Revista de Psicologia, Fortaleza, v.16, e025001. jan./dez. 2025
DOI: 10.36517/revpsiufc.16.2025.e025001
RECEBIDO EM: 20/03/2024
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 12/12/2024
VERSÃO FINAL: 23/12/2024
APROVADO EM: 17/01/2025
Práticas de cuidado em contexto de Acolhimento Institucional: perspectivas de vínculo e afeto
Care practices in a children shelters: a bonds and affection perspective
Mariana Brandão Barros
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil. Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. ORCID: https://orcid.org/0009-0003-3586-110X. E-mail: marianabbarros98@gmail.com
Endereço Profissional: Avenida Fernando Ferrari, 514, Campus Universitário de Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo, Brasil – CEP 29.075.710
Lara Brum de Calais
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil. Doutora e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de fora. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3703-1145. E-mail: laracalais@hotmail.com
Resumo
O presente artigo busca realizar uma análise dos vínculos e construções afetivas como potências transformadoras no âmbito do Acolhimento Institucional infanto-juvenil, compreendendo o cuidado enquanto uma dimensão ético-política. Em um viés de retificação do papel formativo dos afetos nos processos de subjetivação dos(as) acolhidos(as) e dos trabalhadores, salienta-se a importância do desenvolvimento de Políticas de Assistência Social de superação ao tecnicismo como estratégia de rompimento às narrativas de “culpabilização” que reiteram e reafirmam as condições de vulnerabilidade, violências e pobreza vivenciadas. Alinhado com o pensamento Espinosano, este artigo transcreve o caminho de um relato de experiência no campo da psicologia, construída a partir das vivências de um estágio curricular em um Acolhimento Institucional no município de Vitória - ES. Assim, aponta-se para a importância da construção de vínculos e afetos alegres nas práticas profissionais nos serviços de acolhimento, bem como o fortalecimento de Políticas de Assistência Social em uma postura crítica e implicada atravessada pela defesa dos direitos sociais.
Palavras-chave: Afetos; vínculos; cuidado; acolhimento institucional; infância.
Abstract
This article aims to analyze the bonds and the affections as a power to transform the practices in children shelters, understanding care as an ethical-political dimension. In a view of endorse the formative role of affections in the subjective processes of sheltered and workers, the importance of developing Social Assistance Policies to overcome technicality as a strategy to break the narratives of “blaming” that reiterate and reaffirm the conditions of vulnerability, violence and poverty experienced. Aligned with the Spinozian thought, this article comprehends a methodological path of a qualitative research in psychology, build through internship experiences in a children shelter in Vitoria-ES, BR. Thus, this article appeal to the value of establish and improve the positive bonds and affections in the professional practices in sheltering services, as well as the strengthening of Social Assistance Policies in a critical and involved attitude permeated by the defense of social rights.
Key-words: Affection; bonds; care; children shelter; childhood.
Este artigo delineia-se a partir de inquietudes e problematizações advindas de um estágio curricular realizado em um espaço de Acolhimento Institucional (AI) no município de Vitória (ES), sob uma perspectiva cartográfica. O relato de experiência aqui apresentado constitui-se, portanto, através de uma metodologia que busca pôr em questionamento as práticas e concepções empreendidas como diretrizes para o cuidado e proteção de crianças e adolescentes nos Acolhimentos Institucionais, a partir do panorama histórico, social e político.
O percorrer do movimento cartográfico visou acompanhar um processo, afastando-se das perspectivas representacionais tradicionais, orientando-se para a análise e estudo das políticas públicas de direitos humanos e proteção social, pensando as ações, diretrizes e programas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) de acolhimento institucional destinados a crianças e adolescentes. Assim, o relatar da experiência de estágio diz de um descrever posterior à ação, em uma perspectiva de retorno às reflexões e afetos vivenciados.
