Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.a04
ISSN: 2318-4620

 

 

Estado, movimentos sociais e políticas públicas:
meandros de uma reforma educacional no âmbito estadual

 

Carlos Vasconcelos Rocha OrcID
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
carocha@pucminas.br

 

Os esforços para redesenhar as instituições públicas educacionais brasileiras, iniciados nos anos de 1980, surgiram, no plano político, como um movimento de repúdio ao regime autoritário e suas instituições, caracterizadas pela centralização, burocratização e clientelismo. A reivindicação central dos setores oposicionistas era a consolidação de instituições democráticas e descentralizadas que contemplassem espaços de participação para a sociedade civil nos processos de tomada de decisões sobre políticas públicas.

O movimento reformista evidenciou um rompimento com o enfoque técnico na formulação de políticas públicas, baseado na crença tecnocrática de abordar a realidade de forma “apolítica” e utilizar o conhecimento produzido para a resolução dos problemas sociais. Típica do regime autoritário, e sustentada posteriormente por grupos com certa afinidade ideológica com o mesmo,1 tal perspectiva foi repensada em termos de uma abordagem que busca sustentar o processo de tomada de decisões de políticas públicas a partir da legitimação da política, considerando que inevitavelmente tal processo é eivado de valores contrastantes.2 Essa é a temática que orienta o aspecto descritivo deste trabalho. No entanto, uma referência analítica será sugerida.

A perspectiva preponderante na literatura sobre essas experiências enfatiza analiticamente os movimentos sociais, onde a lógica política seria preponderante (CICONELLO, 2008). No caso, a chave do sucesso das ações públicas seria uma sociedade civil com alto grau de capacidade de autonomia e mobilização, capaz de pautar as decisões governamentais. Argumento, que como veremos no caso em exame, é parte relevante da explicação.

Entretanto, outra perspectiva seria igualmente explicativa: a que toma como variável analítica o Estado e sua burocracia, onde a lógica da racionalidade técnica seria preponderante (PRZEWORSKI, CHEIBUB, LIMONGI, 2003).

De pronto, ressaltando um aspecto a ser demonstrado neste trabalho,3 pode-se apontar que esse tratamento excludente entre o técnico e o político, ou de ênfase nas instituições estatais em detrimento dos movimentos sociais ou vice-versa, não foi verificado no caso aqui abordado. Ao contrário, mostrando a complexidade dessas relações, o que se verificou foi uma burocracia, portadora de um projeto com raízes nos movimentos sociais, articulada com atores da sociedade civil que, conjuntamente, trabalharam em favor das reformas. Tal situação pode ser abordada pela noção de “autonomia inserida”, de Peter Evans (1996), que busca ultrapassar as perspectivas polares, apontando as insuficiências em cada uma das seguintes formulações: a autonomia do Estado, como proposta pelos institucionalistas, implicaria pouca efetividade nas suas ações; e a exposição excessiva do mesmo aos interesses da sociedade civil implicaria a sua vulnerabilidade em relação aos interesses sociais organizados. O conceito de “autonomia inserida” significa que as estruturas e estratégias do Estado exigem suportes sociais complementares, para uma ação eficiente; e que, de outra forma, os movimentos sociais dependem das decisões estatais para a consecução de seus interesses.

Tomando como referência essas reflexões iniciais, este trabalho busca descrever o caso da reforma do sistema público de educação de Minas Gerais, sugerindo o argumento de que experiências de sucesso de movimentos sociais, em termos de transformar suas reivindicações em políticas públicas, ocorrem quando os mesmos superam o seu caráter meramente reivindicativo, passando a ocupar, com alguns de seus membros, lugares estratégicos no aparato de Estado. Com isso passam a participar diretamente do processo de tomada de decisões; e, além disso, atraem suporte social para as políticas adotadas. Dessa forma, o caso em exame apresenta um processo de reforma baseado na ampla participação de setores da sociedade civil, onde acaba ocorrendo, em grau significativo, uma indistinção entre os atores burocratas e os militantes dos movimentos sociais, configurando o que poderíamos definir de “atores anfíbios”: ao mesmo tempo burocratas e ativistas.

Este trabalho busca reconstituir um momento do processo de reforma educacional de Minas Gerais, que se desenrolou do início da década de 1980 ao início dos anos de 1990, envolvendo três governos estaduais, durante os quais os atores entraram em conflito e/ou estabeleceram consensos, resultando em movimentos de avanços e recuos no sentido da sua implementação.4 Pretende analisar as primeiras iniciativas reformistas gestadas no primeiro governo do estado de Minas Gerais de oposição ao regime militar, eleito em 1982,5 onde entram em cena atores reformistas que trouxeram uma concepção alternativa para a tomada de decisões de políticas públicas.

As ações reformistas do governo estadual de Tancredo Neves/Hélio Garcia eleito em 1982 e, nesse contexto, a realização do I Congresso Mineiro de Educação, iniciado no plano municipal e finalizado com um encontro estadual em Belo Horizonte, que configurou uma experiência de planejamento participativo que envolveu diversos setores da sociedade civil, da burocracia e do governo, são os eventos abordados a seguir.

Os Pressupostos da Reforma da Educação em Minas Gerais

No Brasil, um país federativo onde a responsabilidade pela oferta de ensino fundamental é essencialmente dos estados e dos municípios,6 as características da reforma da educação pública, iniciada no início dos anos de 1980, variaram segundo cada ente federado, mantendo, contudo, o objetivo geral de descentralizar e democratizar a gestão da educação pública. No caso de Minas Gerais, cuja experiência é das mais relevantes no Brasil e na América Latina, a reformulação da educação pública teve como objetivo dar autonomia de funcionamento às escolas, através da criação de espaços para a sua gestão participativa. Em contrapartida, visou esvaziar o poder da Secretaria Estadual de Educação — SEE e das Delegacias Regionais de Ensino — DRE, que até então concentravam o poder de decidir sobre os diversos aspectos da gestão escolar.

