Revista de Psicologia, Fortaleza, v.16, e025003. jan./dez. 2025
DOI: 10.36517/revpsiufc.16.2025.e025003
RECEBIDO EM: 14/09/2024
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 24/01/2025
APROVADO EM: 21/02/2025
Práxis clínica na psicologia histórico-cultural: Um estudo de teses e dissertações brasileiras
Clinical praxis in historical-cultural psychology: A study of brazilian theses and dissertations
Ana Paula Vieira Faria
Ana Paula Vieira Faria – Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Brasil. Mestre, https://orcid.org/0009-0007-8418-129X. E-mail: psico.anapaulavfaria@gmail.com
Claudia Aparecida Valderramas Gomes
Cláudia Aparecida Valderramas Gomes – Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Brasil, Doutora em Educação. https://orcid.org/0000-0002-1864-1178.
E-mail: claudia.gomes@unesp.br
Resumo
Este artigo sintetiza os resultados de uma pesquisa de mestrado, cujo principal objetivo foi analisar dissertações e teses, publicadas no Brasil nos últimos vinte anos, que versaram sobre a práxis clínica à luz da Psicologia Histórico-Cultural. Para alcançar esse propósito, foram analisadas cinco produções acadêmicas publicadas no período de 2001 a 2021, empregando a análise de conteúdo, constituída por quatro etapas principais: pré-análise, descrição analítica, categorização e interpretação. De modo complementar, utilizou-se um roteiro composto por onze perguntas orientadoras para auxiliar e direcionar a leitura dos materiais. Por meio dessa metodologia, chegou-se à categoria atividade como unidade essencial de análise da pesquisa, tendo em vista explicar o entendimento dos pesquisadores analisados sobre a clínica na Psicologia Histórico-Cultural. Os fundamentos estruturais da atividade que orientaram as análises foram: a finalidade do trabalho na clínica; o objeto (matéria) sobre o qual esse trabalho incide e os meios requeridos para essa intervenção. A pesquisa também evidenciou a escassez de materiais e a importância de reflexões para o Em resumo, os resultados destacaram o papel do psicólogo como mediador, a consciência como o objeto da práxis clínica e o diálogo como o principal instrumento de trabalho.contínuo desenvolvimento coletivo dessa práxis.
Palavras-Chave: Clínica; psicologia histórico-cultural; vigotski.
Abstract
This article summarizes the results of a master's degree research, whose main objective was to analyze dissertations and theses, published in Brazil in the last twenty years, which dealt with clinical praxis in the light of Historical-Cultural Psychology. To achieve this purpose, five academic productions published between 2001 and 2021 were analyzed, using content analysis, consisting of four main stages: pre-analysis, analytical description, categorization and interpretation. In addition, a script composed of eleven guiding questions was used to assist and direct the reading of the materials. Through this methodology, the activity category was arrived at as the essential unit of research analysis, with a view to explaining the analyzed researchers' understanding of the clinic in Historical-Cultural Psychology. The structural foundations of the activity that guided the analyzes were: the purpose of the work in the clinic; the object (matter) on which this work focuses and the means required for this intervention. In summary, the results highlighted the role of the psychologist as mediator, conscience as the object of clinical praxis and dialogue as the main working instrument. The research also highlighted the scarcity of materials and the importance of reflections for the continuous collective development of this praxis.
Keywords: Clinical; historical-cultural psychology; vygotsky.
O presente artigo resulta da dissertação de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/ Campus de Assis-SP, Brasil, e financiada pela Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
O estudo teve como objetivo principal identificar e analisar como os aspectos teóricos, metodológicos e práticos formulados pelos estudos de Mestrado e Doutorado, publicados no Brasil nas duas últimas décadas (2001-2021), apoiam a congruência entre a psicologia Histórico-Cultural e a práxis clínica. Este artigo apresenta uma síntese dos principais argumentos desenvolvidos na dissertação, por meio da unidade de análise da pesquisa e seus desdobramentos.
Historicamente, a psicologia Histórico-Cultural tem se consolidado no Brasil por meio de estudos e práticas voltadas para as áreas educacional e social, como evidenciam Asbahr e Oliveira (2021). As autoras analisaram os grupos de pesquisa, vinculados ao Diretório de Grupos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações – CNPq/Brasil, que possuem como abordagem norteadora a Teoria Histórico-Cultural; a pesquisa apontou uma significativa concentração dos mesmos grupos na área das Ciências Humanas, notadamente na Educação (58,26%, 67 grupos).
