Negro, seu valor de cidadão” de uma futura nação angolana (NASCIMENTO, 1968, p. 45).
A escrita de Deolinda revela-nos sujeitos que se engajam numa luta que busca (re)construir referências para a construção de uma nação que, ao olhar para o passado, vê somente ruínas. Embora pareça que o movimento dos guerrilheiros será de transpor o intransponível, a certeza da vitória se torna cada vez mais uma realidade entre os membros do Movimento.
Ao submeter o colonizado a uma condição de falta: falta de comida, da terra, do valor da vida etc., revela-se a negação do ser, do outro ser, que passa a ser menos que um ser, reduzido a uma simples categoria: preto/colonizado. Essa negação à dignidade dos angolanos leva o colonizado a articular uma (re)ação ressentida. O sujeito que se sente desvalorizado, pois, diariamente, o mundo se impõe altivo diante dele, entra em desespero profundo, na tentativa de elevar-se, pelo menos, à altura do seu antagonista. Isso leva, enfim, os angolanos a formarem esquadrões, a pegarem em armas e a saírem para a guerra. Assim, Angola seria redimida pela violência, a única saída encontrada. Eles empunham seus diversos tipos de armas contra as forças que negam o seu ser; tentam abandonar uma estrutura mantida e reforçada pela violência para pôr termo às ações do colonizador. O colonizado, observa Frantz Fanon (1961), inveja o mundo do colono, um mundo usurpado, e, por essa razão, sonha sempre em instalar-se no lugar dele, no intuito de substitui-lo. E esse impulso de tomar o lugar de seu antagonista mantém a tensão muscular do colonizado ativa para a luta: se os brancos são pessoas como nós, então, eles podem ser enfrentados e, inclusive, derrotados.
Deolinda nota que algumas mulheres são poupadas do massacre da Pide em alguns lugares do país. Ela encontra uma brecha nisso e ataca a partir dela: propõe a organização de uma secção feminina do Movimento, que iria à frente do combate:
Já bastam os cinco séculos que hibernamos sob a pata portuguesa. Temos de organizar agora a Secção Feminina e entrar em acção. A não ser nos lugares bombardeados, só mulheres estão a ser escassamente poupadas pelos massacres da pide na nossa Terra. Portanto, cabe-nos cumprir o nosso dever e agir imediatamente. A Secção Feminina do MPLA tem de se organizar e entrar em acção, sem demora. (RODRIGUES, 2004, p. 123).
O próprio contexto colonial permite a participação ativa das mulheres nas frentes de batalha. Deolinda fala da criação de uma milícia feminina que, embora enfrentasse o problema do pouco alistamento, por dificuldades impostas pela liderança do Movimento, participou da luta pela libertação: “A milícia feminina tem tido poucos alistamentos. Sei duma moça em Moanda que se dirigiu ao Lúcio para se alistar e até agora não recebeu resposta.” (RODRIGUES, 2004, p. 144). Um grupo desse Sector Feminino do Movimento, entre elas Teresa Afonso, Lucrécia Paim, Irene Cohen, Engrácia dos Santos, Josefa Gualdino e a própria Deolinda, foi treinado e ficou integrado no Esquadrão Camy, que se preparava para uma grande e importante travessia de Brazzaville, capital da República Popular do Congo, para Luanda, atual capital de Angola, com o fim de libertar essa importante e estratégica cidade angolana.
Deolinda registra a sua primeira experiência com armas em duas entradas de seu diário. As expressões usadas para traduzir aquele momento em que teve contato com as armas nos remetem aos sentidos do corpo humano, relacionados às percepções de prazer — “que delícia”. Ela afirma:
1966/Domingo, 17 — Ontem a noite começamos a aprender a manejar PM 44. Uma delícia! (RODRIGUES, 2003, p. 161).
Lavrei cedo. A companheira foi a Kimongo. De tarde fui com o pessoal à carreira de tiro. Que negócio espectacular: fiz 2 dez com a carabina e com a PA a pouca distância. Custa-me manter a pesada PM-44. Vamos lá ver se com a prática isto vai mesmo. (RODRIGUES, 2003, p. 177).