Essa centralização das decisões, característica do sistema educacional até então, justificada por um discurso tecnicista, propiciava a instrumentalização da gestão da educação para fins político-partidários. A lógica que presidia o funcionamento da educação era fornecer recursos de poder para potencializar a posição dos grupos governistas na competição política. Dessa forma, no plano da luta política, o sentido geral das propostas reformistas visava fortalecer o poder das escolas como forma de neutralizar a capacidade de utilização pelos governantes dos recursos de poder que a administração das instituições da educação fornecia. A interferência político-eleitoral e partidária no setor fazia de questões administrativas, como contratação de professores, pedidos de licença, aposentadoria, remoção, pedidos de transferência, aplicação de punições, requisição de professores para cargos administrativos, dentre outras, instrumentos da competição eleitoral.

O caso do recrutamento de diretores e professores é exemplar da vigência dessa lógica. Desde o fim do Estado Novo, era reservado aos políticos governistas majoritários em cada região — ou seja, aqueles políticos da base do governo mais votados nas localidades — a prerrogativa da indicação dos diretores das escolas situadas em seus redutos eleitorais. Esse sistema tornava as escolas instrumento de barganhas políticas e implicava, ao mesmo tempo, alta rotatividade de alguns diretores e perpetuação no cargo de outros, independentemente de sua performance administrativa. Os professores eram recrutados, em geral, pelas suas relações políticas, deixando em segundo plano os critérios de qualificação profissional. Os embates político-partidários contaminavam, assim, a administração das escolas. Não surpreendem, portanto, as resistências que surgiram contra as propostas reformistas por parte de grupos com acesso privilegiado aos recursos de poder fornecidos pelas instituições públicas de educação. Nota-se, portanto, que num regime pretensamente técnico, a política e o clientelismos tinham o seu papel.

A definição da agenda da reforma educacional envolveu partidos políticos, parlamentares e lideranças do Legislativo, burocratas de diversos níveis, governantes e seus auxiliares mais próximos, instituições internacionais e seus consultores, sindicatos dos trabalhadores do ensino, associação de diretores escolares, associações de pais e alunos e outros setores da sociedade civil, que buscavam afirmar seus valores e interesses.

A primeira proposta abrangente de reforma da educação pública mineira, no contexto da democratização, tem como marco inicial o I Congresso Mineiro de Educação, realizado de 04 de agosto a 07 de outubro de 1983, e que configurou um momento de ampla participação de diversos setores da sociedade na definição dos rumos da educação pública mineira. A origem do I Congresso está, por um lado, nas propostas defendidas pelos movimentos sociais que, desde a segunda metade dos anos de 1970, demandavam a democratização política e a necessidade de reversão do sistema educacional adotado até então. O contexto de sua realização relaciona-se com o sucesso obtido pela oposição nas eleições estaduais de 1982, com a vitória do PMDB sobre o PDS.7 Ao assumir o governo do estado, Tancredo Neves8 tinha a consciência de que a melhoria da educação pública era uma grande reivindicação da sociedade e de setores do seu próprio partido. A ênfase do grupo que então chegava ao governo era contrapor-se ao legado do regime militar. O compromisso era, portanto, realizar mudanças na política, na economia e nos critérios e métodos de gestão dos recursos públicos como se comprometeram, em geral, todos os governos de oposição que chegaram ao poder nos estados naquele momento.9 Tanto assim que o documento que estabelece as diretrizes da política de educação do novo governo foi intitulado de “Educação para a Mudança” (MINAS GERAIS, 1983b).

Como primeiro passo para a realização das reformas, o governador indicou para os cargos de direção da SEE pessoas ligadas aos setores da esquerda do PMDB, que imprimiram uma nova orientação para a política de educação.10 O principal mentor da reforma educacional foi Neidson Rodrigues, que passou a dirigir a Superintendência Educacional da SEE. Rodrigues era professor, pesquisador na área educacional e engajado nos movimentos sociais ligados às reformas da educação. Participava de uma vertente do movimento reformista ligada a grupos de esquerda alojados no PMDB, cuja estratégia dominante era ocupar espaços no aparelho de Estado visando implementar suas orientações políticas.

A concepção geral da reforma, exposta no documento, elaborado pelos novos dirigentes da SEE, Educação para a Mudança, parte de um diagnóstico geral que aponta os efeitos deletérios da concentração de renda, da exclusão social de grande parcela da sociedade e do divórcio entre Estado e sociedade no Brasil na área educacional. O documento retrata as condições de então: 2 milhões e duzentos mil analfabetos, 23% da população escolar (de 7 a 14 anos) fora das escolas, alto índice de repetência, alta evasão de alunos nos primeiros anos de escolaridade, inadequação de conteúdos, desvalorização dos profissionais de ensino, irracionalidade na distribuição de material, mobiliários e equipamentos escolares. A camada mais pobre da população é apontada como a mais atingida com tal situação. Segundo a concepção exposta pela nova equipe, a transformação desse quadro implicaria não aceitar fórmulas prontas: a solução deveria passar por um amplo debate com toda a sociedade (MINAS GERAIS, 1983c). Assim, o novo governo comprometeu-se a abrir a gestão da educação para uma maior participação da sociedade, já que no regime autoritário diversos segmentos da sociedade (sindicatos, partidos, grupos de interesse, parlamento e etc.) eram excluídos das arenas de tomada de decisões.

A estratégia proposta se contrapunha, portanto, à forma centralizada e burocratizada que caracterizava a gestão da educação pública até então, com a burocracia central da SEE fortalecida em detrimento das unidades escolares, fazendo das escolas meros executores da política traçada pelos escalões superiores do executivo estadual. A gestão da educação era orientada por decisões da SEE que, por sua vez, deveria se adequar às determinações de uma política nacional mais ampla.11 Haveria, assim, um superdimensionamento, em termos de pessoal e atribuições, da SEE e das Delegacias Regionais de Ensino — DREs.12 O documento aponta, ainda, que os profissionais da educação ficavam subordinados à lógica clientelista do jogo de interesses político-partidários, em detrimento dos interesses e necessidades dos alunos. A contratação de profissionais e a indicação da direção das escolas, por exemplo, frequentemente se orientavam por motivações político-partidárias.

Partindo desse diagnóstico, o governo estadual propôs a descentralização político-administrativa13 da política educacional como forma de conceder maior autonomia para as escolas e para as DREs. Isso possibilitaria a participação da comunidade nos destinos das escolas, o que, por si só, implicaria um caráter pedagógico. Defendiam que o processo pedagógico não deveria circunscrever-se à sala de aula, mas a todo ambiente da unidade escolar (MINAS GERAIS, 1985, p. 30).