Conforme apontado por Asbahr e Oliveira (2021), a área da Psicologia registra 32,17%, dos grupos. Destes, a maioria faz referência à Psicologia Educacional e/ou Escolar e Psicologia Social em seus títulos. Somente um grupo apresenta no título a palavra ‘clínica’ (Núcleo de Investigações Clínicas e Educacionais) e outro a expressão ‘saúde mental’ (Psicologia Histórico-Cultural e saúde mental). Desse modo, o exame sobre os grupos de pesquisa (Asbahr e Oliveira, 2021) reforça o que os periódicos já vêm divulgando: um número significativo de produções nas áreas educacional e social e uma carência no campo da clínica, quando o aporte teórico é a psicologia Histórico-Cultural.
A entrada e a difusão da Teoria Histórico-Cultural no Brasil podem explicar a predominância dessa teoria nas áreas educacional e social. Os materiais de autores da Escola Soviética de Psicologia foram censurados na ‘era stalinista’, tornando vagarosa a propagação internacional dos textos, a exemplo do que ocorreu no Brasil, país onde só chegaram ao final da década de 80 e início dos anos de 1990 (Martins, 2013).
Inicialmente, as obras de Lev S. Vigotski (1896-1934) foram utilizadas como referência teórica em diversas áreas, exceto na clínica, logo as categorias e os escritos que referiam ou enfatizavam aspectos clínicos foram secundarizados ou até mesmo ignorados (Lima, 2020). O pensamento do autor russo chega nos Estados Unidos por meio de Bruner, um psicólogo cognitivista que trabalhava com as temáticas do desenvolvimento e da educação. Diante disso, categorias como a personalidade e as emoções foram ignoradas nas obras Vigotskianas. Na América Latina, exceto em Cuba, o pensamento desse autor chega pelo campo da Psicologia Social e do desenvolvimento, com um viés marxista. Em síntese, nos dois cenários, categorias importantes para se conceber a clínica, como a patologia, o sujeito e a personalidade, são negligenciadas e pouco estudadas (Rey, 2007 apud Lima, 2020).
Apesar da interdição a vários escritos de Vigotski sobre a clínica, bem como a algum texto do autor concebendo, exclusivamente, essa práxis, há indícios desse trabalho registrados na sua produção. No livro Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia (2018), na quarta aula, há uma breve descrição de três casos clínicos realizados no Instituto de Defectologia, assim como no tomo IV das obras escolhidas (Vigotski, 1996). Além desses dois textos, há um recente estudo (Vigotski, 2018), em que são constados seis casos clínicos apresentados pelo autor; tais estudos são referências para a reflexão sobre as particularidades de uma clínica nesta perspectiva teórica. Autores e pesquisadores que conviviam e trabalhavam com Vigotski asseguram
Não se pode compreender o profundo interesse de Vigotski pelos problemas da psicologia infantil e das idades sem ter em conta que ele foi um teórico e, o que é particularmente importante, um prático na esfera do desenvolvimento psíquico anormal. Durante muitos anos, ele exerceu a direção científica de uma série de pesquisas que se realizaram no Instituto Experimental de Defectologia e participou sistematicamente nas consultas das crianças, cumprindo também aqui um papel dirigente. Por suas consultas, passaram centenas de crianças com as mais diferentes anomalias do desenvolvimento psíquico (Bein et al., 2022, p.471).
Nota-se, assim, que o autor russo trabalhou com a pesquisa clínica. No instituto, Vigotski atendeu, esporadicamente, alguns casos de crianças que apresentavam desenvolvimento atípico; Elkonin (1996) aponta o trabalho de Vigotski como diretor científico das pesquisas que aconteciam no Instituto Experimental de Defectologia e enfatiza que “o próprio Vygotski foi psicólogo em toda sua vida científica” (Elkonin, 1996 p.412).
Desse modo, é incompatível rejeitar ou apagar a possibilidade de uma práxis clínica na Psicologia Histórico-Cultural sob o argumento de que os autores soviéticos não faziam clínica. Ao contrário, como um dos teóricos a defender a clínica, baseada no materialismo histórico e dialético, Miasischev (1962) ressalta a legitimidade de uma prática clínica.
