Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e0240017. jan./dez. 2024
DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e0240017
RECEBIDO EM: 19/01/2024
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 20/04/2024
VERSÃO FINAL: 23/04/2024
APROVADO EM: 25/04/2024
Sentido e ideologia: a resistência dos motoristas de ônibus contra a precarização do trabalho
Sense and ideology: bus drivers' resistance to the precariousness of work
Yuri Freire de Almeida
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Mestre em Psicologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9851-2252. E-mail: yurif.1337@gmail.com.
Pedro F. Bendassolli
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Doutor em Psicologia Social. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7761-0857. E-mail: pbendassolli@gmail.com.
Fellipe Coelho-Lima
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Doutor em Psicologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7763-4050. E-mail: fellipecoelholima@gmail.com.
Resumo
Este artigo investiga o papel das ideologias nos processos de resistência contra a precarização do trabalho realizado por motoristas de ônibus. A partir do referencial marxista e da Psicologia Histórico-Cultural, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 11 trabalhadores dessa categoria na cidade de Natal/RN. Esses trabalhadores significam seus trabalhos como subsistência, realização pessoal, educação moral e liberdade patrimonial; compreendem o trabalho como precarizado, o Estado omisso no combate a precarização, se sentem empoderados e valorizados no exercício da sua atividade; e validam a instância sindical, a greve e os direitos trabalhistas, mas apostam em outras pessoas para a mudança da situação de precarização. Esses sentidos que permitiram a identificação de três ideologias, entendidas como mediação da ação individual e coletiva: ideologia do trabalho assalariado clássico; ideologia da luta coletiva; e ideologia salvacionista. Essas ideologias, que se interrelacionam, orientam os interlocutores de maneira contraditória. De um lado, justificam uma desresponsabilização dos trabalhadores pela ação direta de combate à precarização do trabalho. De outro lado, não impedem de todo a ação de resistência, como greves e paralisações, mas com um engajamento frágil por parte dos trabalhadores.
Palavras-chave: Ideologia; Psicologia Histórico-Cultural; Sentido do trabalho; Precarização; Rodoviários.
Abstract
This article investigates the role of ideologies in the processes of resistance against job insecurity carried out by bus drivers. Based on the Marxist framework and Historical-Cultural Psychology, semi-structured interviews were carried out with 11 workers in this category in the city of Natal/RN. These workers perceive their work as subsistence, personal fulfillment, moral education, and freedom of property; they perceive their work as precarious, the State as silent in the fight against precariousness, they feel empowered and valued in the exercise of their activity; and they validate the union, the strike and labor rights, but bet on other people to change the situation of precariousness. These senses allowed us to identify three ideologies, understood as mediating individual and collective action: the ideology of classic salaried work; the ideology of collective struggle; and the ideology of salvation. These interrelated ideologies guide the interlocutors in a contradictory way. On the one hand, they justify a lack of responsibility on the part of workers for direct action to combat the precariousness of work. On the other hand, they do not prevent resistance action at all, such as strikes and stoppages, but with a fragile commitment on the part of the workers.
Keywords: Ideology; Historical-Cultural Psychology; Sense of work; Precarization; Road workers.
O presente artigo objetiva analisar o papel das ideologias no processo de enfretamento da precarização do trabalho realizado pelos motoristas de ônibus do transporte público. O pano de fundo é o processo de precarização que essa categoria tem vivido.
A atividade exercida por esses profissionais já apresenta elementos singulares de precarização. É comum a eles a presença de ruído, calor, radiação, vibrações, poluentes químicos, movimentos repetitivos, posições desconfortáveis, trânsito intenso. Contudo, um elemento recente que agudiza essa precarização é a introdução de novas tecnologias. A partir do início dos anos 2000, a presença de câmeras e de GPS, por exemplo, permitiram um controle e uma vigilância remotos cada vez mais incisivos em relação à execução das atividades (Dalmaso & Coutinho, 2010). Na mesma direção, o Sistema de Bilhetagem Eletrônica (SBE) ensejou mudanças significadas nesse trabalho.
A partir do SBE, foi possível a automatização da função de cobrador de ônibus. Progressivamente, as empresas de ônibus passaram a demitir tais trabalhadores, impelindo aos motoristas o exercício de uma dupla função, acumulando as atribuições dos cobradores (Silveira, 2018). Até 2019, 33 cidades brasileiras já haviam abolido integralmente a função de cobrador de ônibus. Outras 32 cidades haviam removido parcialmente o uso de cobradores (Marques, 2019). Durante a pandemia do COVID-19 essa situação piorou e houve a demissão de cerca de 110.000 trabalhadores rodoviários (NTU, 2020). Também ocorreram atraso e parcelamento de salários, suspensão de contratos, corte de auxílio-alimentação, corte de plano de saúde e bonificações, a exemplo do que ocorreu em Natal/RN (G1/RN, 2020a).
Contudo, a categoria, em nenhum momento, foi passiva frente a essa situação. Exemplo disso, foi a greve geral dos motoristas da cidade do Rio de Janeiro, em 2014. Buscando melhores condições de trabalho e aumento salarial, o movimento se inseriu nas Jornadas de Junho (de 2013), a qual resultou em outras grandes greves pelo País em 2014 (Silveira, 2018). Mesmo durante a pandemia, essas lutas continuaram. O ano de 2020 foi palco de nada menos do que 182 manifestações (incluindo greves e paralizações) dos trabalhadores rodoviários, em todo o Brasil (NTU, 2020).