Os Acolhimentos Institucionais são equipamentos da Rede Socioassistencial Municipal destinados a indivíduos e/ou famílias com vínculos familiares rompidos ou fragilizados (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [CONANDA], 2009). É um serviço que possui caráter provisório, através do qual se realiza afastamentos do convívio familiar de modo mediado com o intuito de proteção e garantia de direitos, isto é, em situações que representam graves riscos à integridade física e psíquica do acolhido e/ou havendo medidas judiciárias, distinguindo-se de medidas de privação de liberdade.
Interligando a história da Assistência Social no Brasil verifica-se que seu surgimento se engendra, inicialmente, a uma perspectiva de caridade, filantropia e solidariedade fundamentadas em preceitos religiosos. Esse viés foi endossado nos parâmetros históricos de entendimento do cuidado por volta de 1940, e perdurou ao longo das décadas, tendo algum abalo a partir de 1985, quando o contexto histórico de transição democrática demandou o fortalecimento de políticas socioassistenciais através da inclusão de direitos sociais (Ministério Público, 2000). A Constituição Federal de 1988 aparece, então, como o marco de consolidação da garantia de direitos sociais à população, sendo continuada, no caso do público infanto-juvenil, pela criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990.
Essa mudança de concepções acarretou também em transformações no conceito de exclusão social, que passou a se caracterizar por seu aspecto dinâmico e multidimensional, abrangendo questões financeiras, sociais e de subjetivação (Veras, 2001). Em meio a este contexto, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) foi desenvolvida visando consolidar os direitos socioassistenciais, mas não sem perpetuar os rastros da história assistencialista, paternalista, patrimonialista e racista dos modos coloniais que fundaram o Brasil. De tal modo, a posição ativa de enfrentamento aos séculos de culpabilização e criminalização da pobreza ainda se constitui como desafio colocado aos serviços de assistência social do país (Paiva, Moreira & Lima, 2019).
Como campo complexo e em constante movimento de forças, a atuação da psicologia na Assistência Social vem exigindo reflexões críticas permanentes aos profissionais que desejem - enquanto compromisso ético-estético-político - romper com repetições e naturalizações das práticas, conforme apontam Senra e Guzzo (2012), para aportar uma psicologia aproximada, situada e que produza escapes às lógicas dominantes de opressão do público majoritariamente acessado pelas políticas.
Essa concepção de Política de Assistência Social diferencia-se, portanto, de modos de gestão da miséria, medidas pelas quais as Políticas Públicas frequentemente têm operado, amortizando de tensões na constituição de dispositivos de regulamentação da vida (Heckert, Barros & Carvalho, 2016). Para tanto, é necessário assumir uma concepção de conhecimento a partir da troca, dos encontros e das experiências, em uma perspectiva crítica, pautada na pluralidade produzida pela experiência, dando voz às heterogeneidades e estruturando as políticas públicas em um movimento de abertura e criação de possibilidades.
Logo, pensar a psicologia no campo da Assistência Social implica em analisar os saberes e práticas dessa área do conhecimento, atentando-se a uma prática fora do enquadre hegemônico e tradicional, como a Psicologia Clínica. Essa aposta põe em vigor a constituição de saberes através do fortalecimento de afetos potencializadores de vida, reafirmando a participação social nas políticas públicas, na constituição de uma rede de relações que possibilita fazer aparecer tensões e controvérsias, indagando pressupostos e crenças institucionalizados.
Nessa ótica, a psicologia mostra-se implicada com a ruptura com esquemas históricos que pressupõem hierarquizações, atentando-se a efeitos de práticas naturalizantes e reprodutoras de padrões e estruturas que constituem as desigualdades sociais. Deve-se almejar a oferta de um atendimento singularizado que assegure a autonomia dos usuários através da afirmação de uma abertura para práticas desejantes de outros modos de vida.