A psicoterapia soviética, construída sobre as tradições do marxismo-leninismo, da fisiologia de I. P. Pavlov, e da psicologia materialista, tem uma base verdadeiramente científica; está intimamente relacionada à higiene e à profilaxia. Sob as condições de uma sociedade socialista, tal como todos os outros ramos da medicina, ela dispõe de todas as premissas para um amplo desenvolvimento e um uso produtivo na prática da proteção e da restauração da saúde dos trabalhadores (p.14).
Neste artigo, o enfoque está na práxis, direcionada ao contexto clínico e/ou psicoterápico. Quanto à definição de psicologia clínica, a Resolução do Conselho Federal de Psicologia – CFP - N.º 013/2007 dispõe que essa área engloba distintos contextos, como trabalhos individuais, grupais, institucionais e/ou sociais. Na atuação, considera-se toda a complexidade do indivíduo e busca-se auxiliar na redução do sofrimento. As ações podem ocorrer por meio de orientação, atendimentos terapêuticos (psicoterapia lúdica, individual, grupal, de casal, de família, arte terapia, dentre outras modalidades), trabalho em equipes multiprofissionais, contextos hospitalares, instituições de saúde mental, programas de atenção primária, acompanhamento de pesquisas e políticas de saúde mental.
Antes de adentrar aos pressupostos teóricos e metodológicos da clínica expressados pelas teses e dissertações analisadas, faz-se necessário indicar que este estudo se coaduna à definição de práxis como a unidade de ação e consciência, distinguindo-se de uma prática simplista, conforme apontado por Vázquez (1997).
A práxis é entendida como uma atividade prática humana, a um só tempo subjetivo e objetivo, ideal e real, espiritual e material, que desemboca na transformação prática, efetiva, do mundo do homem; portanto, trata-se de apenas transformar sua consciência, mas também as relações e instituições sociais que condicionam sua consciência, sua subjetividade. (Vázquez, 1997, p.55, tradução nossa)
Ainda, segundo Vázquez (1977): “Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis.” (p. 185), visto que a práxis é uma atividade consciente, que busca e alcança a transformação. A escolha de apontar a clínica na Psicologia Histórico-Cultural como práxis justifica-se pela base filosófica e metodológica da teoria, o materialismo histórico e dialético. Desse modo, compreendemos que essa clínica não é neutra e busca romper com algumas práticas que sustentam teses individualizantes que compactuam com uma sociedade burguesa, marcada por injustiças e desigualdades sociais.
Procedimentos metodológicos: a produção dos dados
O estudo se caracterizou como uma pesquisa bibliográfica. A pergunta norteadora foi: como a prática clínica, baseada nos princípios teórico-filosóficos e metodológicos da psicologia histórico-cultural, é descrita nas dissertações de Mestrado e teses de Doutorado brasileiras publicadas nos últimos vinte anos? Tal questão partiu da hipótese de que, tendo chegado ao Brasil em meados do século XX, as referências teóricas da psicologia soviética, constituídas em um tempo e contexto sociopolítico e econômico muito diverso, foram sendo incorporadas à sociedade brasileira e à ciência psicológica, a qual, na atualidade do século XXI, deve apresentar contornos específicos para a sua expressão na clínica.
Para responder ao objetivo primeiro da pesquisa, qual seja, identificar e analisar como os aspectos teóricos, metodológicos e práticos, formulados pelos estudos de Mestrado e Doutorado, publicados no Brasil nas duas últimas décadas (2001-2021), apoiam a congruência entre a psicologia Histórico-Cultural e a práxis clínica, o estudo seguiu as seguintes etapas: identificação de teses e dissertações publicadas entre 2001 e 2021 por meio de palavras-chave relevantes; seleção dos materiais pertinentes; organização e análise das produções que abordam a relação entre a Psicologia Histórico-Cultural e a práxis clínica. É importante advertir que os estudos selecionados se concentraram na clínica com adultos.
