Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024006. jan./dez. 2024
DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024006
RECEBIDO EM: 31/10/2023
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 26/02/2024
VERSÃO FINAL: 13/03/2024
APROVADO EM: 21/03/2024
Assistência a Adolescentes em Uso Abusivo de Substâncias Psicoativas em Fortaleza, Ceará
Assistance for Adolescents with Psychoactive Substance Abuse in Fortaleza, Ceará
Andrezza Sombra Cordeiro
Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, Ceará, Brasil. ORCID:0009-0007-8600-7199. E-mail: andrezza@alu.ufc.br
Vládia Jamile Dos Santos Jucá
Professora da graduação e pós-graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Doutora em Saúde Coletiva. Fortaleza, Ceará, Brasil. ORCID:0000-0003-2416-7342. E-mail: vladiajuca@gmail.com
Karla Patrícia Holanda Martins
Professora da graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Doutora em Teoria Psicanalítica. Fortaleza, Ceará, Brasil. ORCID: 0000-0003-3242-6287. E-mail: karlamartins@ufc.br
Resumo
O artigo visa apresentar a configuração da assistência aos adolescentes em uso abusivo de substâncias psicoativas em Fortaleza, após a secretaria municipal de saúde ter determinado, em 2021, que até os 16 anos o acompanhamento seria de responsabilidade do CAPSi e que, a partir de 16 anos de idade, o tratamento aconteceria no CAPSad. O estudo foi exploratório e descritivo. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e rodas de conversas com os profissionais de dois CAPSad e de um hospital infanto-juvenil de referência para internações psiquiátricas de crianças e adolescentes. Observou-se que os adolescentes não têm conseguido chegar aos centros de atenção psicossocial, mas continuam sendo internados no hospital. Os profissionais apontam como elementos que dificultam a chegada dos adolescentes aos CAPSad: a precarização dos equipamentos da rede de atenção psicossocial e de suas equipes, o desmonte da política de redução de danos, as dificuldades de trânsito dos jovens pelos territórios faccionados e o lugar central ocupado pelas medicações e pelas internações, deixando os jovens mais vulneráveis às internações psiquiátricas, as quais deveriam se constituir como última opção, acontecendo em caráter excepcional e com brevidade.
Palavras-chave: Adolescentes; Substâncias Psicoativas; CAPS; Internações Psiquiátricas
Abstract
The article aims to present the mental health assistance for adolescents in psychoactive substance abuse in Fortaleza, after the municipal health department determined, in 2021, that until the age of 16 the monitoring would be the responsibility of the CAPSi and that, from the age of 16, the treatment would take place at the CAPSad. The study was exploratory and descriptive. Semi-structured interviews and conversation circles were conducted with professionals from two CAPSad and one children's hospital. It was observed that adolescents have not been able to reach the psychosocial care centers, but are admitted to the hospital. Professionals point out as elements that make it difficult for teenagers to reach CAPSad: the precariousness of the equipment of the psychosocial care network and its teams, the dismantling of the harm reduction policy, the difficulties in transiting young people through factionalized territories and the place center occupied by medications and hospitalizations, leaving young people more vulnerable to psychiatric hospitalizations.
Keywords: Adolescents; Psychoactive substances; Psychosocial Care Centers (CAPS); Psychiatric Admissions.
O texto a seguir apresenta e discute os resultados de uma pesquisa cujo objetivo central foi analisar a organização do cuidado destinado aos adolescentes usuários de substâncias psicoativas (SPA’s) na cidade de Fortaleza, capital do Ceará. Consideramos no estudo os Centros de Atenção Psicossocial a Usuários de Álcool e Outras Drogas (CAPSad) das regionaisi III e VI e a Sociedade de Assistência e Proteção à Infância de Fortaleza (SOPAI), a partir da percepção dos seus trabalhadores. A pesquisa foi iniciada em 2021, ano de um acontecimento importante em termos de políticas públicas de assistência aos jovens em questão: a Nota Informativa nº 001/2021 emitida pela secretaria de saúde municipal, a qual distribuiu a atenção aos adolescentes usuários de SPA’s entre o Centro de Atenção Psicossocial à Infância e Adolescência (CAPSi) e o CAPSad. A divisão realizada foi de acordo com a faixa etária: adolescentes entre 12 e 16 anos com questões referentes ao uso abusivo de substâncias psicoativas seriam doravante atendidos no CAPSi e, a partir dos 16 anos, a assistência ficaria sob responsabilidade do CAPSad.