Na concepção dos dirigentes da SEE, portanto, o papel da educação seria mais amplo que a difusão de conteúdos específicos. Viam a participação como meio de formação do cidadão, como um instrumento de modificação tanto do homem como da estrutura social na qual este se insere. Apostavam que a incorporação dos setores excluídos, através de um processo educativo que enfatizasse a participação, representaria um relevante fator de mudança no perfil de desigualdade econômica e social do estado. Argumentavam que

[...] para ensinar nossos alunos a acompanhar os administradores municipais, em sua atuação política, comecemos por ensiná-los a conviver com a realidade concreta dos municípios, inclusive para saber se o município é explorado econômica ou politicamente. (RODRIGUES, 1984a, p. 9).

Na visão desses novos gestores, para a construção de uma sociedade democrática

[...] seria necessário que todo o processo seja revertido de tal forma que as decisões sejam canalizadas para as organizações sociais, as associações, sindicatos e partidos políticos, a fim de que o Estado se torne executor daquilo que é determinado pelos que têm soberania, isto é, o povo. (RODRIGUES, 1984a, p. 12).

Dessa forma, para a reformulação do sistema estadual de educação, foi proposta uma “discussão ampla e aberta, que levasse em conta as demandas de todos os setores da sociedade civil, a partir de cada um dos 722 municípios de Minas Gerais”, com o objetivo de alcançar a autonomia da escola, que deveria “ser aberta à comunidade, democrática em sua estrutura, no relacionamento professor-aluno e no convívio com a sociedade”, trabalhando para formar o cidadão e visando a construção de uma sociedade justa (MINAS GERAIS, 1983c, p. 5).

A escola deveria, dessa forma, tomar as decisões a respeito do que fazer e do como fazer, cabendo ao nível central do governo estadual fornecer suporte e coordenar as atividades pretendidas pela base. Baseando-se nessa orientação geral, várias metas foram definidas pelo novo governo, cabendo ressaltar as seguintes: valorização dos profissionais de ensino, através, dentre outros itens, da abertura de canais de participação para que as entidades representativas de classe pudessem influenciar na definição e execução de projetos educacionais; articulação do saber técnico e do saber popular através da participação da comunidade nas definições das prioridades da escola; democratização do espaço escolar, com sua abertura para os diversos setores da sociedade civil; universalização da oferta de vagas, com atendimento preferencial para os mais pobres; desburocratização da administração; descentralização administrativa e pedagógica e gestão participativa da comunidade; articulação das redes estadual e municipais;14 assistência ao educando (merenda, material escolar, etc.), como forma de compensar as distorções da política econômica concentradora de renda; e, finalmente, a realização do I Congresso Mineiro de Educação, como etapa para a produção de um projeto educacional para Minas Gerais, com ampla participação de toda sociedade e como forma de aprendizado do convívio democrático (MINAS GERAIS, 1983c).

O I Congresso Mineiro de Educação e seus Desdobramentos

O I Congresso Mineiro de Educação, cuja concepção foi desenvolvida no documento intitulado Congresso Mineiro de Educação: o desafio da mudança da escola pela participação de todos (MINAS GERAIS, 1983a), objetivou, como ressaltado, estabelecer de forma participativa os marcos da reforma do sistema público estadual de ensino. Exemplo de um processo participativo que expressou uma sinergia entre Estado e sociedade civil, envolveu a participação de profissionais do ensino, especialistas educacionais, alunos, pais e outros setores da sociedade civil. Foi organizado visando recolher sugestões desde as localidades até a configuração de uma proposta para o estado. Para tal, inicialmente formou-se uma comissão central, presidida pela Superintendência Educacional da SEE, e composta de representantes de entidades e associações de alguma forma ligadas às questões do ensino, quais sejam: Associação de Diretores de Escolas Oficiais de Minas Gerais — ADEOMG, Associação de Orientadores Educacionais de Minas Gerais, Associação de Professores Públicos de Minas Gerais — APPMG, Associação dos Funcionários Aposentados de Minas Gerais, Associação Mineira de Ação Educativa, Associação Mineira de Inspetores Escolares, Associação Mineira de Supervisores Pedagógicos, Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Belo Horizonte, Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino de Minas Gerais, Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais, União dos Trabalhadores de Ensino de Minas Gerais — UTE.

Formaram-se também comissões ao nível das trinta DREs existentes, sendo que em algumas dessas regionais houve adesões de igrejas, prefeituras e sindicatos. Finalmente, formaram-se comissões municipais, que por sua vez organizaram comissões por escolas. Constituiu-se assim uma cadeia de mobilização envolvendo aproximadamente 30 mil pessoas nos 722 municípios mineiros de então.

O I Congresso realizou-se em três etapas: primeiro no nível das escolas, depois no nível regional e finalmente no âmbito estadual. Na primeira etapa, ocorrida na primeira semana de agosto de 1983, as escolas buscaram diagnosticar, com a participação da comunidade, seus problemas e suas formas de solução, trabalhando sem qualquer roteiro prévio. O relatório consubstanciando as discussões foi enviado ao encontro municipal, composto por representantes das escolas do município. Em 23 de agosto do mesmo ano, os participantes do encontro municipal aprovaram, por sua vez, um documento agregando suas contribuições às propostas enviadas pelas escolas. Além disso, elegeram os representantes municipais para os encontros regionais, realizados nos dias 8, 9, e 10 de setembro. Nesses encontros foram examinadas as propostas enviadas pelos municípios componentes de cada regional. Nessa etapa, podia-se apenas agregar sugestões de soluções aos problemas já levantados nos encontros municipais, ficando vetada a proposição de novos temas para a discussão. Dos encontros regionais foram escolhidos os representantes e especificadas as propostas para o encontro estadual, ocorrido de 3 a 7 de outubro, em Belo Horizonte. A Superintendência Educacional da SEE analisou os 30 documentos regionais, compilando-os no documento “Política Educacional para Minas Gerais” (MINAS GERAIS, 1983e), que foi debatido no encontro estadual, sendo que no último dia do I Congresso foi aprovado o documento final por cerca de 1.100 congressistas, representando 6.200 escolas estaduais das cerca de 6.500 existentes.