A escolha do período - 2001 a 2021 - se justificou pelo fato de as primeiras traduções das obras de Vigotski terem chegado ao Brasil entre os anos 1980 e 1990, o que implica que levaria algum tempo para que esses conceitos fossem incorporados em dissertações e teses brasileiras. O ano de 2021 foi escolhido por ter sido o ano de ingresso da autora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras – FCL – UNESP/Assis-SP, Brasil.
Resultados e discussão
Para o tratamento dos dados utilizou-se a análise de conteúdo, uma técnica ou método empregado para descrever e interpretar um material (Filho, Filho; 2015), composto pelas etapas: I) pré-análise, II) recorte do conteúdo ou seleção de extratos do texto; III) descrição e análise dos materiais selecionados e IV) interpretação do material produzido. Dentre o que foi proposto como produção, organização e procedimentos utilizados para a descrição e interpretação do material selecionado constituiu-se a unidade de análise da pesquisa, objetivada na categoria atividade. De maneira mais específica se almejou responder à questão: como emerge o entendimento dos autores e autoras analisados sobre a clínica por meio da unidade mínima ou essencial de análise atividade?
Portanto, a análise das duas dissertações e das três teses culminou na construção de uma unidade de análise, tendo em vista elucidar a práxis clínica, com base nos fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural. A unidade essencial – atividade – foi estabelecida pelo fato de a mesma incorporar princípios que, conforme a filosofia marxiana, explicam os nexos constitutivos da própria atividade humana.
Ao discutir sobre questões de método, Vigotski (2020) aponta que um procedimento comumente utilizado em pesquisas é o da análise por elementos, ou seja, estuda-se o fenômeno decompondo-o e estudando suas partes isoladamente, o que compromete a apreensão da totalidade do que está sendo pesquisado. O autor contraria esse procedimento, que põe em destaque os elementos, e defende a análise por unidades, visto que essa última compreende as propriedades e características da totalidade.
Apreender a totalidade de um fenômeno é compreender a lógica que o determina, o que não significa conhecer tudo. Desse modo, a totalidade é constituída por elementos complexos, e partir de suas relações e nexos compõe a síntese dessa totalidade (Martins, Lavoura; 2018). Logo, a unidade de análise é uma síntese articuladora que incorpora as múltiplas determinações e diferentes processos responsáveis por constituir e movimentar o objeto.
Cumpre destacar que a atividade do psicólogo na clínica se constitui como trabalho e, como tal, deriva de um processo complexo que envolve transformações e objetivações. Como explicita Marx (2013): “No processo de trabalho, portanto, a atividade do homem, com ajuda dos meios de trabalho, opera uma transformação do objeto do trabalho segundo uma finalidade concebida desde o início.” (p. 330)
Isso serviu como base para extrair os princípios essenciais que estruturam a prática profissional do psicólogo na área clínica. No entanto, ao analisar as produções acadêmicas das duas últimas décadas, tornou-se necessário desenvolver uma explicação não apenas para a unidade fundamental de estudo abrangendo atividade e trabalho, mas também para os elos estruturais que permeiam a própria atividade realizada pelo psicólogo em sua práxis clínica.
Conforme Marx (2013, p. 328), são três os fundamentos incorporados à atividade humana, que estão no cerne do trabalho: “em primeiro lugar, a atividade orientada a um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios”. (Marx, 2013, p. 328).
Estes foram, portanto, os princípios que direcionaram a aproximação teórica e metodológica em direção ao conteúdo de cada estudo selecionado para a execução da pesquisa e materialização deste artigo.
Tais princípios permitiram adentrar o interior do objeto estudado: a clínica na perspectiva histórico-cultural nas diferentes produções acadêmicas (dissertações e teses), constituindo um caminho metodológico para situar, ou não, a atuação clínica sob os limites da Psicologia Histórico-Cultural, em vista de uma aproximação ao conceito de práxis.
Dito isso, cabe indicar como os princípios, acima referidos pela filosofia marxiana (Marx, 2013, p. 328), se converteram em noções investigadas em cada um dos trabalhos despontando na unidade de análise atividade, totalidade sistêmica, explicitando, ou não, a práxis clínica na perspectiva histórico-cultural: I) Atividade orientada a um fim/finalidade: objetivo da psicoterapia, que suscita questões sobre o papel da psicoterapia e do psicólogo; II) Objeto do trabalho: a categoria consciência, como objeto na práxis clínica e III) Instrumentos ou meios de trabalho: mediações utilizadas em psicoterapia – técnicas e estrutura da sessão mencionadas nos estudos analisados.