Ainda que guarde suas singularidades, a precarização vivenciada pelos trabalhadores rodoviários se insere em um processo particular. De um ponto de vista global, o início dos anos 1980 foi marcado por uma forte ofensiva política e econômica das classes dominantes. Nascia a agenda neoliberal, um regime de acumulação baseado na austeridade fiscal e no enxugamento das competências “sociais” do Estado. Coincidindo com a derrota histórica do socialismo real e já consolidada a chamada reestruturação produtiva e sua acumulação flexível, criou-se uma conjuntura de enfraquecimento quase que absoluto da classe trabalhadora (Harvey, 1992).
Esse período também é a passagem de um paradigma das relações de exploração para outro. Anteriormente, principalmente nos países centrais do capitalismo, estava em voga o modelo taylorista-fordista de trabalho. Uma de suas características é jornada de trabalho de oito horas, o direito a descanso remunerado, férias, salário fixo, organização sindical e outros direitos. A consolidação desse modelo é o resultado do processo de conciliação promovido pelo Estado capitalista na tentativa de concatenar as demandas da classe trabalhadora por melhores condições de vida, com o ímpeto capitalista por ampliar a exploração do trabalho. Sobre essa estrutura se organizou um modelo sindical forte, com poder de negociação junto ao Capital e ao Estado, bem como de mobilização da classe trabalhadora.
Um dos objetivos da agenda neoliberal e da acumulação flexível foi a quebra dessa estrutura. Logo, tanto o modelo taylorista-fordista, como o a sua correspondente organização sindical foram atacados. Na primeira frente, esteve em pauta em todos os governos alinhados ao neoliberalismo, a destruição dos direitos trabalhistas e todas a regulação sobre o trabalho, acompanhado da heterogeneização das formas de se trabalhar. Na segunda frente, os sindicatos foram paulatinamente descredibilizados e enfraquecidos pública e politicamente, a fim de garantir uma mais fácil implementação das medidas de precarização do trabalho (Antunes, 2015).
No Brasil, tal agenda se fortaleceu já no período de redemocratização, nos anos 1990 (Antunes, 2020). Apesar de arrefecida durante os governos democrático-populares do PT, após a deposição da presidenta da república em 2016, ocorre uma nova onda de radicalização das políticas “anti-trabalho”, de viés neoliberal (Rocha & Oliveira, 2023).
Ademais, a precarização deve ser entendida como elemento estrutural e constituinte do modo de produção capitalista. Não é, pois, exagerado afirmar que o processo de acumulação de capital engendra uma “tendência estrutural à precarização do trabalho” (Antunes, 2020). Logo, a precarização é uma condição básica para reprodução das relações de trabalho capitalista. Isto é, a ampliação da produção de capital ocorre junto a intensificação da exploração e essa, passa também pela deterioração das condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora (Antunes, 2020). Por sua vez, essa precarização pode ser expressa nas formas de mercantilização da força de trabalho, na organização e nas condições de trabalho, na segurança do trabalho, na sua valorização simbólica e nas condições de organização política dos trabalhadores (Druck, 2013).
Mesmo havendo essa condição estrutural, a precarização se intensifica em determinados momentos históricos. Isso é o que ocorreu a partir de 1970 e que tem se potencializado após momentos críticos do capital – como em 2008 e na pandemia do COVID-19. Esse movimento é determinado pela demanda do capital de, logo após a agudização da estrutural em alguns momentos, precisar intensificar a exploração do trabalho a fim de retomar taxas de crescimento prévio e manter a reprodução do capital (Gomes, Lima & Carvalho, 2021).
Por sua vez, tal princípio é tendencial, ou seja, depende de diversos fatores para se efetivar. Entre esses fatores, o mais importante é a capacidade organizativa e a força política da classe trabalhadora em resistir e/ou impor seus projetos.
Sabendo que a precarização do trabalho é um dado estrutural do capitalismo, que encontra manifestação particular em contexto periférico e dependente (Marini, 2017), é de suma relevância destacar como esse processo expressa a luta de classes. A precarização é um tipo de conflito interclasse em torno do processo de trabalho. Assim, proprietários e trabalhadores se encontram em polos políticos distintos, defendendo posições distintas e com práticas opostas – formando um embate de classes. Dessa forma, quando se fala em precarização, especialmente em cenários em que há focos de resistência, naturalmente se está falando em conflito. O modo de resolução (ou acomodação) desse conflito ocorre, entre outros meios, pela via da produção de ideologias (Lukács, 2013).
Nesta pesquisa, ideologia é definida em sentido ontológico, tal qual proposto por Lukács (2013). De acordo com esse autor, ideologia não é um fenômeno necessariamente conservador, a serviço das classes dominantes ou orientado à mistificação da realidade histórica. Na verdade, a ideologia diz respeito a um conjunto de ideias – verdadeiras ou falsas, espontâneas ou artificiais – dotadas da capacidade de orientar a ação dos indivíduos ante conflitos sociais. A ideologia consiste em uma resposta concreta dada por uma pessoa às contradições por ela observadas ou vividas. Em consequência, “a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada” (Mészáros, 2014, p. 65).
A ideologia surge, então, como uma categoria capaz de auxiliar na análise dos processos de luta e resistência contra a precarização do trabalho. Isso porque a própria precarização do trabalho é um conflito, no qual pessoas de distintas classes sociais atuam, mobilizando uma diversidade de ideias que são recuperadas nos embates decorrentes dessa precarização. Em específico, o em tela refere-se à regulação do uso da força de trabalho no processo de produção do capital. Portanto, a ideologia de que tratamos aqui é uma ideologia do trabalho (Coelho-Lima, 2021).