Essa expressão de Deolinda contrasta com a atitude de Petrov, Kashiona e Lucienga, que “disparam-se de propósito na mão direita para não pegarem em armas no maquis.” (RODRIGUES, 2003, p. 160).
Mas as coisas não devem ter sido fáceis para essa guerrilheira e outras mulheres. Deolinda, sempre com lutas paralelas ao colonialismo, enfrentava a resistência de alguns membros do Movimento que não apenas menosprezavam a sua capacidade intelectual, como também a física. Em um registro que relata uma confusão com um patrício, Deolinda revela a imagem que esse companheiro tinha dela:
17 de Setembro de 1964 — Escândalo Ferro-e-Aço no bureau: que eu não sabia nada. Durante estes dois anos fingi que sabia muita coisa, mas quando vier quem sabe mais, vou ser descoberta de que não sei nada. Que sou mulher e não valho nada fisicamente, etc. (RODRIGUES, 2003, p. 64, grifo nosso).
Ao registrar essa visão de seu compatriota, Deolinda propõe uma reflexão sobre o lugar da mulher nesse espaço de luta onde se exige força física na maioria das vezes. Deolinda não defende, em nenhum momento das obras, que homens e mulheres são fisicamente iguais em força. Sabemos que, em termos gerais, homens têm mais força física do que as mulheres. A reflexão de Deolinda tem um propósito diferente. Se, para participar da guerrilha é necessário preparo físico e mental, tendo já deixado evidente o seu preparo mental, Deolinda, ao se propor a participar efetivamente da luta armada, reivindica um olhar diferente para as mulheres; que elas também podem participar do esquadrão e da guerrilha; que o preparo físico pode ser adquirido com o tempo de treinamento. A atual realidade angolana, por exemplo, na qual mulheres compõem as forças armadas e a polícia nacional, é fruto do esforço e da visão de mundo de mulheres como Deolinda.
O significado do nome Langidila, nome de guerra assumido mais tarde por Deolinda, dá o tom da dinâmica dessa guerrilheira na luta armada. Langidila é um nome na língua Kimbundu, e significa “vigilante” ou “sê vigilante”.5 Deolinda está sempre pronta para o que der e vier, sempre vigilante e preparada para os desafios da revolução, tanto os desafios da luta armada quanto os da luta social. É isso que ouvimos, sentimos e vemos quando temos contato com o seu Diário e as suas Cartas.
Deolinda, essa voz feminina, culta e patriota, com toda a sua revolta e determinação em libertar a nação angolana da colonização portuguesa, realiza seu mais fervente desejo de empunhar o fuzil da liberdade. Ela e suas companheiras passam a andar armadas:
1966/Segunda, 9 — Fomos armadas em detrimento de outros dois camaradas porque não existe aqui pistolas reservadas. (Há realmente controle do armamento ou esconde-se no capim, ‘são perdidas’, etc.). (RODRIGUES, 2003, p. 149).
De dentro da luta, diferentemente de outros escritores angolanos que escreveram de dentro das prisões ou de seus gabinetes, Deolinda narra para nós, em meio aos cruzamentos das balas e de partes de corpos suspendidos e lançados pelas minas espalhadas pelo caminho, a grande e longa odisseia que foi o seu e o percurso do Esquadrão Camy, do Congo para Luanda. Mas nem o novo poder em suas mãos e o novo e difícil desafio que tinham pela frente foi capaz de abortar a tão sublime missão da caneta que empunha em suas mãos, que nos leva quase a experienciar os momentos dessa odisseia: "28 de Fevereiro de 1967 — [...] Já bastam as dificuldades de toda esta odisseia, Mamãe! Que aprendamos todos muito desta ’viagem’..." (RODRIGUES, 2003, p. 208, grifos da autora). A experiência dessa viagem é narrada em seu diário, no ano de 1967, das páginas 179 a 211, em que está registrada a última entrada do diário.
Antes de continuarmos, é importante levantarmos, pelo menos, dois questionamentos que nos auxiliarão na análise dessa experiência de Deolinda: O que é odisseia? Qual é a sua relação com a viagem de Deolinda?