As análises das produções brasileiras demonstraram que, em relação a finalidade ou o trabalho propriamente dito na clínica histórico-cultural, que diz sobre os objetivos do fazer profissional, foi o aspecto menos concordante dentre os estudos analisados, pois ora se destacou o papel do profissional como “mediador”, ora como “decodificador” e até mesmo “conscientizador”, ou seja, paira, ainda, sobre a prática clínica, nesta escola da psicologia, certa incongruência teórica e metodológica, que impede distinguir a finalidade ou o objetivo central do trabalho deste profissional.
Em síntese, três dos cinco materiais (Clarindo, 2020; Montreozol, 2019; Zanateli, 2021) analisados referem-se ao psicólogo como mediador do processo psicoterapêutico, e que a essência dos trabalhos coloca como finalidade da psicoterapia proporcionar mediações a partir de um processo dialógico. Essa constatação implicou na defesa de outra ideia: a de que o psicólogo não é o mediador, mas o agente da mediação. Para isso, fez-se necessário revisitar algumas concepções importantes da Psicologia Histórico-Cultural.
A mediação é uma das categorias centrais da teoria, pois é a partir dela, como processo, que as funções psíquicas elementares ou naturais (de natureza biológica) se transformam e se desenvolvem como funções psicológicas superiores ou culturais, a exemplo da linguagem, do pensamento abstrato, da atenção e memória voluntárias, dentre outras. A mediação ocorre por meio dos signos (instrumentos psicológicos) e dos instrumentos (ferramentas técnicas). As ferramentas técnicas são objetos exteriores manipulados pelo indivíduo, enquanto os signos possuem direcionamento interno, e são utilizados para o autocontrole das ações do próprio sujeito ou do outro; além disso os signos são um legado do gênero humano, transmitidos de geração em geração (Vigotski, 2020).
Cabe, aqui, uma analogia com a área educacional em que é comum se deparar com a tese do professor como mediador, entretanto essa tese não condiz com os princípios da teoria Vigotskiana, já que a mediação se caracteriza por ser técnica ou simbólica, portanto, não cabe falar do professor como mediador, haja vista que se trata de uma pessoa, e não de um instrumento e/ou ferramenta. Na relação entre professor e aluno a mediação é concretizada pela linguagem, por meio dos signos, principais representantes da cultura humana, portanto é uma mediação semiótica (Teixeira, Barca; 2019).
Apesar de ambas as áreas - clínica e educacional - serem diferentes, com pressupostos e objetivos distintos, as categorias teóricas da Psicologia Histórico-cultural são as mesmas, consequentemente, as reflexões, ainda que distintas, incorporam a mesma matriz teórica e metodológica.
Disso se depreende que a teoria que embasa a prática do psicólogo é que opera como um mediador, facilitando a conexão entre o conteúdo trazido pela pessoa atendida e a aplicação prática da psicologia.
Os materiais analisados e os estudos sobre a Teoria Histórico-cultural, apresentam uma concepção da clínica como um espaço de mediações. O processo de internalização por parte do psicólogo das teorias e métodos do referencial que sustenta sua atividade, e a consequente objetivação por meio da mobilização de signos e instrumentos durante a práxis clínica reforçam que, ao psicólogo, não cabe a função de mediador, mas de agente principal da mediação, pois ele deve ser capaz de manejar os recursos apreendidos visando acompanhar o atendido em seu processo de emancipação.
Outro dado importante é o reconhecimento da práxis clínica como pertencente ao gênero humano, desse modo torna-se exequível através de um processo educativo, ou seja, compreendida e explicada não no sentido estritamente escolar, mas como uma atividade reflexiva que almeja, por meio das mediações, auxiliar o sujeito na tomada de consciência.
A descrição da categoria atividade efetuada por Luria (1979), traz alguns aspectos importantes que corroboram a tese do papel educativo da práxis; o autor assinala três traços característicos da atividade humana consciente: 1) a atividade humana não é direcionada por necessidades biológicas, e sim culturais e intelectuais; 2) a atividade humana ocorre pela presença da mediação, há reflexão durante a ação, a qual não é simplesmente eliciada por um estímulo; 3) o indivíduo possui habilidade para assimilar conhecimentos, experiências e vivências acumuladas pela humanidade por meio de um processo educativo.