O documento final aprovado no I Congresso, “Proposta de Diretrizes Políticas para a Educação em Minas Gerais” (MINAS GERAIS, 1983d), apontou os problemas básicos constatados na educação mineira e definiu as diretrizes básicas para uma política de educação no estado. O diagnóstico do documento seguiu a linha de pensamento difundida pelos movimentos sociais e pelos responsáveis pela SEE que, na verdade, eram afins.

Essa afinidade reflete o fato de que os dirigentes da SEE eram oriundos de movimentos ligados às questões educacionais. Em que pese diferenças de estratégias e de ligações partidárias, a direção da SEE, composta por pessoas ligadas a grupos de esquerda do PMDB, cuja estratégia era ocupar espaços de mando no Estado, compartilhavam uma visão bastante semelhante com os movimentos sociais, especialmente o mais ativo deles, a UTE. Essa entidade tinha ligações mais fortes com o PT e buscava pressionar o governo através de um ativismo desenvolvido no âmbito da sociedade civil, recusando qualquer atuação no interior do Estado. Apesar dessas diferenças, ambos os grupos souberam estabelecer uma cooperação em aspectos fundamentais da reforma.

Neste ponto vale confrontar uma interpretação da reforma que defende que a participação foi meramente formal, e que as decisões reformistas tiveram, de fato, um caráter centralizado e estritamente burocrático, como é o caso de Castro (2006). Essa visão peca, num aspecto, por adotar uma dicotomia rígida entre as esferas do Estado e da sociedade, o que os argumentos desenvolvidos aqui mostram não ser pertinente. Além disso, não atenta para o fato de que as duas vertentes do movimento pelas reformas — uma optando por ocupar cargos públicos, e a outra por uma ação exclusiva no plano societal — compartilhavam um consenso sobre os objetivos básicos a serem alcançados.

Assim os problemas da educação foram vistos como decorrentes do período de autoritarismo político, onde as decisões eram impostas de cima para baixo, desprezando a cultura e os valores do povo brasileiro e gerando descrença, analfabetismo, evasão escolar, repetência e marginalização. A participação e a denúncia do quadro educacional então vigente eram vistas como forma de responsabilizar o governo e as lideranças políticas pelo encaminhamento da questão educacional.

Foram listadas 42 propostas no documento aprovado no I Congresso, que revelam a preocupação com a inversão do estilo tido como autoritário e burocrático da administração da educação, adotado até então, e a necessidade de investir mais recursos nas áreas sociais, dando maior atenção para a população mais pobre. Assim, foi proposta a ampliação dos

[...] canais de participação para todos aqueles que direta ou indiretamente estão vinculados ao processo educacional, com a criação de comissões municipais, regionais e estaduais eleitas, que estudem e viabilizem as propostas vindas das bases e elaboradas pelas DREs e criação de Colegiados [escolares]. (Minas Gerais, 1983d, p. 11).

Essas comissões deveriam ser compostas pelas entidades de classe dos profissionais da educação, dos pais e alunos democraticamente eleitos.

No mesmo sentido, o documento propõe a alteração da “forma de escolha dos dirigentes nos diversos níveis da administração escolar e da administração educacional”, para em outro item precisar a necessidade de “estabelecer a eleição do Diretor por voto direto pela comunidade escolar”. Além disso, o documento expressa uma preocupação redistributiva ao sugerir “mais recursos para as escolas das regiões carentes, rural e de periferia” (MINAS GERAIS, 1983d, p. 13). Foi reivindicada também a criação do 2o grau (hoje ensino médio) nas escolas públicas estaduais.15

Estas propostas resultantes do I Congresso é que orientaram a elaboração do “Plano Mineiro de Educação 1984/87”, cujo conteúdo expressa forte compromisso social, concebendo a educação como meio de estabelecer a

[...] justiça social, através da formulação de uma mudança embasada no processo de democratização entendido como o comprometimento do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade, o que deverá conduzir o homem ao exercício pleno da liberdade e à participação efetiva nos processos decisórios da vida cultural, econômica, política e social. (MINAS GERAIS, 1984a, p. 3).

Os princípios que deveriam orientar a política educacional, conforme exposto no documento, são a universalização do ensino, a melhoria de sua qualidade e o respeito aos valores culturais de cada localidade. Além disso, argumenta-se, como crítica à concepção, adotada até então, que privilegiava a relação entre educação e mercado, que antes de preparar as “classes subalternas” para sua maior eficiência na organização do trabalho, a educação deveria servir à interpretação do mundo visando sua transformação, através da explicitação de conflitos entre interesses plurais e divergentes. As palavras abaixo são cristalinas como expressão do papel que a educação deveria cumprir:

[...] priorizar os alunos das camadas populares da sociedade, no sentido de instrumentalizar e implementar a sua luta de classe bem como a compreensão dos mecanismos de dominação que são usados pela classe dominante contra a classe dominada. (MINAS GERAIS, 1984b, p. 2).

O Plano propõe ainda a participação da sociedade nos rumos da política educacional, o que pressupõe a descentralização político-administrativa, “através do fortalecimento dos órgãos regionais e a criação de outras instâncias ao nível do município e da escola na discussão, elaboração, execução e acompanhamento das atividades educacionais” (MINAS GERAIS, 1984a, p. 20). A meta almejada, relatada no documento, é o envolvimento das pessoas em todo o processo das políticas educacionais, assegurando a apropriação dos planos pelas populações às quais se destinam e consequentemente fortalecendo as possibilidades de seu sucesso. Para tal, visando institucionalizar a participação da sociedade civil, foram propostas medidas para consolidação das comissões emergentes do I Congresso e, além disso, para incentivar a formação de colegiados regionais, colegiados escolares e comissões municipais de educação.