Tassilo Orpheu Spalding, no Dicionário de mitologia greco-latina (1965), dá-nos uma definição de odisseia: “ODISSÉIA — Famoso poema épico atribuído a Homero. [...] O nome vem de Odisseus, Ulisses em latim, que é herói desta narração marítima.” (SPALDING, 1965, p. 186). Esse romântico poema da Odisséia, que faz parte do gênero épico, narra as peregrinações de Ulisses em sua volta da guerra de Troia ao seu reino de Ítaca.
A epopeia, que vem do grego (epos, canto, narrativa; poieo, fazer), é definida, segundo o professor Afrânio Coutinho, “Como uma composição literária de natureza narrativa, com acontecimentos em que se misturam fatos comuns, lendas e mitos, heróis e deuses, numa atmosfera de maravilhoso.” (COUTINHO, 2008, p. 73). Os heróis da epopeia, ainda de acordo com o professor Afrânio Coutinho,
são homens notáveis, fora da média comum, de carácter superior, autores de façanhas extraordinárias ou heroicas, ditadas pelo patriotismo, bravura marcial, espírito de aventura, os quais foram elevados pela imaginação popular, dando lugar à criação a seu redor de verdadeiras lendas (COUTINHO, 2008, p. 73-74).
A Odisseia, de Homero (2001), narra o regresso de Ulisses em meio a fortes tempestades, fome, gigantes canibais, feiticeiras poderosas, a destruição de seus navios e a morte de seus homens, até chegar ele, sozinho, ao seu reino de Ítaca, para se vingar dos pretendentes de sua esposa Penélope.
A viagem de Deolinda se dá, também, em meio a condições precárias: os guerrilheiros caminham por entre as matas; os aviões portugueses rondam esses locais e bombardeiam os inimigos; havia brigas entre eles mesmos, doenças, frio, kissondes (formigas perigosas), cargas para o sustento, fome, caminhos escorregadios, desânimo e mortes.
O que vemos é a repetição de vários episódios já mencionados ao longo das obras. Nesse sentido, essas páginas finais mostram-nos uma micro-odisseia, que simboliza a macro-odisseia registrada em todas as outras páginas das obras. Todos os episódios mencionados tornam a viagem muito tensa. É uma viagem perigosa, com muita chuva e animais ferozes por perto: “4 de Fevereiro de 1967 — Choveu a noite toda e todo o mundo ficou encharcado. Dois lobos uivaram perto durante a noite.” (RODRIGUES, 2003, p. 190). Deolinda procura fazer referência, em vários momentos, às mulheres que compõem o esquadrão. Cremos ser uma forma de reafirmar o espaço e a importância dessas mulheres na luta pela libertação de Angola. As duas próximas citações mencionam algumas delas. Na primeira, Deolinda registra o contexto de guerra em que se encontram e lamenta a sua condição e a dos companheiros, mencionando Irene:
11 de Fevereiro de 1967 — Hoje vai tentar-se atravessar num sítio que facilite o uso da corda. Mukenge foi à caça. Aqueci sete pedaços da pele do jantar de ontem: quatro para o murbi e o resto para o almoço. Ao Miro pinaram dois nacos na marmita ontem à noite. Ele teve maka grossa com o Camu. Às 8h45 ele ouviu tiro: oxalá seja caça porque isto está mal mesmo. Ontem não consegui ouvir “ANGOLA COMBATENTE”. Os meus pés estão a inflamar e a Irene está em baixo com diarreia. Que vida esta: até quando? (RODRIGUES, 2003, p. 194).
Na segunda, os tiros suscitam duas reações possíveis: medo pela possibilidade de ser o inimigo ou suspense, que pode terminar em alegria, pela possibilidade de ser uma caça para o alimento do esquadrão — nesse momento ela cita outra vez mulheres:
8 de Fevereiro de 1967 — Irene, miúdas e Brica também tiveram maka antes da partida do acampamento por causa da panela e a Irene chorou. Apanhei muita frutinha vermelha e abasteci-me em açúcar. O avião tuga passou às 11h16 e 17h. Não há perspectivas de jantar porque não há folhas; entretanto ouvimos tiros dos caçadores e tudo, oxalá tenhamos carne hoje. O Palma pediu-me 2 passaritos para pôr na sopa.