No que tange as políticas de acolhimento infanto-juvenil, a promoção de condições seguras para o desenvolvimento das crianças e adolescentes e a efetivação de incentivos e condições para sua independência e auto-cuidado englobam o respeito à diversidade e não discriminação como princípios básicos, perpassando a constituição dos serviços em si. O respeito à sua autonomia prescreve, então, que os desejos, vontades e opiniões das crianças e adolescentes acolhidos(as) devem ser considerados, permitindo-os decidir (de forma condizente com seu grau de desenvolvimento e sua faixa etária) questões sobre sua trajetória de vida, desde sua participação em atividades até sua relação com sua família e sua permanência no serviço de acolhimento (CONANDA, 2008).
Ressaltando o papel dos afetos nos processos formativos, destaca-se a importância dos vínculos estabelecidos nos acolhimentos institucionais, apontando para a experiência do compartilhamento e os impactos do social e do coletivo na diferenciação subjetiva (Brazão & Rauter, 2014). Logo, os afetos evidenciam os modos como as relações sociais são experienciadas e tracejam as intensidades das experiências afetivas, ou, como complementa Brazão (2018), “das lágrimas à gargalhada e do sorriso ao pranto há uma modulação intensiva do sentir. O fio condutor nessa passagem é o afeto” (p. 82).
Verifica-se, portanto, que o respeito à autonomia do acolhido perpassa o desenvolvimento de um modo de escuta sensível, desenvolvendo a dimensão afetiva como ferramenta de trabalho, em oposição à psicologia positivista que exige uma neutralidade e afastamento. Assim, a psicologia nos Acolhimentos Institucionais constitui-se em um cuidado integral ao sujeito acolhido, pensando sua saúde mental, suas relações familiares e sociais, a inclusão educacional e comunitária, visando à garantia do desenvolvimento pleno das crianças e adolescentes.
Como acrescentam Lemos, Gechele e Andrade (2017), os Acolhimentos Institucionais não se restringem a função de satisfazer necessidades básicas, como alimentação, moradia e proteção, como também possuem o papel de construir um ambiente propício para o desenvolvimento dos(as) acolhidos(as), nas esferas físicas, mentais e sociais. Ampliando as atribuições dos cuidadores e da equipe técnica ao abarcar a responsabilidade de cuidar, propiciar e fortalecer vínculos saudáveis, conjecturando para o desenvolvimento das crianças e adolescentes acolhidos(as) (Silva & Germano, 2015). É desse modo que o presente artigo visa apresentar os elos e relações existentes entre o afeto e o cuidado nas atividades laborais em Acolhimentos Institucionais Infanto-Juvenis, salientando a importância dos vínculos criados e fortalecidos no desenvolvimento das crianças e adolescentes acolhidos(as).
Método
Este trabalho foi realizado a partir de um termo de compromisso entre a Universidade Federal do Espírito Santo e uma Unidade de Acolhimento Institucional, situado na cidade de Vitória, capital do estado, caracterizado como um Centro de Vivência. Nessa experiência de estágio adotou-se uma perspectiva cartográfica (Passos, Kastrup & Escóssia, 2009) que buscou acompanhar os processos e acontecimentos perpassados no Centro de Vivência analisando as implicações coletivas e os processos de institucionalização.
A cartografia apresenta-se como um aliado metodológico que visa um conhecer que não se estrutura a partir de metas pré-fixadas, mas se direciona ao acompanhamento de processos em seu movimento permanente. Desse modo, a cartografia é um método de análise composto através da descrição dos acontecimentos no plano das forças e afetos, apontando para a ruptura das formas instituídas, em uma perspectiva na qual o conhecer é criar uma realidade de si e do mundo, direcionando-se a um trabalho de intervenção (Passos et al., 2009).
O Centro de Vivência que foi campo de estágio consiste em um acolhimento que comporta até 16 crianças e adolescentes entre 7 e 13 anos, de qualquer gênero. Todavia, considerando a política de manutenção de vínculo de parentescos (isto é, a prioridade em manter grupos de irmãos ou outros vínculos familiares em uma mesma unidade), por vezes, recebe acolhidos(as) de outras idades. Em geral, preza-se que a maioria dos irmãos ou os irmãos mais velhos pertençam à faixa etária da casa. Durante a experiência de estágio, as idades dos(as) acolhidos(as) variaram entre 3 a 13 anos.