Tais princípios orientaram a formulação de uma série de objetivos, que apontavam para a descentralização do sistema. Especificamente, vale ressaltar as seguintes propostas:

- descentralização administrativa e pedagógica no processo de decisão e execução, confiando maiores e mais complexas responsabilidades aos órgãos regionais;

- institucionalização de mecanismos aptos a gerar mais intensa e efetiva participação, não só dos agentes estatais, mas de toda a comunidade, nos diferentes níveis em que se desdobra a atuação do sistema;

- planejamento descentralizado na tentativa de recuperar a influência das bases, tanto na linha de criação e condução de programas, quanto na linha de controle e avaliação;

- maior autonomia das escolas e melhoria de suas condições de trabalho (materiais, humanas, culturais e administrativas) de forma a estimular e garantir a qualidade da educação a ser realizada na escola;

- estabelecimento de novas formas de relação e cooperação com os municípios objetivando maior integração do ensino público municipal e estadual;

- criação e fortalecimento das comissões municipais e regionais de educação garantindo em suas estruturas a participação das entidades de classe, dos profissionais de educação, dos alunos e representantes da comunidade;

- democratização do processo de escolha das lideranças escolares. (MINAS GERAIS, 1984a, p. 27).

A estratégia de descentralização, proposta no Plano, pressupunha, portanto, a reorganização administrativa do sistema educacional, buscando adequar estrutura e funções dos órgãos centrais e regionais, no sentido de viabilizar o planejamento e a operacionalização das ações propostas de forma descentralizada e participativa, visando garantir o fortalecimento da autonomia dos municípios e das escolas. As instâncias superiores da SEE e as DRE´s deveriam se capacitar para exercer a coordenação do sistema e induzir a participação.

Dentre as propostas surgidas do I Congresso e incorporadas aos documentos da SEE, nem todas foram implementadas. Obviamente, por diversas razões, inclusive as de ordem política, a SEE teve de priorizar certas ações e relegar outras. O grupo dirigente da SEE era parte de um governo composto por forças heterogêneas. Tinham que conviver com interesses e ideologias diferenciadas. Como a proposta de reforma da educação contrariava interesses poderosos, especialmente dos grupos governistas que utilizavam as escolas como instrumentos de disputas eleitorais, tiveram que negociar e transigir em alguns pontos. Conflitos entre posições divergentes dentro do governo fortaleceram a articulação dos dirigentes da SEE com setores da sociedade civil visando lograr os avanços possíveis. Dessa forma, estrategicamente priorizaram a implementação daquelas ações mais viáveis em termos políticos, ou seja, a constituição dos Colegiados escolares e das Comissões Municipais de Educação e o concurso público como critério de recrutamento de professores. Politicamente polêmica, a eleição dos diretores da escola pela comunidade escolar não foi formalizada.16 Nota-se, portanto, um movimento duplo em que a esfera estatal busca suporte para suas ações no plano social, e os ativistas sociais buscam embutir suas reivindicações na agenda estatal, configurando um caso de “autonomia inserida” (EVANS, 1996).

As Comissões Municipais de Educação foram organizadas visando institucionalizar os espaços de discussão e decisão que foram criados no I Congresso. Eram integradas por segmentos sociais diversos, como prefeitos, vereadores e outros tipos de lideranças regionais. Seu objetivo era

[...] possibilitar a integração dos vários interesses dos cidadãos e definir as prioridades educacionais desde a necessidade de novas escolas até aquelas relativas a tipos e formas de treinamento de professores, de assistência aos educandos, de articulação entre o poder municipal e estadual, no que diz respeito à educação. (RODRIGUES, 1984a, p. 13-14).

Dentre as diversas funções das Comissões Municipais de Educação uma merece ser destacada. As Comissões tiveram um papel importante na política de ampliação das vagas do governo. Quando foi decidido que haveria expansão da rede pública estadual de ensino, os deputados começaram a pressionar para que as escolas fossem criadas nos seus redutos eleitorais. Como a oferta de escolas era limitada, a estratégia da SEE foi colocar como interlocutores dos parlamentares as Comissões Municipais de Educação, fazendo com que seus interesses político-eleitorais tivessem que se confrontar com os da sociedade organizada. A SEE elaborava um levantamento prévio do número de escolas disponíveis para cada DRE e, posteriormente, reunia as Comissões para resolver a alocação de escolas em cada região. Os dirigentes da SEE buscavam induzir a criação das Comissões visando minimizar os interesses político-eleitorais e clientelistas na gestão da educação. Ao fortalecer a participação da sociedade civil, reforçavam a sua própria posição. Como efeito, Cunha aponta:

Não que eles [os políticos] deixassem inteiramente de exercer influência: na medida em que a maioria dos deputados, assim como prefeitos, participava de comissões municipais de educação, sua influência era exercida em um novo espaço político, junto com outros agentes sociais como professores pais e alunos. (CUNHA, 1991, p. 173).

Outra proposta implementada foi a dos Colegiados escolares.17 Concebidos pela direção da SEE e reivindicados no I Congresso Mineiro de Educação, tornaram-se, posteriormente, referência para reformas em diversos estados brasileiros.18 Na verdade, consolidaram-se como um espaço para a continuidade da mobilização ocorrida com o I Congresso Mineiro de Educação.

Os Colegiados foram compostos por professores, funcionários das escolas, pais, alunos maiores de 16 anos e grupos comunitários com interesses nas questões educacionais. Seu objetivo era o de “democratizar o processo pedagógico e a infraestrutura que o suporta, resgatando o direito de participação de toda a comunidade escolar, nas decisões que afetam a vida da escola” (MINAS GERAIS, 1983b). Tinham funções de caráter deliberativo e consultivo nos assuntos da vida da escola e de seu relacionamento com a comunidade. Poderiam decidir sobre as prioridades e metas educacionais a serem desenvolvidas pela unidade escolar, como conteúdo do ensino, calendário escolar, espaço físico necessário, suporte material e outros itens (MINAS GERAIS, 1985, p. 4; MINAS GERAIS, 1984a).

Os Colegiados foram criados apesar das pressões em contrário. Se, por um lado, sua criação atendia ao anseio da direção da SEE, da maioria da categoria dos trabalhadores do ensino e de parcela ativa da sociedade civil, por outro provocou resistência de parte significativa dos diretores escolares, então indicados por critérios político-partidários. Havia o receio desses diretores da perda de poder para os Colegiados. Receio fundado, já que o que estava sendo questionado era o monopólio das decisões pelos diretores escolares e, indiretamente, pelos políticos governistas que os indicavam. Assim, de alguma forma ficou difícil compatibilizar a convivência de um diretor indicado por critérios político-eleitorais com um Colegiado escolhido pela comunidade escolar. Na verdade, tal questão envolveu um embate prático, dentro do espaço da escola, de duas concepções diferentes de gestão da educação ou, em outros termos, de duas lógicas: uma que buscava instrumentalizar as escolas para fins político-eleitorais, e outra que visava adequar as escolas aos objetivos dos alunos, pais, professores e funcionários.