Na revisão de literatura, encontramos artigos com discussões relevantes sobre a assistência a adolescentes usuários de substâncias psicoativas. Dentre eles, os aspectos que mais se destacaram foram: a escassez de locais adequados e profissionais capacitados (Paim, Porta, Sarzi, Cardinal, Siqueira, Mello & Terra, 2017; Ribeiro, Gomes, Santos, & Pinho, 2019; Goncalves, Canassa, Cruz, Pereira, Santos & Gonçalves, 2019; Silva, 2015; Almeida, 2010); a existência de práticas que se associam a práticas manicomiais (Jorge, Roseni, Mota, & Mota, 2015; Nunes, Guimarães & Sampaio, 2016; Vechiatto e Alves, 2019) e a lacuna assistencial relacionada às problemáticas de uso abusivo de substâncias psicoativas por adolescentes (Galhardi e Matsukura, 2018). No entanto, consideramos importante entender como tal questão se colocava em Fortaleza, sobretudo, após a nota informativa que visava reorganizar a assistência.
Dentre os artigos encontrados, um em especial chamou nossa atenção ao afirmar, a partir de uma pesquisa realizada em município de porte médio no Rio Grande do Sul, o não lugar dos adolescentes em uso abusivo de substâncias psicoativas na rede de atenção psicossocial (Ribeiro et al., 2019). Tais jovens, à época do estudo, não eram acompanhados nem pelo CAPSi, nem pelo CAPSad. De acordo com os autores do artigo, os equipamentos responsáveis pelo atendimento de crianças e adolescentes alegavam que não tinham condições de ofertar um tratamento adequado no que se refere ao uso abusivo de drogas, posto que seu público seria aquele com outras condições psíquicas; enquanto os CAPSad não se consideravam aptos para atender a especificidade do público infantojuvenil. Deste modo, os adolescentes permaneciam em um “limbo assistencial”, termo que criamos na pesquisa aqui relatada para descrever a situação dos adolescentes que não encontram lugar nos equipamentos territoriais.
O limbo assistencial, junto com o desmonte da política de redução de danos, da precarização dos equipamentos da rede de atenção psicossocial e de suas equipes, deixou os adolescentes mais vulneráveis às internações psiquiátricas (Pereira, Silva & Matskura, 2023) as quais deveriam se constituir como última opção, acontecendo em caráter excepcional e com brevidade. As internações de adolescentes usuários de SPA’s têm sido prática recorrente e ocorrem por motivos diversos. São justificadas pela presença de comportamentos agressivos, quando o jovem é considerado risco para si mesmo ou para outro. Com frequência, estão associadas a um diagnóstico. Na análise do fenômeno das internações é de crucial importância atentar também para a psiquiatrização das questões sociais, movimento mais evidente quando se trata de adolescentes em conflito com a lei (Braga, D´Oliveira, 2022).
Especificamente sobre a situação de Fortaleza, os resultados do monitoramento da política de saúde em Fortaleza feito pela equipe do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente [CEDECA] do Ceará em 2021, expõem o agravo do quadro de saúde mental e desassistência pós-pandemia de Covid-19 na capital do Ceará. A efetivação da política em saúde mental tem ocorrido na:
contramão das portarias, regimentos, leis e decretos considerados pilares para a constituição do avanço no movimento da Reforma Psiquiátrica, que pautou a saúde mental enquanto um direito do/a cidadão/ã, abriu espaço para a construção de uma ideia de cuidado humanizado, retirando o foco da institucionalização e escancarando as graves violações de direitos existentes no trato diário com pacientes hospitalizados. (CEDECA, 2021, p. 26)
Ademais, o monitoramento do CEDECA (2021) denuncia a judicialização dos casos da Sociedade de Assistência e Proteção à Infância de Fortaleza (SOPAI), por meio das internações compulsórias, uma vez que o Poder Judiciário fica responsável pela determinação de encaminhamentos e altas hospitalares, o que possibilita que muitos casos excedam o período de 30 dias recomendado pelo hospital. Ainda de acordo com o relatório citado, as internações realizadas por esse equipamento de saúde, a medicação ocupa um espaço central no tratamento dispensado a esses jovens.
O modo pelo qual as internações têm funcionado no campo da assistência a adolescentes usuários de SPA’s fortalece novamente a cultura da institucionalização presente no Brasil desde o início do século XX quando a criança e o adolescente se tornaram um problema de Estado (Rizzini e Rizzini, 2004). Contra esta cultura, foram formuladas políticas públicas após os vinte anos de ditadura militar. Dentre as várias políticas e normativas, interessa a esse estudo: a Lei da Reforma Psiquiátrica, também conhecida como Lei Paulo Delgado (Brasil, 2001) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). Como desdobramento da Lei Paulo Delgado, aconteceu, através da Portaria n° 336/2002 a regulamentação da rede de serviços substitutivos - os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
O fato de a assistência aos adolescentes usuários de substâncias psicoativas não estar atendendo as necessidades de saúde dos jovens e dos seus familiares se coloca como uma grave lacuna assistencial. Tendo em vista a necessidade de compreensão das dificuldades vividas pelas equipes dos CAPS (tanto i quando ad) na construção de uma oferta voltada para o público em questão, bem como as de acesso aos serviços por parte dos adolescentes, a pesquisa foi realizada e o presente texto escrito com o intuito de mapear os impedimentos para a efetivação do cuidado. Sem fortalecer a atenção no território, voltamos a um período anterior à Lei Paulo Delgado e ao ECA, onde o destino dos jovens em sofrimento psíquico, sobretudo, os mais pobres, era a institucionalização em suas mais diversas formas.