As idas a campo foram realizadas em duplas de estudantes, de modo semanal, comparecimentos em outros dias/horários para eventos específicos. O movimento de ida a campo não se restringiu a uma rotina fixa, mas buscou compreender, de perto, a construção das relações naquele espaço. Logo, a experiência de estágio não se restringiu a realização de uma atividade específica ou uma intervenção padronizada, mas se alinhou à perspectiva cartográfica. O vivenciar do espaço com as crianças e profissionais do AI era desenvolvido a partir de uma postura ativa, implicada em um movimento de escuta e participação que possibilitasse questionar os pressupostos solidificados e constituísse, em si, a intervenção.
Para o relato, fez-se uso do diário de campo, instrumento de registro das práticas realizadas que abrange a descrição das vivências, impressões e afetos gerados. A escrita diarística ampliou-se para além da anotação de informações, visando um momento de retorno às experiências vividas. Assim, pretendeu-se colocar em análise a implicação da experiência em campo, expandindo a escrita para além de um instrumento de registro e memória, descrevendo os encontros, suas marcas e momentos.
A partir do viés cartográfico, delineou-se o acompanhamento dos processos vividos e experienciados no estágio, considerando os efeitos das relações sobre a instituição, os(as) acolhidos(as), profissionais e estagiárias. As práticas de estágio fundamentaram-se, portanto, no entendimento das articulações históricas e conexões com o mundo, direcionadas pela análise das implicações coletivas, locais e concretas, possibilitando o acesso aos processos de institucionalização e a quebra das formas instituídas, questionando pontos de vista e territórios existenciais solidificados (Passos et al., 2009).
Discussão
Em quase todas as idas a campo o tema do vínculo e dos afetos retornou aos pensamentos e ao diário de campo, latejando nas vivências, diálogos e reflexões. Na teia entre acolhidos(as), equipe do Centro de Vivência e estagiárias, é possível compreender que a dinâmica dos afetos atravessa o trabalho vivido e analisado, constituindo um aspecto imprescindível ao Acolhimento Institucional, como ponto inerente das relações humanas, indispensável ao desenvolvimento social e pessoal (Siqueira & Dell’Aglio, 2006).
Em alguns dias, o vínculo entre a equipe laboral e as crianças tornou-se protagonista das observações e discussões. Os laços e modos de relação transpareceram em emoções e afetos de cuidado, amor e carinho ao contar histórias, relatar casos ou em preocupações e emoções à flor da pele em situações alarmantes vivenciadas. Tais afetos se mostraram formativos, dos(as) acolhidos(as) e dos(as) trabalhadores(as), não constituindo apenas um “pano de fundo” da experiência, nas palavras de Kastrup e Fernandes (2018), não sendo “um mero colorido da experiência ou um complemento da cognição” (p. 134), mas um “elemento fundamental da constituição da nossa forma de ser e conhecer o mundo, o meio e o assunto primário da comunicação” (p. 121).
Fundamentado em Espinosa, Deleuze (2002) aponta que os afetos podem ser entendidos como potencializadores de vida, isto é, capazes de gerar potência para agir pelas afecções que o corpo conhece através das vivências e experiências. Os afetos constituem fenômenos do cotidiano que apontam para maneira com que as pessoas se relacionam, o “como” se experimenta as relações sociais e qual a intensidade dessa experiência (Brazão, 2018). Essa concepção aposta, portanto, na afetividade humana em uma perspectiva ativa e formativa, diferenciando-se de paixões passivas, em direção a um constituir a si que emerge na relação com o outro.