O governo, portanto, logrou êxito em constituir as Comissões Municipais de Educação e os Colegiados escolares. Porém a eleição direta para os diretores não foi adotada. Tal fato é um exemplo dos constrangimentos políticos que limitavam as reformas. A reivindicação por eleições para diretores de escola era parte importante da luta pelas reformas dos sistemas públicos de educação em todo o país. Particularmente, com relação às políticas de democratização das escolas era a medida mais problemática politicamente. A indicação dos diretores escolares pelos políticos governistas fornecia um instrumento de poder bastante considerável.19

Em Minas Gerais, a escolha dos diretores era, havia muito tempo, atribuição formal dos secretários de educação, excetuando-se a realização de um único concurso público na década de 1960. No entanto, de fato, a indicação baseava-se em critérios político-partidários: era atributo dos deputados governistas majoritários em cada região. A lógica implícita nessa forma de indicação era a do uso da educação como recurso do jogo político-eleitoral. E não era um recurso desprezível: só de diretores e vice-diretores havia mais de 10.000 cargos para que as lideranças políticas governistas indicassem. Além de dispor do próprio cargo de diretor para estabelecer barganhas, a convocação de pessoal, como funcionários e professores, e a disponibilização das vagas para alunos, acabava se dando visando atender os interesses eleitorais do titular das indicações. Para quantificar a dimensão do que estava em jogo, vale registrar que havia um deputado em Minas Gerais que indicava cerca de 400 diretores.20

As reações dos dirigentes da SEE às cobranças de regulamentação das eleições diretas para diretor eram dúbias. Se, por um lado, a direção da SEE era favorável ao critério da eleição, por outro tinha que sustentar a posição oficial do governador que era a de não assumir a defesa do critério da eleição. Na verdade sua posição sempre foi dúbia em relação ao tema. O próprio governador Tancredo Neves dizia, para os dirigentes da SEE, ser pessoalmente favorável a eleições diretas de diretores, e por um motivo especial: afirmava ser extremamente desgastante politicamente se envolver na indicação de diretores por parte dos políticos. Porém o governador não tomou posição clara por pressão dos deputados governistas, titulares das indicações por critérios político-partidários, que tinham um trunfo: a adoção do novo critério teria que se dar através de lei votada no Legislativo estadual.

Mesmo com a postura cautelosa de não defender em público o critério das eleições, a direção da SEE atraiu a desconfiança da maioria dos diretores de então, que viam seus cargos ameaçados. Essa situação prejudicava a relação da SEE com as escolas. Na Assembleia Legislativa também houve reações contra a direção da SEE. Em 1983, por exemplo, quando se falou em eleição de diretor no I Congresso Mineiro de Educação, o deputado Samir Tannús (PDS), vocalizando posição majoritária entre seus pares, pressionou o governador para demitir o superintendente educacional da SEE, Neidson Rodrigues, com o argumento de que este estava usurpando uma função dos deputados. A direção da SEE era fustigada pela maioria dos deputados que formavam a base parlamentar do governo.

Por ouro lado, as palavras de Rodrigues reproduzidas abaixo, expressam a avaliação dos dirigentes da SEE em relação aos parlamentares:

Muitos grupos procuram intervir no campo da educação para impedir que as ações da Secretaria da Educação estejam devidamente acopladas aos interesses de uma política favorável à maioria da população. É o caso, por exemplo, dos deputados e políticos em geral que, frequentemente, querem usar o serviço público para favorecer os seus objetivos eleitorais. (1995, p. 65).

No entanto, apesar dessas reações, houve uma progressiva modificação do perfil dos diretores indicados e de suas relações com os parlamentares, resultante, mais uma vez, de uma estratégia combinada entre os dirigentes da SEE, os representantes dos trabalhadores do ensino e de outros setores do movimento reformista. Tanto a UTE como a APPMG, e, veladamente, integrantes da SEE, começaram a orientar as comunidades, especialmente as mais organizadas, a pressionar seus deputados para que indicassem para a direção das escolas pessoas escolhidas em eleições realizadas de maneira informal. A orientação interna da SEE era para que as escolas realizassem as eleições como forma de pressão, posição que tinha a aquiescência do governador.21 Assim formavam-se grupos nas escolas que procuravam os parlamentares para reivindicar a indicação das pessoas escolhidas pelo voto. Esse trabalho alcançou maior sucesso nas comunidades onde a população e os trabalhadores do ensino eram mais organizados. Nesse processo, os Colegiados tiveram, em muitos casos, um importante papel, por se constituírem em espaço de discussão dos problemas da escola e pela sua função aglutinadora da comunidade escolar. Além disso, algumas Comissões Municipais de Educação eram pressionadas pelas comunidades para que tentassem reverter com certos deputados indicações indesejáveis. Muitos parlamentares encaminhavam a indicação dos diretores com ata do Colegiado Escolar e/ou das Comissões Municipais referendando o nome indicado, colocando-se, portanto, como intermediários da comunidade junto a SEE.

Em vários casos em que deputados indicavam diretores não articulados com suas comunidades, o autor da indicação era cobrado pela ilegitimidade do nome indicado. Enfim, a ação conjugada das entidades representativas dos trabalhadores do ensino, com setores da sociedade civil, junto com a ação da SEE, começou a criar fatos consumados que obrigavam parlamentares a se subordinar à vontade da comunidade escolar ou que implicava no desgaste político dos que ignoravam as pressões das comunidades. Sem condições para quantificar o fenômeno das eleições informais, pode-se dizer que foi um movimento significativo, principalmente nos municípios maiores.22

Conclusão

Como balanço do processo de reforma educacional abordado neste trabalho, pode-se dizer que os resultados foram significativos. Houve uma real transformação nos fundamentos da política estadual de educação. A SEE logrou realizar o I Congresso Mineiro de Educação como maneira de formular uma política de reforma com ampla participação da sociedade, evidenciando a atuação cooperativa entre sociedade civil e governo. Mais que isso, buscou-se propor formas institucionalizadas de gestão compartilhada da educação, onde a burocracia e diversos setores da sociedade civil poderiam decidir conjuntamente sobre as ações no setor. Foram criados os Colegiados escolares e as Comissões Municipais de Educação. Mesmo em relação às eleições de diretores, que não foram adotadas formalmente pelas pressões contrárias, conseguiram de maneira informal indicar um número substantivo de diretoras pelas ações coordenadas entre atores estatais e da sociedade civil.