Considerando o contexto de precarização que abordamos nessa pesquisa, as ideologias do trabalho acompanham as mudanças no mundo do trabalho. Durante a hegemonia do modelo taylorista-fordista imperava uma ideologia do trabalho propagada pela classe burguesa que legitimava essa forma de trabalho, materializada na valorização do trabalho assalariado, respeito a autoridade e centralidade do emprego para a vida do trabalhador. Igualmente, os próprios trabalhadores também produziam ideologias tendo como base tal modelo, seja de legitimando os sindicatos e a luta incremental das condições de vida (, seja as que propunham o rompimento radical com esse modelo de trabalho e modo de produção (Anthony, 2014). Contudo, a partir da acumulação flexível e da necessária heterogeneização do trabalho para a manutenção da reprodução do capital, essas ideologias também sofreram alterações (Coelho-Lima & Bendassolli, 2018).
De acordo com Coelho-Lima, Bendassolli e Varela (2021), o estudo da ideologia depende do uso de métodos específicos. Em particular, esses autores promovem uma articulação entre a compreensão lukacsiana de ideologia e a psicologia histórico-cultural. Em consonância com essa articulação teórica, os autores propõem um circuito no qual é possível observar uma espécie de “trajetória” que as ideias ideológicas desenham – desde sua circulação objetiva, na linguagem, até sua “captação” subjetiva pelas consciências individuais, sendo elaboradas de modo ativo internamente. O resultado é que a ideologia caba influenciando pensamento e afetos, orientando a práxis das pessoas, isto é, suas ações. Em outras palavras, as ideologias circulam ancoradas em significados, são então internalizadas e reelaboradas pelas pessoas, e transformadas em sentidos orientadores para essas ações (Vygotsky, 1934/2009). Logo, tanto os significados (socialmente compartilhados), como os sentidos (incorporações individuais) podem ser tomados como ideologias. Em outras palavras, é possível identificar um sentido ideológico quando este é capaz de orientar a ação do sujeito ante a um conflito socialmente estabelecido.
Essas considerações são relevantes para amplificar e consolidar não apenas uma abordagem teórica da psicologia sobre a ideologia, mas também para a construção de bases para a pesquisa psicológica empírica que trate de tal fenômeno social, no contexto de estudos sobre sentidos e significados do trabalho.
Método
Participantes
Os interlocutores desta pesquisa são motoristas do sistema de transporte público municipal de Natal/RN. Assim, todos os trabalhadores que estavam em atuação profissional durante a condução da pesquisa foram considerados elegíveis para a inclusão no estudo. Além disso, como os transporte coletivo de passageiros é uma característica de espaços urbanizados, é natural que os fenômenos relativos a ele se manifestem de maneira mais evidente em grandes cidades, especialmente nas capitais. Por isso o estudo escolhe Natal, capital e cidade mais populosa do Rio Grande do Norte, como campo.
Não houve distinção quanto a empresa ao qual o participante estava contratado, considerando que não há diferenças significativas quanto a condições de trabalho entre elas, e todas respondem ao mesmo regime de concessão pública para funcionamento.
A quantidade de interlocutores foi construída ao longo da pesquisa, a partir da adoção da técnica de saturação teórica (Glaser & Strauss, 1967). Nesta pesquisa, o ponto de saturação teórica geral (Fontanella et al., 2011) foi alcançado com o décimo participante. Como recomendado pela literatura, uma interlocução adicional foi conduzida para se confirmar a saturação. Ao final, a pesquisa contou com um total de onze interlocutores.
Todos são homens – refletindo um traço geral da profissão. São habitantes de Natal/RN, onde exercem a atividade profissional. É predominante, entre eles, a formação escolar de nível médio completo. Do ponto de vista etário, os intervalos de idade vão de 34 e os 60 anos. A média está na faixa dos 40 anos. Quanto ao tempo de profissão, este varia entre 10 anos e 27 anos de experiência profissional.
Procedimento de elaboração de dados
A técnica de coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, ocorrendo no ano de 2021, mais especificamente entre os meses de julho e novembro. Considerando que isso coincidiu com a pandemia de COVID-19, todos os protocolos de biossegurança estabelecidos pelas autoridades sanitárias foram seguidos, pois as entrevistas ocorreram presencialmente.
Os participantes foram acionados a partir de um contato prévio do pesquisador com um trabalhador aposentado da categoria profissional dos trabalhadores rodoviários. A partir de mediação desse contato prévio foram se estabelecendo diálogo com potenciais interlocutores. Algumas vezes, os próprios interlocutores indicaram outros possíveis contatos, em estratégia de “bola de neve”.
A maior parte das entrevistas ocorreu em terminais de ônibus da cidade, nos horários de intervalo de trabalho dos interlocutores. Três entrevistas, entretanto, ocorreram nas residências dos participantes. Foi garantido o anonimato a todos os participantes. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Sua média de duração foi de uma hora. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob número de parecer 4.650.590.
O primeiro momento da entrevista foi divido em seis eixos temáticos: 1) Questões sociodemográficas: lida com questões relativas a idade, escolaridade, estado civil, entre outros; 2) Trajetória profissional: trata do percurso laboral de cada participante; 3) Sentido genérico do trabalho: concernente a visões sobre o que é o trabalho e por que se trabalha; 4) Contexto de trabalho: diz respeito à caracterização das condições atuais de trabalho; 5) Políticas de trabalho: versa sobre sindicatos, organização dos trabalhadores, direitos e política de organização coletiva; e 6) Engajamento e movimentos recentes: questiona sobre como os interlocutores compreendiam e/ou participaram das manifestações de resistência recentes contra a precarização do trabalho.