Dito isso, se na práxis clínica, o psicólogo, como agente da mediação, se utiliza dos signos e dos instrumentos técnicos para trabalhar com o sujeito, há que se ponderar, então, que se trata de um processo educativo.
A segunda noção analisada, intrínseca à atividade, é a matéria, ou ainda, o objeto do trabalho profissional na clínica. A análise das produções selecionadas atesta a categoria consciência como o objeto do trabalho clínico na psicologia histórico-cultural. Os textos (Clarindo, 2020; Aita, 2020; Montreozol, 2019; Silva, 2019; Zanateli, 2021) destacam a importância da consciência como um sistema formado por diferentes funções psicológicas que permite ao sujeito se apropriar da cultura e da realidade social.
A consciência é referida como um processo dinâmico e complexo que está relacionado com todas as demais funções superiores. Ademais, os materiais legitimam a unidade entre consciência e inconsciente. O inconsciente é explicado como um produto da história do sujeito e da cultura e os conteúdos inconscientes podem manifestar-se para a consciência por meio de um processo de ressignificação (Clarindo, 2020; Aita, 2020; Montreozol, 2019; Zanateli, 2021).
As teses e dissertações também destacam a tomada de consciência no processo psicoterápico e enfatizam a psicoterapia como um espaço de reflexão que permite ao sujeito compreender sua história, seus pensamentos, sentimentos e comportamentos (Clarindo, 2020; Aita, 2020; Montreozol, 2019; Silva, 2019). A partir desse entendimento, o sujeito pode tomar decisões mais conscientes sobre sua vida e buscar a transformação pessoal.
A categoria consciência foi referida por Vigotski (1999) em seus estudos. Entretanto, o modo de concebê-la diverge, fundamentalmente, das proposições cartesianas; na psicologia Histórico-Cultural a consciência não nasce com o sujeito, mas é constituída ao longo da vida, na relação com os outros e consigo mesmo. Vigotski (1999), motivado a estudar e refletir sobre a categoria consciência utiliza uma metáfora, comparando-a com um espelho.
Na representação do espelho, Vigotski (1999) compara o reflexo à consciência explanando que portar um objeto diante do espelho e realizar uma análise somente do objeto e/ou de seu reflexo, de modo isolado, constituiria idealismo. O objeto, em si, é material, concreto e o seu reflexo só existe porque o objeto existe. Porém, esta relação não é direta e simplista, existem leis da reflexão que permitem que o reflexo ocorra. Logo, o reflexo existe porque o objeto existe, e ambos se relacionam dialeticamente mediante as leis da reflexão. Metaforicamente, a consciência seria o reflexo no espelho, considerado por algumas correntes teóricas como algo inacessível ao estudo; para Vigotski (1999), porém, a partir do estudo do fenômeno e das leis que organizam e subsidiam a Teoria Histórico-Cultural (processos de internalização, mediações, funções psicológicas culturais) o conhecimento da consciência se faz possível. Dessa forma, é congruente com a teoria destacar a consciência como objeto da práxis clínica.
A terceira noção estudada foram as ferramentas utilizadas na práxis clínica. Alguns estudos distinguem determinadas ferramentas de forma objetiva e direta (Clarindo, 2020; Aita, 2020; Zanateli, 2021), outros trazem reflexões mais ampliadas e abertas (Montreozol, 2019; Silva, 2019), entretanto concluiu-se a partir das análises que o principal instrumento é o diálogo, mediado pela linguagem. É por meio do diálogo que se desenvolvem todas as outras técnicas, até mesmo as não verbais, pois para sua execução e devolutiva é necessário o uso da fala.
Um ponto a ser assinalado é a utilização de técnicas que pertencem a outras abordagens teóricas (Zanateli, 2021) com suas bases teórico-filosóficas e metodológicas distintas da Psicologia Histórico-Cultural. Esse fundamento, que concretiza a atividade do profissional na clínica foi o menos congruente com os pressupostos da psicologia soviética. Notadamente, as técnicas de trabalho ainda são transpostas de uma teoria para outra, havendo, nesse caso, uma carência na proposição de técnicas originais para a clínica histórico-cultural.