Estamos na dúvida: será fogo de tuga ou dos caçadores? É que estamos a 20 kms do Mbridge onde eles acampam. Oxalá haja carne hoje. Felizmente houve: o Mukengue matou uma pacaça e seguiu-se a confusão habitual. A Irene andou 2h30 perdida. (RODRIGUES, 2003, p. 192).
Parecemos estar diante de uma simultaneidade de eventos na escrita deolindiana. O eu se enuncia reconstituindo os movimentos interiores daqueles momentos. Mas a impressão que temos é a de que o sujeito narra esses momentos enquanto os experiencia, fato que não pode ser descartado totalmente, visto que se trata de uma escrita de diário.
Entre muitos problemas ao longo da travessia, a fome é o que mais toma lugar nos registros de Deolinda. Há momentos em que só podiam fazer uma refeição por dia. Muitos deles caem de fome; recorrem à caça, mas não conseguem caçar na maioria das vezes; os mais fracos são levados de tipoia; passam a viver à base de palmito, dendém, goiabas verdes, coconotes, sumo de ifidi, cogumelo cru, limonada e toda a variedade de folhas e frutas que encontram:
12 de Fevereiro de 1967 — começámos por uma reunião geral. Os que atravessaram ontem abalaram em busca de comida. Mussunda também foi à caça. Oxalá por tudo que haja comida hoje. A chuva veio atrapalhar os projetos de trabalho. Voltamos a acampar na colina, num telheiro regular. Hoje fazemos um mês que saímos do Congo. Quando isto vai chegar ao fim? Há muita, muita fome e maka de comida.
Teté, Lopes e Lulú buscaram folhas para o jantar: dizia-se que eram incomíveis, mas cozinhamo-las em abundância. Os rapazes cozinharam goiabas verdes. (RODRIGUES, 2003, p. 194-195).
A fome passa a desqualificar os guerrilheiros, que são acometidos por muitas doenças, principalmente a diarreia: “2 de Fevereiro de 1967 — Também tive princípios de diarreia mas sufoquei-a no ovo graças à sulfa. O Miro está em baixo com diarreia que está aterrorizando quase metade do destacamento.” (RODRIGUES, 2003, p. 188).
E, como é de se esperar nessas situações, muitos desistem da missão e outros são recebidos nas regiões inferiores da terra.
A viagem do esquadrão continua. Em uma mesma entrada, Deolinda registra duas experiências importantes: a primeira experiência em bombardeio e a chegada em Angola. Em um gesto simbólico de amor à terra, ela beija o solo angolano:
19676 — Às 7 saímos de perto do quartel tuga em Luvu e passamos a 7Kms dele apenas. Às 15h quando íamos a cruzar o rio Luvu, surgiram dois bombardeiros tugas. Primeira experiência do gênero: deitamo-nos logo no capim. Seguiu-se a travessia em corda e pisei Angola depois de quase oito anos de ausência: beijei o solo. (RODRIGUES, 2003, p. 180).
Mas logo veio a frustração: por causa do cerco das tropas portuguesas, que provocam dificuldades na travessia para Luanda, alguns precisam voltar para o Congo; Deolinda está entre os que voltam. Ela registra a profunda tristeza gerada por essa volta, que parecia impossibilitar uma revolta mais contundente:
17 de Fevereiro de 1967 — faz hoje uma semana que chegamos aqui ao Mbridge. Depois de uma reunião geral em que falou Anselmo e choraram o Comandante e o velho Fula, assentou-se que parte da malta tinha de voltar ao Congo devido ao obstáculo Mbridge. Entregue o equipamento e feitas as arrumações, partimos às 11h45 sem grandes despedidas. Muitos resolveram continuar a tentar a travessia; outros não têm mais força para regressar. Dormimos na mata onde eu tinha chegado primeiro. É muito triste esta volta; pelo caminho tudo em silêncio espalhados no capim à caça de mata e arrastando-nos na medida do possível. (RODRIGUES, 2003, p. 197-198).