No que tange ao procedimento de análise, os dois primeiros eixos são considerados subsidiários e contextualizadores, ou seja, eles dão suporte para uma compreensão situada dos eixos seguintes – estes, sim, passíveis de fornecer os sentidos eventualmente ideológicos, que são objeto desta pesquisa. Em termos práticos, isso quer dizer que os dados sociodemográficos e a trajetória profissional dos interlocutores não possuem uma análise à parte, já que são aspectos descritivos e de contextualização.
No segundo momento da entrevista, os interlocutores foram confrontados com três chamadas de matérias da imprensa local sobre temas relacionados à luta dos motoristas de ônibus contra o avanço da precarização. O pesquisador apresentou essas chamadas na forma de print screens, registrados no próprio smartphone. Uma vez exibidas as matérias, o pesquisador convidava os interlocutores a fazer comentários e reflexões livres sobre o que tinham visto. As matérias possuíam os seguintes títulos: “Rodoviários fazem protesto, paralisam linhas de ônibus e cobram reunião com a prefeitura de Natal” (G1/RN, 2020b); “Motoristas de duas empresas de ônibus fazem paralisação contra corte de plano de saúde em Natal” (G1/RN, 2020a); e “Prefeitura de Natal aciona Justiça para pedir ilegalidade da greve dos motoristas de ônibus” (G1/RN, 2020c).
Esse segundo momento da entrevista teve a intenção de fazer provocações com a intensão de avançar sobre os sentidos do trabalho apropriados pelos participantes, e de aprofundando as respostas dadas pelos participantes às questões iniciais (Vygotsky, 1995). As matérias também tinham a capacidade de ensejar reflexões inéditas, que não haviam aparecido com as provocações feitas pelas perguntas do primeiro momento da interlocução.
Procedimentos de análise de dados
Uma vez transcritas as entrevistas, estas foram analisadas individualmente. Nesse processo, foram construídas categorias de análise orientadas a identificar os sentidos (Vygotsky, 1934/2009) implicados nas falas dos interlocutores. Por meio da construção de categorias foi possível identificar os elementos recorrentes ou particulares em cada entrevista, e entre as entrevistas como um todo.
Quando foi finalizada a análise da décima primeira entrevista, todos os sentidos manifestados, e que fossem relevantes para os objetivos da pesquisa, foram classificados dentro de, pelo menos, uma categoria. No processo, os eixos temáticos do roteiro de entrevista serviram de guias para a organização das categorias.
Após a categorização dos sentidos identificados nas entrevistas passamos para uma etapa interpretativa dessas. Nela buscou-se relacionar os sentidos e as ações identificadas frente a problemas do cotidiano que expressão o conflito social do uso da força de trabalho. Para isso, relacionamos as mesmas com a dinâmica das relações sociais capitalistas, principalmente quanto a precarização e as resistências a esses processos. A partir de tal interpretação dos dados empíricos foi possível estabelecer as funções ideológicas que os sentidos identificados possuíam. Esse procedimento é inspirado nos pressupostos teórico metodológicos apresentados por Coelho-Lima, Varela e Bendassolli (2021) e segue exemplo da pesquisa de Coelho-Lima e Bendassolli (2018).
Resultados
A análise das entrevistas resultou nas seguintes categorias por eixos temáticos: 1) Eixo Sentido Genérico do Trabalho: Trabalho como subsistência, Trabalho como realização pessoal, Trabalho como educação moral, e Trabalho como liberdade patrimonial; 2) Eixo Contexto atual de trabalho: Avanço da precarização do trabalho, Autovalorização do trabalho, Empoderamento, e Omissão estatal; 3) Eixo Política do trabalho/Manifestações recentes: Sindicato, Direitos trabalhistas, e Processo de luta. Na sequência debatemos cada um desses elementos.
Sentido genérico do trabalho
Quatro categorias organizam os sentidos atribuídos ao trabalho pelos participantes. Para esta discussão, o que importa é o ato de trabalhar em sentido genérico, sua importância e utilidade – quer dizer, não a atividade profissional concreta realizada por cada pessoa no momento da entrevista.
Um sentido do trabalho comum é nomeado de “trabalho como subsistência”. Essa percepção é uma descrição da função material do trabalho dentro do capitalismo. Sendo a classe trabalhadora privada dos meios de produção, estando estes monopolizados pelas classes dominantes, não resta aos trabalhadores outra forma de subsistência que não seja a venda da força de trabalho em troca de um salário – ou seja, se subordinando em uma relação social de exploração (Marx, 2017/1867). É bem explícita para interlocutores essa dimensão coercitiva do trabalho – trabalha-se, no fim das contas, para sobreviver. Orlando ilustra este ponto ao dizer: “Sabendo, né, que sou explorado (...), mas a única fonte de renda que eu tenho é essa”.
“Realização pessoal” e “liberdade patrimonial” também descrevem sentidos que os interlocutores manifestam sobre trabalhar. Quanto ao primeiro, é comum, entre os motoristas de ônibus, a compreensão do trabalho como um meio para se praticar aquilo que se ama e que se está vocacionado a fazer. Muitos dos entrevistados chegam a mencionar que dirigir veículos pesados era “sonho de infância”. No que se refere à “liberdade patrimonial”, os trabalhadores entrevistados veem no trabalho a possibilidade de se tornarem financeiramente independentes, associando o dinheiro a um certo sentido de liberdade. Ernesto, por exemplo, afirma que trabalhar tem como resultado não depender de ninguém.