O processo de reforma do sistema público de educação de Minas Gerais envolveu múltiplos atores com interesses contrastantes e ideologias variadas. No entanto, os protagonistas da reforma foram grupos de esquerda, oriundos dos movimentos sociais, com militância profissional na área da educação. Como ocorreu nas reformas de outras áreas de políticas sociais, o parâmetro para as propostas apresentadas era superar o desenho centralizado e clientelista das instituições legadas pelo regime autoritário. Se, num primeiro momento, um movimento de grupos da sociedade civil clamava pela reforma das instituições educacionais, demandando a descentralização do sistema como forma de adotar formas participativas de gestão, posteriormente, com a vitória de um candidato de oposição ao governo do estado, alguns setores oriundos da sociedade civil passaram a ocupar cargos no governo, tornando-se tomadores das decisões relacionadas com as reformas.

Assim, de um cenário inicial em que se contrapunham setores reformistas, atuando no plano da sociedade civil, em combate aos grupos autoritários encastelados no poder estatal, no ocaso do regime militar, descortina-se uma realidade em que se encontravam no comando das instituições públicas setores oriundos dos movimentos sociais comprometidos com os mesmos princípios reformistas defendidos desde o final dos anos de 1970.

Dessa forma, com o acesso de alguns desses atores reformistas aos espaços de mando no estado, ficou patente que a clara distinção entre o Estado e a sociedade e, em outro plano, o técnico e o político, perdeu sua vigência. Na verdade o que ficou demonstrado foi que os atores reformistas agiram ora como burocracia e ora como ativistas dos movimentos sociais e, em casos significativos, das duas formas concomitantes, caracterizando o que podemos denominar de “atores anfíbios”. Houve como que uma sinergia entre a esfera estatal, da tomada de decisões, e a esfera societal, da articulação das demandas ao Estado.

Isso, porém, não significou um compartilhamento harmônico de ações entre os novos dirigentes das instituições educacionais e os setores da sociedade civil de onde vieram. Como se disse, esses grupos, apesar de compartilharem do repúdio ao regime autoritário e de teses de esquerda, eram heterogêneos, com ideias matizadas e objetivos políticos diversos. Além do mais, os requisitos para a ação dos grupos que estavam no governo eram substantivamente diversos dos que orientavam a ação dos grupos localizados na sociedade civil. A liberdade de ação dos primeiros é sensivelmente mais limitada. Estar no governo implica limites e responsabilidades que os grupos localizados na sociedade civil não têm. No entanto, como procuramos mostrar, esses grupos criaram sinergias e convergiram nos aspectos básicos que deveriam orientar o redesenho do sistema público educacional, emprestando-lhe fundamentos democráticos, seja no sentido da constituição de espaços de decisões compartidas entre os diversos setores interessados nessa política específica, seja, numa perspectiva mais substantiva, no sentido de instrumentalizar a educação para a promoção das classes excluídas.

Referências

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TORGERSON, David. Between Knowledge and Politics: Three Faces of Policy Analysis. Policy Sciences, n. 19, p. 33-59, 1986.

 

GLOSSÁRIO

ADEOMG — Associação das Escolas Oficiais de Minas Gerais

APM — Associação de Pais e Mestres

APPMG — Associação dos Professores Públicos de Minas Gerais

DRE — Delegacia Regional de Ensino

PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PDS — Partido Democrático Social

PDT — Partido Democrático Trabalhista

PFL — Partido da Frente Liberal

PT — Partido dos Trabalhadores

SEE — Secretaria de Estado de Educação

UTE — União dos Trabalhadores do Ensino

 


  1. Essa é a característica, por exemplo, dos estudos produzidos pelos consultores do Banco Mundial no período. Notar, por exemplo, os pressupostos que orientam o trabalho de Grindle (2004) sobre as reformas educacionais na América Latina. Ver ainda Barbosa (1995) e Castro (1994a).↩︎

  2. Para essa discussão ver Torgerson (1986).↩︎

  3. Este trabalho é parte de uma pesquisa financiada pelo CNPQ a quem agradeço. Sou grato também aos comentários valiosos do parecerista anônimo desta revista.↩︎

  4. Esse processo é analisado em Rocha (2006).↩︎

  5. Como se sabe ao longo do regime instaurado em 1964 os governadores dos estados eram indicados de forma indireta: na prática, pelo governo central. No processo de abertura política, houve uma primeira eleição direta para governadores em 1982.↩︎

  6. Em geral, as relações federativas brasileiras relativas à política educacional oscilaram entre maior ou menor descentralização, com ênfase na prerrogativa da esfera estadual. No período tratado neste trabalho, há um movimento de afirmação das prerrogativas dos estados e municípios, em geral, e na produção das políticas de educação, em particular. Ver, por exemplo, Abrucio (2010, p. 39-70). Em 1991, Minas Gerais contava com cerca de 6.500 escolas públicas estaduais, 2,7 milhões de alunos e 204 mil professores e funcionários (Secretaria de Estado de Educação — Centro de Produção e Administração de Informações).↩︎

  7. O PMDB foi o partido que se contrapunha ao PDS, partido herdeiro dos apoiadores do regime autoritário.↩︎

  8. Tancredo Neves era então um político de grande experiência e projeção nacional. Havia sido, por exemplo, ministro de Getúlio Vargas e primeiro-ministro na curta fase parlamentarista do Brasil nos anos de 196l. Apesar de seu estilo conciliador, com trânsito em setores que iam da direita à esquerda do espectro político, colocou-se na oposição ao regime militar durante toda a sua vigência.↩︎

  9. A oposição elegeu governadores, além de Minas Gerais, em estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco.↩︎