Metodologia
A presente artigo é de caráter exploratório-descritivo com abordagem qualitativa e envolveu os trabalhadores dos CAPS ad das regionais III e VI e da Sociedade de Assistência e Proteção à Infância de Fortaleza (SOPAI). O propósito foi compreender os principais obstáculos e dificuldades no acesso e no tratamento dos jovens que fazem uso de substâncias psicoativas no CAPS ad e por quais vias a lacuna assistencial assim criada reverbera nas internações que acontecem na SOPAI.
A escolha dos CAPS das regionais III e VI se deu pelo fato de que são as únicas da cidade a possuir simultaneamente CAPSad e CAPSi, atrelado à relação já estabelecida entre a regional III e a Universidade Federal do Ceará, por meio de estágios e práticas. A ideia original foi trabalhar com a equipe técnica tanto dos CAPSad quanto dos CAPSi atuantes no mesmo território. No entanto, o objetivo geral do estudo precisou ser readaptado pela impossibilidade de trabalhar com os CAPSis das regionais pretendidas. O CAPSi da regional III nos apresentou seus dados, agregados no sistema disponibilizado pela prefeitura e, no último ano não havia nenhum atendimento de criança e/ou adolescente com questões referentes ao uso abusivo de substâncias. Tal informação se configura como um dado importante. Com o outro CAPSi localizado na regional VI, não foi possível estabelecer uma parceria para o estudo. Diante dessa limitação, agregamos ao estudo a SOPAI, única instituição que recebe crianças e adolescentes na cidade para internação psiquiátrica por sua presença marcante no discurso dos profissionais dos CAPS ad.
A produção de dados combinou rodas de conversa e realização de entrevistas. Em Fortaleza, tivemos duas rodas de conversa virtuais, em função da dificuldade de deslocamento dos profissionais para um mesmo serviço a fim de realizarmos um encontro presencial. Os profissionais consentiram com a gravação das rodas, o que tornou possível posteriormente a transcrição do conteúdo. É importante ressaltar que as rodas de conversa tinham a finalidade de estabelecer um contato inicial com os profissionais, bem como mapear as principais problemáticas trazidas por eles.
A primeira roda aconteceu no dia 03 de setembro de 2021 e contou com a participação de quatro profissionais (2 do CAPS AD da regional III, 1 do SOPAI e 1 do Hospital Infantil Albert Sabin), tendo uma duração de uma hora e vinte e cinco minutos, sendo mediada pela segunda autora do artigo. A segunda roda ocorreu no dia 24 de setembro de 2021 e teve a presença de seis profissionais (1 do CAPS Infantil da regional VI, 1 do SOPAI, 1 da Unidade de Acolhimento Infantojuvenil, 1 do Hospital Infantil Albert Sabin e 1 do Núcleo de Atenção à Infância e Adolescência), durante uma hora e quarenta e cinco minutos. A mediação ficou a cargo de uma mestranda, aluna da terceira autora do artigo. Não foi necessário treinamento prévio, posto que as mediadoras eram pesquisadoras com experiência anterior na condução de rodas de conversa para pesquisa.
Em um segundo momento, foram realizadas visitas aos campos, a fim de estabelecer uma rede de contato para possíveis entrevistados. Apenas uma profissional colocou empecilhos para a sua participação na pesquisa. Por fim, nos meses de abril e maio de 2022, foram realizadas entrevistas semiestruturadas online e presenciais com 10 profissionais de nível superior dos serviços supracitados: três psicólogos, um psiquiatra, dois assistentes sociais, um massoterapeuta, um terapeuta ocupacional, um farmacêutico e um técnico de enfermagem. Os critérios para a inclusão na pesquisa eram a atuação como profissional da saúde nos CAPSad e a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. A determinação se a entrevista seria presencial ou online era uma escolha do entrevistado de acordo com sua agenda e de como se sentia mais confortável. As entrevistas variaram entre uma hora e uma hora e meia e foram conduzidas pela professora orientadora do trabalho, segunda autora do artigo, com a participação da primeira autora do artigo. Todos os trechos de falas de profissionais discutidos neste artigo são retirados das entrevistas.