Outro sentido marcante foi aquele referente ao trabalho como “educação moral”. Os interlocutores entendem o trabalho como um tipo de prática capaz de dotar o indivíduo de esquemas morais para a formação pessoal. Mais do que isso, os trabalhadores transmitem esse sentido moral em seu próprio grupo doméstico – especialmente para os filhos. Dessa maneira, valores como “disciplina”, “responsabilidade”, “pontualidade”, “compromisso”, “obediência”, entre outros, compõe a formação moral do trabalhador e, por extensão, de sua própria família. Coerente com essa visão moral, a questão da “dignidade” do trabalho também é expressa, tal como na fala de Hugo: “Trabalhar é dignidade. Derramar o próprio suor é viver com dignidade”.
Contexto de trabalho
Os entrevistados também pontuam a questão da “autovalorização do trabalho”. Usando uma ideia do trabalhador Gregório, há a sensação de um “empoderamento” dos motoristas de ônibus graças à sua profissão. Eles demostram um forte orgulho em relação ao próprio ofício. Isso parece revelar que os participantes expressam sentidos do trabalho que não se restringem à remuneração, e que também vão além da esfera moral, atingindo o valor, propósito e finalidade da atividade de trabalho em si.
Dentro do eixo referente ao contexto de trabalho, há categorias indicando o sentido político do trabalho. Por exemplo, a categoria “Avanço da precarização do trabalho” – estando esta, por sua vez, dividida em outras três subcategorias. Antes de citá-las, é importante apontar que os interlocutores reconhecem o processo de precarização. Eles a identificam como um fenômeno que foi se constituindo paulatinamente, mas que se intensificou recentemente. Compreendem que a precarização possui origens diversas, diferentes agentes responsáveis, e múltiplas formas de expressão na atividade profissional.
A primeira subcategoria é a de “Degradação das condições de trabalho”. Tal categoria mostra um entendimento crítico dos trabalhadores a respeito das novas configurações da atividade que desempenham. O trabalho em dupla função é citado, reiteradamente, como um fator de deterioração das condições de trabalho. Nesse sentido, enquanto as empresas de transporte reduzem seus quadros de funcionários, os motoristas passam a acumular tarefas não só de cobrador, mas também de despachante, de fiscal, entre outras. O que, para muitos, resulta em demissão em massa, para outros constitui “mais trabalho”. Os participantes admitem possuir uma tolerância “forçada” em relação ao regime de trabalho em dupla função. Quer dizer, aceitam exercer a atividade profissional nessa modalidade devido ao medo do desemprego.
A segunda subcategoria, “Avanço da precarização do trabalho”, congrega as percepções sobre a origem da precarização. Em específico, “Agenda neoliberal como fator de precarização” congrega os sentidos atribuídos pelos participantes às políticas econômicas dos últimos governos. Tais sentidos assumem a ideia de “programas anti-trabalhador”. Essa ideia é citada nos exemplos das reformas trabalhista e previdenciária – conduzidas, respectivamente pelos governos Temer e Bolsonaro.
A terceira subcategoria, “Oportunismo pandêmico”, congrega percepções de que a classe patronal do setor de transporte urbano fez uso deliberado do contexto da pandemia para executar interesses antigos – quer dizer, extinguir a função de cobrador de ônibus e impor a generalização da dupla função. Para Gregório, “[os empresários] se aproveitaram dessa doença para tirar tudo o que podiam [dos trabalhadores]”.
Os interlocutores também atribuem grande responsabilidade, quanto ao avanço da precarização, ao Estado. Assim, observam um Estado passivo, omisso e que age apenas para coibir as lutas dos trabalhadores (declarando a ilegalidade das greves, por exemplo). Augusto afirma que “se o motorista fizer greve, aparece juiz, promotor, desembargador... pra multar o sindicato [...]. A gente tem que aceitar tudo que querem fazer contra o pobre do motorista de ônibus”.
Políticas do trabalho
A primeira categoria relacionada a este eixo diz respeito a discussões sobre sindicato. Assim, há duas subcategorias que expressam sentidos sobre a organização em questão. A primeira delas descreve a função atribuída, pelos interlocutores, a esse organismo de classe. “Sindicato como instrumento defensivo” sinaliza um entendimento de que a organização sindical tem funções corporativistas, economicistas, jurídicas, negociais e defensivas. Essa visão de sindicato é coerente com as transformações pelas quais essas organizações passaram ao longo do século XX, especialmente nos anos 1990, no Brasil. Nesse período, boa parte dessas organizações abandonaram pretensões políticas ousadas e radicais. Elas deixaram de ter um programa político, de investir em politização das bases, de apostar na mobilização de massas como via prioritária de luta etc. (Antunes, 2020). No lugar disso, surgiu um sindicalismo “cidadão”, “propositivo”, “legalista” e “dialogal” – cada vez menos intransigente nas demandas.
Os trabalhadores entrevistados identificam uma função, relevância e importância na existência de uma organização sindical. Ou seja, embora possa haver contradições na atuação dos sindicatos, ela não parece ser vista como dispensável. Isso segue em coerência com outra subcategoria, “Centralismo sindical”, que aponta para a práxis dos trabalhadores em relação ao sindicato. Para alguns dos participantes, as deliberações do sindicato devem ser seguidas à risca, mesmo quando o trabalhador discordar e desconfiar delas. Isso porque o sindicato já atua em condições desfavoráveis, tanto por conta da força do empresariado e da omissão do Estado, quanto por causa da conjuntura relativa aos últimos governos federais, abertamente “antissindicais”. Assim, boicotar o sindicato apenas geraria um problema a mais para a organização dos trabalhadores, enfraquecendo-a e gerando mais prejuízos aos próprios trabalhadores.