  10. O PMDB era um partido heterogêneo ideologicamente, contando com uma ala progressista bastante ativa.↩︎

  11. No regime militar o planejamento geral era delineado, pelo governo central, em Planos Nacionais de Desenvolvimento — PND´s, que orientavam a elaboração de planos setoriais, como os Planos Setoriais de Educação e Cultura — PSEC´s. Tais documentos deveriam balizar as ações dos estados e municípios.↩︎

  12. A Delegacia Regional de Ensino é o órgão da Secretaria de Estado da Educação que serve de ligação entre a administração central e as escolas localizadas em sua região de atuação.↩︎

  13. Descentralização significa aqui deslocar o poder de decisão da SEE para as escolas, com a criação de espaços de participação de setores da sociedade civil nos processos de tomada de decisões.↩︎

  14. No período, em grande medida a oferta de educação fundamental era do estado. Porém, alguns municípios ofertavam esse nível de ensino, sem articulação com a rede estadual. Isso colocou a necessidade de articulação entre as duas redes.↩︎

  15. Até então, havia um acordo informal, porém efetivo, em que o governo do estado garantia reserva de mercado do 2O grau para setor privado. Como a oferta do ensino refletia os estímulos do mercado, as regiões mais pobres e distantes tinham que enviar os alunos para estudar nas cidades maiores e mais ricas.↩︎

  16. Tal medida só foi adotada no início dos anos de 1990.↩︎

  17. Foram implementados pela Resolução 4.787 de 29/10/1983, que é alterada, superficialmente, pelas Resoluções 5.186/84 e 5.205/84. Na verdade, a primeira referência legal à constituição de Colegiados no estado encontra-se no Art. 139 da Lei 7.109/77 de 13/10/1977-Estatuto do Pessoal do Magistério Público do Estado de Minas Gerais. Tanto esta Lei como a Resolução 3.119/79 da SEE referente ao assunto são imprecisas sobre as funções e composição dos Colegiados (PRAIS, 1996:64). De fato, até 1980, estas iniciativas não saíram do papel. A partir de então, antes como exceção que como regra, algumas poucas escolas da rede estadual conseguiram organizar Colegiados atuantes (por exemplo, a Escola Estadual “Alisson Pereira Guimarães” do bairro Ressaca, em Belo Horizonte), o que pode ser creditado ao vigor da organização da comunidade escolar.↩︎

  18. Como a reforma da educação em Minas Gerais se insere no processo de reformas em diversos outros estados da federação, houve difusão de experiências entre vários estados brasileiros. A adoção da gestão colegiada da escola, no caso, se faz como um dos aspectos da busca da democratização do Estado e da sociedade brasileira, a partir dos anos de 1980. Vários estados adotaram tal medida como, por exemplo, Goiás, em 1984; São Paulo, em 1985; Mato Grosso, em 1987; Espírito Santo, em 1989; Maranhão, Paraná e Mato Grosso do Sul, em 1991; e Bahia, em 1992 (PRAIS, 1996).↩︎

  19. Se nos anos de 1960 a nomeação dos diretores escolares pelo Executivo estadual, atendendo indicação dos políticos governistas, era o critério amplamente utilizado em todo o país, já se ensaiava, em alguns estados, outras formas mais democráticas de provimento dos cargos de diretores. Em 1966, no Rio Grande do Sul, e em 1969, no Paraná, os colégios estaduais começam a votar listas tríplices para o secretário da Educação escolher o diretor. Com o acirramento do regime autoritário, no final dos anos 60, essas experiências refluem e os diretores voltam a ser nomeados em todos os estados. Já na década de 1980 a prática de eleições de diretores escolares foi se difundindo: no município do Rio de Janeiro, em 1983; em Santa Catarina, em 1984; e nos estados do Paraná, Pernambuco e no Distrito Federal, em 1985.↩︎

  20. Esse deputado era José Laviola, um exímio articulador de mecanismos clientelistas.↩︎

  21. O secretário da educação, Octávio Elízio, afirmou em entrevista ao autor deste trabalho ter abordado o tema das eleições com o governador. Tancredo Neves, segundo o secretário, afirmava não assumir tal critério alegando a reação contrária do Legislativo. No entanto, é fato que acatava as indicações realizadas através das eleições informais, quando aceitas pelo deputado majoritário. Houve a afirmação de que em alguns casos buscou mesmo persuadir parlamentares a acatar a vontade manifesta pelas comunidades, porém sem nunca quebrar o critério do majoritário.↩︎

  22. A avaliação da relevância desse processo é feita por alguns dos entrevistados, especialmente Neidson Rodrigues, da SEE, Magda Campbel e Helena Rolla, dirigentes, respectivamente da ADEOMG e APPM.↩︎

Resumo:
O trabalho trata, de forma descritiva, do processo de reforma do sistema público de educação de Minas Gerais, nos anos de 1980, fundado na ativação de espaços de participação da sociedade civil nos processos de decisão pública. No caso, a atuação dos setores reformistas se deu através da realização de uma conferência estadual com ampla participação dos setores interessados. Além da ênfase descritiva, o trabalho busca sugerir marcadores analíticos fazendo referência a um debate ainda incipiente, que busca avançar em relação às abordagens das instituições participativas, pressupostas numa clara distinção entre Estado e sociedade civil. Chama a atenção para a relevância da atuação de atores que buscaram conjugar estratégias de ocupação dos espaços estatais de decisão com a atuação no plano da sociedade civil. Busca mostrar que tais estratégias permitiram transformar reivindicações em políticas efetivas.

Palavras-chave:
Política educacional; participação social; relações Estado/sociedade.

 

Abstract:
This paper deals descriptively with the process of reform of the public education system of Minas Gerais in the 1980s, founded on the activation of spaces for civil society participation in public decision-making processes. In this case, the reformist sectors acted through the holding of a state conference with broad participation of the interested sectors. Beyond the descriptive emphasis, the paper seeks to suggest analytical markers referring to a still incipient debate, which seeks to advance in relation to the approaches of participatory institutions, presupposed in a clear distinction between state and civil society. It draws attention to the relevance of the performance of actors who sought to combine strategies for occupying state decision-making spaces with civil society action. It seeks to show that such strategies have made it possible to turn claims into effective policies.

Keywords:
Educational politics; social participation; State/society relations.

 

Recebido para publicação em 02/09/2019
Aceito em 28/10/2019