A narração de Deolinda, assim como acontece em narrativas com narrador autodiegético,7 permite-nos acompanhar apenas o grupo que volta, em que ela se encontra, deixando a todos, inclusive ela mesma, sem notícias sobre o grupo que ficou para tentar a travessia. Por isso, ela pergunta para si mesma: “19 de Fevereiro de 1967 — Que estará acontecendo no Mbridge e a malta que ficou atrás com o Brica?” (RODRIGUES, 2003, p. 199). De fato, cabem apenas perguntas, tanto para o sujeito que narra os fatos quanto para o leitor, que, vivenciando a angústia do sujeito, é tomado pela curiosidade do desfecho dessa empreitada do esquadrão.
Durante o retorno forçado, as dificuldades se agravam: a fome e o desgaste obrigam-lhes a enterrarem as armas; sofrem com muitos piolhos; a fome aperta cada vez mais o cerco e, para sobreviverem, passam a comer de tudo e a pescar até mesmo com sacola plástica; as doenças também continuam: diarreia, corpo inflamado. Entre um e outro problema, mescla-se o medo de morrer pelo caminho e a certeza de querer chegar viva ao Congo: “22 de Fevereiro de 1967 — A malta está com diarreia. Continuo inflamada: se ao fim de sete dias não chegarmos ao Congo, o meu organismo é capaz de ir-se abaixo. Entretanto, conto chegar viva.” (RODRIGUES, 2003, p. 201).
O curioso é que em nenhum desses momentos Deolinda recorre ao Deus cristão, de quem fez muita referência no início das Cartas e do Diário, mas a uma suposta divindade das religiões animistas, uma única vez, em forma de oração: “28 de Fevereiro de 1967 — Oxalá que hoje saltemos bem e que o rasto do Kuolokié nos livre bem de Kamuna e nos conduza a Songololo. AMÉM!” (RODRIGUES, 2003, p. 206). Entretanto, parece-nos que essa divindade não teve poder suficiente para assegurar a chegada de Deolinda até o Congo, porque, de repente, sua voz silencia depois do último registro, onde deixa claro que sua oração não fora respondida:
E nós que estávamos com planos de jantar molho de tomate com ifuata, tudo estragado. Já nem chegamos hoje ao Songololo como contávamos. Bem, o importante é safarmo-nos de Kamuna e chegarmos a Songololo amanhã ou mesmo já depois de amanhã. Temos milho seco e jinguba para aguentar. Quando nos livrarmos de tudo isto, Mamãe! Tudo parecia já tão bem e de repente, bumba: Kamuna! (RODRIGUES, 2003, p. 211).
Nas palavras de Roberto de Almeida, numa nota final que faz referência à forma como termina o diário, “o manuscrito do ‘Diário’ de Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida, termina assim, abruptamente. Ou melhor: não termina. Sua voz foi apenas confinada ao silêncio...” (RODRIGUES, 2003, p. 2013). Tem-se, aqui, a própria consolidação da condição dela como subalterna, conforme descrita por Gayatri Spivak (2014). O confinamento a que foi submetida, referido acima por Roberto de Almeida, é uma metonímia de uma vida inteira confinada ao silenciamento nas mais diversas formas.
Deolinda perde uma possibilidade de revanche contra os portugueses, a fim de buscar uma redenção de seu povo. A redenção de Deolinda, no entanto, ao se propor a continuar a lutar contra os portugueses, mesmo tendo que voltar para o Congo, se dá na e pela escrita, que é o lugar onde ela expurga o mal, o ódio, o ressentimento, a revolta e a sua resistência, até a morte.