“Direito trabalhista como referência de luta” é outra categoria que expressa sentidos relativos a como os interlocutores compreendem a legislação do trabalho. Eles possuem uma compreensão crítica, a qual informa que os direitos não estão, por si sós, garantidos. Na verdade, para os participantes, há uma necessidade de mobilização e pressão dos trabalhadores para que os direitos realmente sejam efetivados. Hugo afirma que “(...) no Brasil, nenhum direito funciona se não for com essas greve[s]”. Esse entendimento explica, em parte, a grande quantidade de manifestações que os trabalhadores rodoviários empreenderam na última década.
Outra categoria, dividida em várias subcategorias, é a de “Processos de luta”. “Contradições sindicais”, a primeira subcategoria, exprime a forma como os participantes compreendem não mais o sindicato em seu sentido geral e as funções da organização dos trabalhadores, mas especificamente o sindicato da própria categoria. Nesse momento surge uma contradição: embora os participantes acreditem no sindicato como organização imprescindível, eles sentem uma profunda desconfiança quanto à gestão da entidade. A gestão das últimas décadas é vista como burocratizada, cooptada, omissa e atuando em função dos interesses particulares de seus diretores.
“Saídas institucionais” apresenta a maneira como os trabalhadores observam modos de enfrentar os conflitos do mundo do trabalho. Fundamentalmente, os interlocutores veem a predominância de soluções institucionalizadas. “Legalismo”, uma das saídas institucionais, aponta para soluções mediadas por autoridades do chamado poder público. Assim, as cortes judiciais se apresentam como uma das possíveis saídas para as contradições do trabalho. “Solução eleitoral”, por sua vez, expressa sentidos que apontam que a resolução da intensificação da precarização pode ser alcançada por meio das eleições presidenciais.
Uma outra categoria, afim à anterior, é a de “Terceirização da luta”. Esses sentidos indicam a existência de pessoas à espera do surgimento de algum agente histórico capaz de promover a superação das contradições que eles enfrentam. Assim, aguarda-se “alguém” capaz de mudar os rumos da categoria profissional. Isso interfere na práxis dos interlocutores na medida em que é um sentido que isenta os trabalhadores da ação direta, promovendo, na verdade, uma delegação da responsabilidade quanto à transformação social.
Outra subcategoria é a de “Conflitos entre trabalhadores e patrões”. Sob uma perspectiva teórica e ontológica, a categoria diz respeito à luta de classes (Marx, 2011/1852) – manifestação política dos conflitos distributivos que nascem no processo de produção de valor. Todos os interlocutores creem que tais conflitos existem, ou seja, que a relação entre trabalhadores e patrões não é, e não pode ser, uma relação completamente harmoniosa e cooperativa. O fundamento da compreensão dos participantes da pesquisa é o de que patrões e trabalhadores possuem interesses distintos e auto-excludentes.
No que diz respeito aos instrumentos de luta propriamente ditos dos trabalhadores, surgem sentidos que foram classificados dentro da subcategoria “Greve como instrumento legítimo”. A maior parte dos interlocutores crê que a greve tem uma importância indispensável na conquista e na preservação de direitos. Como afirma Augusto, “[a greve] é o único instrumento que o pobre trabalhador tem pra requerer algum benefício”. Apesar disso, muitos trabalhadores possuem discordâncias táticas quanto ao modo como a greve é guiada pelo sindicato. Mais uma vez, surge uma contradição: embora a greve seja legítima, o modo como se expressa na prática, atualmente, é repleto de defeitos que ensejam alguma discordância. Por exemplo, alguns acreditam que a legislação sobre greve deveria ser cumprida à risca; outros, que ela deveria ser desprezada para mais radicalidade.
Uma subcategoria intimamente relacionada à anterior, embora oposta a esta, é a de “Greve como instrumento ilegítimo”. Esse sentido foi uma posição minoritária entre os interlocutores. Ele, fundamentalmente, expressa um cálculo pragmático no qual os transtornos gerados à população não compensam o que, costumeiramente, os trabalhadores ganham com a greve, ou seja, nada.
Quanto às manifestações recentes, a maior parte dos participantes aderiu de modo praticamente “compulsório” e engajado nas manifestações da categoria profissional ao longo do ano de 2020. No que diz respeito ao modo como esses interlocutores interpretaram tais eventos, todos eles ressaltam o papel do sindicato na construção dos movimentos. Surgiram, então, sentidos classificáveis em três categorias, quanto à atuação do sindicato: a) encenada; b) sem força; e c) branda.
A primeira categoria, “encenada”, demonstra uma desconfiança absoluta na atuação do sindicato. Existe, por parte dos trabalhadores que invocam tal sentido, um entendimento de que o sindicato, na verdade, “simulou” as manifestações – quer dizer, convocou manifestações, mas sem a intenção real de conquistar qualquer coisa. O objetivo, na verdade, seria apenas aparentar alguma ação para não serem desmoralizados diante dos trabalhadores. A segunda categoria, “[Atuação] sem força” expressa o entendimento de que o sindicato atuou de maneira legítima, mas a conjuntura desfavorável (governamental e relacionada à crise sanitária) não permitiu o alcance dos resultados almejados.“[Atuação] branda”, por fim, exprime a compreensão de que o sindicato, mesmo com a conjuntura desfavorável, poderia ter feito mais – ou seja, a organização sindical, na verdade, teria se eximido de exercer uma pressão tão grande quanto aquela que poderia fazer. Prova disso seria o fato de que as paralizações e greves foram todas de curta duração.