Os afetos felizes, portanto, estão interligados a um estado de excitação ou contentamento, fortalecendo e criando vida através de um “bom encontro”, gerando bons frutos. Os afetos felizes assinalam a criação de possibilidades, o germinar da potência para ação, proporcionando a construção de práticas que contribuam para o desenvolvimento de si. Paralelamente, os afetos tristes encontram-se carregados de dor e melancolia, ocasionando sentimentos negativos e diminuindo a potência de interação no mundo e criando condições de fragilidade (Oliveira, Calais, Abreu, Silva & Pinto, 2022).
Todavia, o conceito de afetos de Espinosa não apresenta um viés dicotômico, mas perpassa o âmbito relacional, os sentidos de movimento e investimento afetivo. O afeto contempla a transição de intensidade e variações na potência de ação, geradas pelas afecções que o corpo conhece através das vivências e experiências, diferindo-se de construtos linguísticos e estados psicológicos (Deleuze, 2002). Logo, encontra-se a dimensão do afeto associado à transformação das realidades vividas, como práxis de desestabilização de certas cristalizações naturalizadas (Rodrigues, Oliveira & Calais, 2022).
Esse modo de compreensão da vida interliga-se à construção dialógica entre os processos de subjetivação e os afetos, eclodindo um processo que tem os afetos como instância movente do indivíduo, como condições e fundamentos da existência e vivência humanas. Tal perspectiva, quando pensada em articulação com a possibilidade de transformação social, evidencia a potência de produção da transformação do próprio sofrimento ético-político inerente aos bons encontros. Em outras palavras: “A felicidade se faz como ato de construção de uma outra vida possível” (Rodrigues et al., 2022, p.182).
Antagonicamente, as condições de cerceamento, vulnerabilidade e escassez reverberam na produção de sofrimentos subjetivos, reforçando a importância da análise sobre a atuação da psicologia nos esforços de transformação da sociedade.
Hoje foi um dos dias mais fortes de ida a campo para mim. Brincar com as crianças de pintar e ver as possibilidades de cuidado, conversa, relacionamentos e afetos mexeu com meu coração. Em toda brincadeira eles descreviam os desenhos, seus sentidos e significações, transparecendo a importância do lúdico para criar a realidade. Lembro de quando M. me contou sobre querer virar uma cirurgiã, de seus olhos brilhando na possibilidade de criar e experienciar uma vida. [...] É cintilante a criação de oportunidades e vida que se dão a partir do cuidado. (Diário de Campo, 29/01/2022)
Entrelaça-se, portanto, a afetividade presente na vida humana à dimensão ético-política dos processos de subjetivação, tornando nítido como os encontros com os acolhidos e as vivências compartilhadas reafirmam a importância do cuidado com os afetos experienciados, ressaltando a possibilidade de ampliação e criação de vida através dos afetos felizes gerados pelos bons encontros, ecoando a perspectiva espinosana. À vista disso, destaca-se a importância do serviço de acolhimento institucional no subsídio e promoção de relações e vínculos das crianças e adolescentes acolhidos(as), conjecturando para seu desenvolvimento.
É nesse caminho que o entendimento dos sentidos e condições dos vínculos nas relações profissionais-acolhidos(as)-instituição transparece como direcionamento para práticas que transmitem saberes proporcionados pelos vínculos e fundamentados em uma ética de cuidado, em um enfrentamento e questionamento às práticas que valorizam unicamente saberes hegemônicos e tecnicistas (Oliveira et al., 2022).