Ao longo do nosso estudo, observamos que tanto o diário quanto as cartas fazem referência às vivências de Deolinda Rodrigues durante a época colonial portuguesa, num período entre 1956 até 1967, quando, tempo depois, se deu o seu falecimento em combate. As obras falam da dor de Deolinda, da sua dor em ver o seu povo a ser massacrado por portugueses sedentos de poder e de sangue. Falam do medo, do medo que pairava no imaginário de uma população encarcerada literal e simbolicamente. Falam de lutas, lutas de homens e de mulheres que se negaram a aplaudir os horrores à sua volta, luta de uma mulher que se negou a se acostumar com o mal, com o horror, com a vida sofrida que seu povo levava. Falam de traições, traições que pareciam adiar o sonho de ver livre um povo há muitos anos escravizado pelo colonizador português. Falam de revoltas, revoltas de um povo que acumulou dores e ódios ao longo de 5 séculos, e que não mais suportava viver debaixo de tamanha repressão e humilhação. Falam de certezas, certeza de que, ao se empreender a tão desejada luta pela independência, a vitória seria inevitavelmente certa. E foi o que aconteceu em 11 de novembro de 1975, quando foi proclamada a independência de Angola.
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Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida, mais conhecida por Langidila (seu nome de guerra), é uma guerrilheira e escritora angolana, nascida em Catete no dia 10 de fevereiro de 1939, tendo presenciado muitas atrocidades praticadas pelos colonizadores portugueses. A data de sua morte é indefinida até o momento. Existe a versão maioritária, a oficial, que afirma que ela faleceu em 2 de março de 1967. Mas outros, entre eles, Roberto de Almeida, seu irmão, acreditam que Deolinda Rodrigues foi executada no final de 1967 ou início de 1968. Seus pais eram professores primários, sendo que o pai partilhava as tarefas do ensino com as de pastor protestante.↩︎
“[...] Woolf’s diaries are both the battlefield on which she confronts, and the border between, those central preoccupations.” (JENSEN, 2012, p. 3).↩︎
“Their diaries functioned as transformative locations in which personal concerns became textual artefacts.” (JENSEN, 2012, p. 2).↩︎
De acordo com Anabela Cunha, o “‘Processo dos 50’ é a designação que se atribui à prisão e julgamento de um grupo de nacionalistas que, insatisfeitos com o domínio colonial português, decidiram empreender clandestinamente acções que conduzissem à independência de Angola. Deste processo fizeram parte indivíduos negros, mestiços e brancos, europeus e africanos, que estavam envolvidos na luta por uma mesma causa — a independência de Angola.” (CUNHA, 2011, p. 88).↩︎
Esta última tradução é proposta por Aline Frazão, em sua crônica sobre Deolinda Rodrigues no site Rede Angola. Disponível em: www.redeangola.info. Acesso em: 12 set. 2019.↩︎
As primeiras entradas desse ano não contêm mês nem dia, apenas o ano.↩︎
Falar em narrador autodiegético é fazer referência ao nível narrativo da pessoa do narrador. É quando o narrador é o personagem principal da história e relata as suas experiências pessoais na primeira pessoa. Norman Friedman referiu-se a esse tipo de narrador como “Narrador-protagonista”, e afirma que ele “encontra-se quase que inteiramente limitado a seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções. De maneira semelhante, o ângulo de visão é aquele do centro fixo” (FRIEDMAN, 2002, p. 177).↩︎
Resumo:
Nosso estudo está baseado em duas obras, nomeadamente: Diário de um exílio sem regresso (2003) e Cartas de Langidila e outros documentos (2004), ambas da ex-guerrilheira angolana Deolinda Rodrigues (1939-1967). Refletindo, num sentido amplo, sobre as memórias da guerra colonial, pretendemos analisar especificamente sobre como a escrita de Deolinda Rodrigues faz emergir os (res)sentimentos e a revolta dos angolanos contra o sistema colonial português no início da primeira metade do século XX.
Palavras-chave:
Memórias; Guerra; Ressentimentos; Revolta; Langidila.
Abstract:
This study is based on two works, namely: Diário de um exílio sem regresso (2003) and Cartas de Langidila e outros documentos (2004), both by Deolinda Rodrigues (1939-1967), Angolan ex guerrilla. Reflecting, in a broad sense, on the memories of the colonial war, we intend to analyze specifically how Deolinda Rodrigues’ writing brings out the resentment and revolt of Angolans against the Portuguese colonial system at the beginning of the first half of the 20th century.
Keywords:
Memories; War; Resentments; Revolt; Langidila.
Recebido para publicação em 26/10/2020
Aceito em 29/01/2021