Discussão
Considerados os sentidos manifestados pelos interlocutores, é momento de compreender de que maneira eles podem ser ideológicos, ou seja, como os sentidos são capazes de orientar a ação dos sujeitos ante os conflitos sociais relativos à precarização do trabalho. A compreensão do modo como as ideologias são acionadas e aplicadas enseja a possibilidade de compreender a maneira como os trabalhadores rodoviários em questão resistem aos conflitos nos quais estão inseridos.
Três ideologias emergem dos dados analisados, referentes aos sentidos do trabalho, seu contexto e mediações. Elas são as seguintes: 1) Ideologia do trabalho assalariado clássico; 2) Ideologia da luta coletiva; 3) Ideologia salvacionista. Antes de analisar cada uma, é importante ressaltar que as ideologias nem sempre possuem fronteiras bem demarcadas. Quer dizer, podem se sobrepor umas às outras, criando determinações mútuas.
A primeira ideologia identifica foi a do trabalho assalariado clássico. Essa ideologia corresponde a modalidades de trabalho que já não são predominantes no capitalismo contemporâneo. Diz respeito, portanto, a relações de trabalho mais “tradicionais”, hegemônicas durante o século XX, quando predominava o padrão taylorista-fordista de organização do trabalho. Em termos concretos, essa ideologia é inserida em um contexto de trabalho caracterizado por contratos formais, leis trabalhistas, seguridade social, sindicalização, jornadas diárias e remuneração fixadas, perspectiva de aposentadoria e algum grau de “estabilidade” (Anthony, 2014; Antunes, 2015).
Desde meados do final dos anos 1970 esse tipo de vínculo trabalhista passa por profundas transformações a partir da contrarrevolução neoliberal. O Brasil observa o nascimento desse padrão de acumulação nos anos 1990, o qual se radicaliza desde 2015 (Antunes, 2020). Apesar disso, os motoristas de ônibus permanecem com vínculos trabalhistas com características do trabalho típico do século XX. Por exemplo, são formalizados, sindicalizados, protegidos por seguridade social. Isso significa que a categoria profissional analisada não está entre as mais precarizadas. O que não significa, porém, que não haja sinais de exploração, como os já citados neste artigo.
No que diz respeito a como essa ideologia se manifesta entre os rodoviários participantes desta pesquisa, há vários indicativos. Primeiro, os sentidos morais do trabalho. De acordo com estes, o trabalho é composto por valores que vão além de um meio para a subsistência. Aqui, o trabalho é formativo, confere dignidade, é realização pessoal, possibilita independência e, não menos importante, é motivo de orgulho.
No caso dos motoristas, a baixa rotatividade no setor de transporte público parece contribuir para a emergência de sentidos do trabalho atrelados a valores morais. Por exemplo, nenhum dos interlocutores possuía menos de uma década de experiência, e muitos deles nunca trabalharam com outra coisa que não como motorista. Isso pode contribuir para conferir um sentimento de vocação e de ofício de vida.
A compreensão que os trabalhadores entrevistados possuem sobre direitos trabalhistas e sindicato também está associada a essa ideologia. A valoração positiva e a legitimação dessas instituições também são características de um trabalho formalizado “típico” – afinal, é majoritariamente nesse tipo de vínculo trabalhista que existem sindicatos e direitos consolidados (Anthony, 2014; Antunes, 2015). Sindicato e legislação trabalhista aparentam ser fenômenos “naturalizados” pelos interlocutores, no sentido de que eles sempre existiram e sempre deverão existir.
Em suma, ideologia do trabalho assalariado clássico orienta os participantes a uma atuação compatível com a dos trabalhadores inseridos em modalidades típicas de trabalho, seja do passado ou do presente. A reivindicação de dignidade moral no trabalho e a busca por melhores condições, por meio do sindicato e da conquista de direitos, são típicas do modo como essa ideologia atua entre os sujeitos de pesquisa.
A segunda ideologia do trabalho identificada é a da luta coletiva. Esta ideologia relaciona-se intimamente com a anterior. Pode-se mesmo colocar a hipótese de que esta deriva daquela. Isso porque, como se verá, o modo como os trabalhadores pensam o processo de luta e resistência política, em relação ao mundo do trabalho, corresponde ao tipo de trabalho que os interlocutores exercem – ou seja, um trabalho “típico”, com jornada de oito horas, remuneração fixada, previdência social etc.
Dessa forma, os sentidos que constituem esta ideologia são os concernentes a sindicato, direitos e greve. No que tange ao primeiro, é possível observar a ideologia da luta coletiva na apologia, por parte dos interlocutores, à reconstrução e fortalecimento do sindicato. Mesmo em uma conjuntura profundamente antissindical, tanto pela legislação que desempodera as organizações, quanto pelo alto índice de desemprego e informalidade, que as esvaziam (Antunes, 2020), os interlocutores acreditam, majoritariamente, que a resistência passa pela atuação do sindicato. Isso é interessante, pois mesmo sendo críticos à gestão os trabalhadores creem que a organização deve ser reconstruída, e não abandonada. Apesar disso, os participantes não entendem que essa reconstrução seja responsabilidade direta deles – cabendo ao sindicado o suporte necessário a uma eventual chapa renovadora.
Convergente com o que acaba de ser mencionado, a categoria de “Centralismo sindical” também serve de orientação dos participantes rumo a ações “amigáveis” em relação ao sindicato. Se, no sentido anteriormente citado, os trabalhadores são direcionados à defesa da reorganização do sindicato, neste eles são orientados à obediência tática à gestão atual. Essa ação é tomada menos por apreço à gestão e mais por um cálculo de redução de danos à categoria profissional.