Todavia, o perpassar do afeto nas relações trabalhistas não gera apenas vínculos positivos. Os processos de formação e educação dos profissionais atravessam fortemente a forma de cuidar dos(as) acolhidos(as) e nem sempre essa proximidade é produtora de vida. Muitas vezes, confundem-se o delimitar regras com um “poder” sobre as crianças, acarretando em falas pejorativas, gritos e até mesmo agressões. Instituem-se, assim, práticas que enfraquecem e diminuem as forças de ação e de vida, dando lugar a afetos tristes:
[...] Uma das cuidadoras comenta sobre a quantidade de comida que M. come e as mudanças de seu corpo desde que foi acolhida, fala que M. chegou muito magra e que agora seus shorts não fecham mais, diz em tom de ameaça que ‘ela vai ficar gorda’. M. é uma menina de 9 anos que chegou após vivenciar uma situação de abandono, na qual, muitas vezes, não tinham o que comer em casa. Essas ‘brincadeiras’ e ‘implicâncias’ me geram um incômodo, me soam de modo agressivo. Reparo também que H., que tem um afeto muito grande por essa cuidadora, repete tais “brincadeiras”. (Diário de Campo, 08/06/2022)
Pensar a afetividade humana no viés de Espinosa levanta reflexões sobre o impacto dos encontros e diálogos cotidianos, lançando foco sobre a influência dos relacionamentos e seu elo com a potência de existir. Assim sendo, levanta questionamentos: quais os impactos dos atos sutis do cotidiano? Qual a potência do que é dito “insignificante”? Quais os impactos de uma “simples brincadeira”? Seria essa “brincadeira” produtora de vida ou produtora de um padecer?
Nessa medida, se torna nítido como os afetos nos dão pistas sobre os modos como as relações se constituem e as maneiras como os sujeitos se formam a partir delas. O cultivo de si emerge a partir do partilhar de vivências que germinam afetos e possibilitam uma variação da força de existir.
O entremear dos processos formativos dos profissionais com os acolhidos também transparecia em outros momentos, falas como “Eles não são os meus filhos, mas se fossem...” ou “Com minha filha, eu faço de tal jeito” se presentificavam no cotidiano do Centro de Vivência, demonstrando uma divisão delicada entre as práticas pessoais e trabalhistas. Compreende-se, portanto, que pode haver uma reprodução do próprio processo formativo e educacional, que, na ausência de uma formação crítica ou de um movimento de reflexão, pode perpetuar violações e violências.
Tais reproduções transparecem a gravidade da construção do lugar histórico da pobreza em nossa sociedade, bem como o viés assistencialista e caritativo que permeou as políticas de Assistência Social por anos. É, então, que as vicissitudes históricas das violências que permeiam os processos formativos e educacionais impelem à produção de processos adoecimento e exclusão por meio da naturalização de tais opressões. E, não obstante, que o saber e o fazer da psicologia apresentam-se em uma continuidade à lógica capitalista neoliberal, sustentando ideias individualizadoras e colonizadoras sobre o sujeito e de gestão sobre a vida (Faria & Calais, 2022).
Inseridas em uma narrativa de “culpabilização” constante sobre as condições de vulnerabilidade, violências e pobreza vivenciadas, as Políticas de Assistência Social, conduzem através de elementos afetivos, relações de poder e hierarquias históricas, atos cotidianos de afirmação da desigualdade. Delineia-se, portanto, a linha tênue que se percorre no trabalho com as políticas públicas, dada pela possibilidade de reiterar-se o local de exclusão nas práticas laborais, corroborando com um não reconhecimento dos assistidos em uma posição de sujeito, mas reescrevendo as violações, principalmente através de uma estigmatização que potencializa seu adoecimento e exclusão.
Como Faria e Calais (2022) apontam, nas políticas públicas, o panorama de práticas profissionais, em especial da Psicologia, muitas vezes se encontram fragilizados e desconectados do campo de atuação. Essa descontextualização e desligamento reflexivo se mostram nocivos ao público atendido pelas políticas socioassistenciais, visto que as famílias atendidas e suas demandas, historicamente, são atravessadas por dinâmicas de exclusão social nas mais diversas dimensões e âmbitos, desde vulnerabilidades econômicas até as consequências advindas dessa.
Logo, evidencia-se, a precariedade das políticas públicas de proteção social fundamentadas a partir do controle sobre as vidas e da gestão da pobreza, as quais reverberam, não só na falha das ações de proteção e garantia de direitos provindas do Estado, mas na reiteração do viés excludente e adoecedor no qual o saber/fazer psicológico molda-se ao projeto capitalista neoliberal individualizante e colonizador (Faria & Calais, 2022).