Esse aspecto desponta, no interior dos estudos analisados, como o mais representativo da fragilidade teórica e metodológica imposta à práxis clínica ou, dito de outro modo, as técnicas utilizadas para a concretização do trabalho ainda são o aspecto menos coerente com as bases de uma psicologia materialista.
Considerações finais
Este estudo teve como objetivo principal identificar e analisar como as teses e dissertações, publicadas no Brasil nas duas últimas décadas, explicam a práxis clínica apoiada nos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural.
O procedimento metodológico utilizado permitiu chegar à unidade mínima ou essencial da pesquisa, qual seja, a atividade, que possibilitou a análise dos materiais selecionados, com o intuito de demonstrar o entendimento dos autores e autoras analisados sobre a clínica na psicologia Histórico-cultural.
A categoria atividade possui como fundamentos estruturais: a finalidade do trabalho na clínica; o objeto (matéria) sobre o qual esse trabalho incide e os meios requeridos para essa intervenção, tendo em vista a transformação do sujeito e, consequentemente, da realidade social, propósito maior da psicologia Histórico-Cultural. Essas noções, compreendidas como nexos interiores à atividade, foram utilizadas para analisar as teses e dissertações com o objetivo de apreender qual é e como se constitui a essência da clínica na Psicologia Histórico-Cultural.
Do ponto de vista da finalidade do trabalho na clínica, constatou-se que não há um consenso ou uma definição que unifique o objetivo da psicoterapia, ou que distinga o papel da psicoterapia e do psicólogo nos trabalhos. Todavia, a maioria dos estudos destaca o psicólogo como o mediador do processo clínico.
A atividade, por si só, já caracteriza a mediação, mas esta deve ser entendida como um processo que relaciona sujeito e realidade produzindo, intencionalmente, mudanças tanto em um quanto em outro. No caso da atividade clínica em psicologia, é o profissional quem dispõe de um conjunto de conhecimentos teórico-científicos mais elaborados, os quais, quando utilizados como ferramentas/instrumentos psicológicos, lhe permitirão objetivar-se e produzir um campo de tensões típicas de um processo mediador. Portanto, o profissional, neste espaço, é o agente da mediação, sua atividade converge com a atividade da pessoa atendida e, nesta relação mútua, as transformações tendem a acontecer.
Os estudos convergiram por colocar a consciência humana no centro do processo, ou da atividade clínica, regida pela psicologia Histórico-Cultural, ou seja, o objeto do trabalho, ou o material sobre o qual o/a psicólogo/a se atém é a consciência da pessoa atendida, explicada como um sistema formado por diferentes funções psicológicas, que se organizam mediante um tipo específico de intervenção. Nos trabalhos analisados, a consciência emerge como uma categoria central na psicologia histórico-cultural, admitida como um processo dinâmico e complexo, conexo às funções psicológicas superiores, à atividade e à cultura, de caráter sistêmico e integrativo.
Quanto aos meios de trabalho, o principal instrumento técnico identificado nas pesquisas foi o diálogo, fundado pela linguagem. Os estudos tenderam a colocar o diálogo no centro do trabalho psicológico na clínica, por meio do qual ocorrem reflexões, mudanças de sentido e outros fenômenos psíquicos relevantes. Todavia, outras técnicas foram descritas como recursos para a prática clínica. Algumas derivadas de outras abordagens teóricas, portanto situadas fora dos limites teóricos e metodológicos da psicologia Histórico-Cultural. Esse fundamento, que concretiza a atividade do profissional na clínica, foi o menos congruente com os pressupostos da psicologia histórico-cultural.
Ademais, um dos pontos relevantes da pesquisa é o reconhecimento e a ênfase na clínica histórico-cultural como práxis e não, tão-somente, uma prática. Em outras palavras, a clínica histórico-cultural é uma abordagem que busca a transformação do sujeito por meio da ação e da tomada de consciência, mas carece, ainda, de estudos e pesquisas que fomentem a elaboração de técnicas alinhadas com os fundamentos teórico-filosóficos e metodológicos de base materialista, impulsionando a construção de uma psicologia e uma práxis clínica concreta.
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