O entendimento dos trabalhadores sobre a legislação trabalhista também é parte constituinte da ideologia da luta coletiva. Isso ocorre porque os trabalhadores, além de legitimar tal legislação, compreendem que ela pode ser apenas um conjunto de documentos formais sem aplicação real – caso não seja acompanhada de mobilização política que a torne substancial. Assim, esse sentido mobiliza os interlocutores de uma maneira específica, qual seja, permite que os direitos trabalhistas sejam o grande marco de referência da luta coletiva. Não obstante, os trabalhadores entrevistados entendem que essa reivindicação relativa a direitos não é, novamente, responsabilidade direta deles, sendo tarefa do sindicato.
A legitimação da greve, expressa pela maioria dos interlocutores, contém um sentido contraditório, pois os participantes possuem discordâncias táticas com o sindicato. Isso se reflete em uma ação também contraditória: os trabalhadores não deixam de construir as greves e paralisação. Na verdade, participam, mas de maneira desanimada, desengajada e desconfiada. Isso também vale para trabalhadores que não legitimam a greve. De qualquer forma, esses sentidos são ideológicos precisamente porque mobilizam a ação dos participantes diante dos conflitos do trabalho.
Os processos de luta também contam com sentidos relativos à judicialização dos conflitos e à solução eleitoral. Nos dois casos os participantes são compelidos a terceirizar a solução das contradições da precarização. Assim, mais uma vez os trabalhadores atuam para delegar a outros sujeitos as saídas possíveis. Por fim, ao identificarem de maneira clara e realista os responsáveis por aquilo que os incomoda, i.e., o patronato, a luta assume uma fisionomia, um alvo claro.
A terceira ideologia do trabalho identificada foi a ideologia salvacionista. Esta ideologia está intimamente relacionada às anteriores, na medida em que aprofunda a discussão sobre a maneira como os trabalhadores se desincumbem da tarefa de atuar diretamente. Esta ideologia, portanto, impõe um certo limite prático a ação decorrente da crítica elaborada pelos próprios trabalhadores. Os problemas são identificados, bem como seus agentes causadores, mas a ação concreta dos trabalhadores ocorre de maneira frágil, delegando a maior parte das ações a outrem.
Assim, quando os trabalhadores são chamados a refletir sobre como poderiam melhorar as condições atuais de trabalho, as respostas giram em torno do acionamento da justiça, da eleição de políticos profissionais ou da esperança de que outras pessoas possam construir um sindicato de atuação mais coerente com os interesses da base Como resultado, até mesmo a gestão atual do sindicato é vista como um desses sujeitos “estranhos”, acionáveis em caso de necessidade. Isso ocorre porque não existe uma identificação plena entre direção e base, o que é resultado do fato de os trabalhadores não estarem engajados, por diversos motivos, na construção da entidade.
Na prática, porém, nota-se que a ideologia salvacionista não gera um apassivamento completo nos trabalhadores rodoviários. Como se apontou anteriormente, tais trabalhadores empreenderam uma série de lutas, especialmente durante o período pandêmico – quando foram mais atacados. Ainda que sofrendo de sérias limitações organizativas, contradições ideológicas e adesões desconfiadas, deve-se notar que a categoria profissional dos motoristas de ônibus não está paralisada ou passiva ante o contexto de intensificação da precarização.
Uma hipótese para explicar a última observação é de que talvez a ideologia salvacionista seja incapaz de paralisar os trabalhadores, pois ela entra em contradição com alguns elementos constituintes da ideologia da luta coletiva. Por exemplo: naquela ideologia, existe a legitimação da greve, que é um instrumento que exige a atuação direta e imediata dos trabalhadores. Isso choca-se contra as disposições “terceirizantes” da ideologia salvacionista. Logo, existe uma contradição ideológica que apenas limita atuação política, em vez de a eliminar.
Para finalizar, concluímos este artigo elucidando sobre o grande potencial analítico do operador analítico “ideologia”. Especialmente para as ciências que estudam o fenômeno do trabalho, as quais podem utilizar esse operador para a compreensão de alguns dos determinantes das ações que os trabalhadores empreendem. Isso é importante especialmente para as agendas de pesquisa que tematizam o trabalho sob perspectiva política, avaliando lutas, resistências, enfrentamentos, entre outras coisas. Assim, este estudo mostra não apenas quais são os sentidos relativos ao trabalho, mas de que forma eles são politizados e mobilizam ou desmobilizam, via ideologia, a ação dos trabalhadores.
Neste artigo, tentou-se demonstrar como distintas ideologias são materializadas pelos e nos sentidos manifestados pelos trabalhadores. Tais ideologias revelam um entendimento crítico a respeito da precarização do trabalho – o que significa que ideologias conservadoras e individualistas, que responsabilizam o próprio trabalhador, parecem não encontrar encontram ressonância aqui. Ao mesmo tempo, essas ideologias também orientam os participantes a se desincumbirem da tarefa de agir diretamente para a solução dos problemas que enfrentam. No fim das contas, o que ocorre é um processo de luta contraditório, pois a ação de resistência não é necessariamente bloqueada, mas flui de maneira desengajada, desmotivada e desconfiada por parte dos trabalhadores. Pode-se sugerir, a partir dessas considerações, que os trabalhadores rodoviários entrevistados possuem um potencial político a ser realizado a partir da reorganização de classe. Potencial que pode, também, estar presente em muitos outros trabalhadores rodoviários.
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