Urge, portanto, um viés que considere a dimensão subjetiva do fenômeno social da desigualdade, reivindicando, a partir da ética do cuidado, uma via de superação a técnica perpetrada pelos pressupostos epistemológicos, filosóficos e metodológicos instituídos através da racionalidade (Oliveira et al., 2022). Neste, o vínculo se intensifica como uma ferramenta de promoção de vida, como uma via de transformação das condições de vulnerabilidade e violência.
Assim, as perspectivas críticas que presentificam os elementos afetivos e de cuidado no combate à violência quase que institucionalizada na vida das crianças e adolescentes acolhidos(as) direcionam a vias de ruptura com a narrativa de culpabilização das condições de vulnerabilidade, pobreza e violência. A potência para a inversão dessa lógica germina das emoções e sentimentos proporcionados pelos afetos das crianças e adolescentes. Como Kastrup e Fernandes (2018) demarcam, o desenvolvimento humano é escrito a partir do movimento de relação entre o eu e o outro, a experiência do outro e com o outro, demonstrado, por exemplo, por um pequeno acolhido da casa em sua chegada:
Hoje fomos recebidas por um novo morador. Fui recepcionada por um abraço apertado nas pernas. Quando conversei com ele, não soube me responder seu nome e idade, mas sabia o nome de sua irmã, que estava acolhida há mais tempo no Centro de Vivência. (Diário de Campo, 13/07/2022)
Esse acontecimento aponta para a importância dos vínculos na estruturação psíquica e social dos indivíduos, através do investimento afetivo e da sensibilidade. Destacam-se as maneiras como os primeiros vínculos constituídos se apresentam como um alicerce para as demais interações sociais, afetos e experiências relacionais, gerando um “sentir com”, um sentimento de pertencimento psicológico (Brazão & Rauter, 2014).
Essa experiência se dá a partir do compartilhamento atencional, uma presença na partilha de momentos e experiências, desenvolvida em uma co-presença, em um “Tia, brinca comigo”, um “Olha, olha tia! O que eu fiz” ou um “Tia, fica aqui do meu lado?”, no movimento de construir uma atenção conjunta, afetar a atenção do outro a partir própria atenção e vice-versa: uma atenção presencial e em tempo real.
Sendo assim, a perspectiva que entende os afetos como uma dimensão indispensável às práticas de acolhimento institucional reescreve o cuidado como uma ação em via de mão dupla, que afeta quem cuida e quem está sendo cuidado, através de um envolvimento que prescreve uma reflexão cotidiana sobre os processos formativos. Essa busca almeja a desconstrução desses processos de discriminação, exclusão e violências, rompendo com a lógica utilitarista e de controle a partir da qual as práticas (do saber psi ou não) foram concebidas na Assistência Social e que contribuíram para a formação da área e das instituições como concebidas atualmente (Scisleski, Gonçalves & Cruz, 2015).
Logo, a ética do cuidar diz respeito a uma inflexão na lógica de cuidado centralizado pela técnica, concebendo-o no encontro, na afetividade e vínculo (Oliveira et al., 2022), permeando todo processo formativo e direcionando-se à potencialização da vida. Conjectura-se, portanto, uma transformação do panorama das políticas públicas a partir de olhares, linguagens e práticas que não coloquem em ação mapeamentos e diagnostificações das vidas amparados em uma racionalidade política de apuração e inspeção das realidades vividas (Faria & Calais, 2022). Esse viés propõe uma abertura aos afetos experienciados no local de trabalho, percebendo de modo crítico as implicações vividas nas práticas no AI, como os vínculos construídos com o movimento contínuo da ida a campo e os afetos mobilizados, retratados no Diário de Campo:
Quando duas das crianças com quem mais me vinculei no estágio, são reintegradas à família, sinto a falta delas e sinto um leve aperto no coração por não conseguir me despedir. (Diário de Campo, 14/9/2022)
No momento final de me despedir das crianças, meu coração apertou de novo, especialmente, no abraço de despedida. Eles pularam em meu colo, me encheram de beijos e apertos e se recusavam a sair do abraço. Depois de um tempo, avisei que teria que ir, eles me abraçaram ainda mais forte. Ficou ainda mais difícil dizer tchau. (Diário de Campo, 22/12/2022)
Pretende-se, portanto, a inversão das tradições de acolhimento escritas na história das Políticas de Acolhimento Institucional concebidas no intuito de construção de um dispositivo de confinamento e controle, caracterizando infâncias e juventudes como patológicas, visando regular a vida dos(as) acolhidos(as) (Winkelmann, Guareschi, & Hadler, 2021). Desconstruindo-se os processos de discriminação, exclusão e violências, direciona-se ao cuidado em uma via de mão dupla, que afeta quem cuida e quem está sendo cuidado, através de um envolvimento que requer uma reflexão cotidiana sobre os processos formativos e educacionais.
Para tanto, reafirma-se a necessidade de complexificar as análises nas práticas de atenção psicossocial, principalmente, em espaços de proteção social, exigindo uma postura ético-política atravessada por construções afetivas e pela criação e fortalecimento de vínculos nas atividades profissionais. Nessa ótica, o desenvolvimento infanto-juvenil é, inevitavelmente, atravessado por um cuidado afetuoso, uma proximidade e interação entre os profissionais dos acolhimentos e as crianças e adolescentes acolhidos(as).
Ainda, no que tange a prática psi, verifica-se que a proteção social e garantia de direitos não podem ser concebidas em uma perspectiva outra que não através de uma análise crítica histórica e social da constituição do serviço, da política e da sociedade brasileira, conjecturando nos esforços transformativos pelo fortalecimento de modos de subjetivação constituídos a partir de bons encontros e afetos positivos.
Considerações finais
Este artigo volta-se, portanto, para um relato e apontamentos acerca do afeto e do cuidado nas práticas psi concebidas nos Acolhimentos Institucionais, apontando para a participação do afeto e dos vínculos sociais e afetivos como dimensão indispensável para o trabalho com crianças e adolescentes, lançando reflexões sobre os processos formativos, educacionais e de controle que são historicamente constituídos na assistência.
A experiência de estágio relatada foi composta por práticas entrelaçadas com indagações e inquietudes, marcada pela potência latejante das crianças e adolescentes acolhidos(as). Logo, foi possível pensar de que modo as práticas, ações e vivências engendradas nos AI podem ser reinventados a partir dos afetos e das potências existentes, estruturando práticas que levem em conta esse lado subjetivo do desenvolvimento pessoal dos(as) acolhidos(as).
Não obstante, aponta-se para o fortalecimento de processos formativos dos profissionais atuantes compreendam um âmbito questionador e crítico, abarcando a dimensão dos afetos desde a formulação das políticas públicas. Ainda, é importante que a formação curricular da equipe profissional também contemple tópicos de discussão sobre os vínculos e afetos existentes em suas áreas profissionais, considerando as implicações pessoais e sociais de suas práticas e posicionamentos. Acredita-se que a adoção de um posicionamento que desconsidera uma suposta neutralidade nas práticas profissionais corrobora com a possibilidade de transformação social, da criação de realidades outras, através de uma postura crítica e implicada, comprometida com uma ética-política defesa de direitos sociais.
À vista disso, salienta-se a importância de práticas de estágio e espaços de discussão a respeito das práticas profissionais realizadas, contribuindo para um pensar em conjunto a formulação e o desenvolvimento das práticas psi no campo das Políticas Públicas. Ademais, verifica-se que pensar a psicologia fora do enquadre hegemônico e tecnicista possibilita o desenvolvimento de práticas outras, voltadas para o cuidado com o sujeito de forma integral, compondo a construção da Política de Assistência Social de modo aproximado, sensível e plural.
Referências
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