Para a análise do material, as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e categorizadas. Dividiu-se em macro e microcategorias, as quais foram elaboradas com base nos objetivos específicos da pesquisa e a partir do que surgiu do campo. Para fins deste artigo, trabalhamos com os seguintes eixos para nortear a discussão: dificuldades na assistência aos adolescentes em uso abusivo de substâncias e a internação como principal alternativa.
A pesquisa seguiu a resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, no qual os aspectos principais da pesquisa estavam apresentados e os contatos dos pesquisadores registrados. Estava, no documento, garantido, o sigilo do nome dos entrevistados, o que foi respeitado, como poderá ser observado nos resultados e discussão a seguir. O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, sob o número 4.505.906. Após o término da pesquisa, os pesquisadores realizaram uma devolutiva aos serviços que contribuíram no estudo. Atualmente, a segunda autora está construindo com o CAPS ad da regional VI estratégias para fortalecer o acolhimento e acompanhamento de adolescentes no serviço e no território, como desdobramento da pesquisa realizada.
Resultados e Discussão
As Barreiras no Acesso dos Adolescentes Usuários de SPAs aos CAPS
Apesar do tratamento dos adolescentes usuários de substâncias ter sido atribuído aos CAPSi, através da portaria que criou a RAPS em 2011, e da distribuição da assistência entre CAPSi e CAPSad em Fortaleza, através da Nota Técnica de 2019, esse público continua a não chegar nos serviços que se destinam a eles.
Dentre os fatores em comum apontados pelos profissionais como as principais fragilidades no atendimento aos jovens que fazem uso abusivo de substâncias nos CAPSad, tem-se que o espaço é pouco atrativo, sem uma diversidade de atividades lúdicas e grupos terapêuticos com uma oferta condizente com as questões e interesses apresentados pelos adolescentes. A falta de organização do serviço para atender esse público representa uma contradição na saúde pública, considerando que esse é o período no qual o uso se torna problemático (Raupp, & Milnitski-Sapiro, 2009). Para os adolescentes, o uso de substâncias é experimentado mais como solução do que como um problema. É na vida adulta, com as perdas materiais, familiares e sociais que comumente se inicia a busca por ajuda.
Contudo, antes da pandemia de Covid-19, o CAPSad da regional VI contava com uma rica diversidade de programas desenvolvidos na perspectiva de um trabalho intersetorial: os ensaios do bloco de carnaval Doido É Tu, disputa de jogos entre pacientes de diferentes CAPS (InterCaps), visitas a equipamentos culturais e grupos que inseriram, no cotidiano, outras formas de prazeres, sem recorrer ao uso de substâncias. No ano de 2021, contava apenas com um grupo que acolhia adolescentes, o Batuqueiros, e voltava-se a pessoas que estavam, geralmente, em processo de alta do CAPS. Já no CAPSad III, diversas atividades semanais eram realizadas e os usuários desse serviço também integravam o bloco Doido É Tu, além de outras atividades territoriais, como os trabalhos de redução de danos em uma “areninhaii” (espaço aberto do município para realização de esportes com jovens). Fora essa atividade não havia outra oferta voltada para os adolescentes. Houve uma tentativa de parceria com escolas, mas os técnicos foram alertados que esse trabalho deveria ficar a cargo da atenção básica. De qualquer sorte, os adolescentes não chegavam ao serviço.
Apesar da intencionalidade dos profissionais de estruturar e fortalecer uma rede de assistência centrada na comunidade e na intersetorialidade, as gestões não têm se mostrado favoráveis e facilitadoras, colocando empecilhos, como burocracias que dificultam as saídas, além da não disponibilização de veículos. Além disso, se julga que a determinação de diálogos intersetoriais não é uma responsabilidade dos CAPS, mas da Atenção Primária.
A equipe não tem autonomia de ir pro território, 'vamos na escola ali, porque tá tendo muito caso de automutilação’[...]. E aí a gente não tem muita autonomia, porque meio que dizem que isso é da atenção primária e aí o nosso caps tá muito ambulatorial. (E1, psicóloga)
Além da dificuldade de vinculação do serviço de saúde com os jovens, também existem entraves na transição entre territórios faccionados que impactam na chegada desses indivíduos nesses equipamentos. Isso foi atestado pela mudança do perfil de atendimento do CAPSad VI quando este mudou a sua localização há alguns anos – passou-se a atender uma quantidade menor de adolescentes após adentrar em um território pertencente a outra facção. Nesses casos, é importante propiciar atividades atrativas e que possam ser realizadas nos diversos territórios para aqueles que não podem chegar ao serviço por conta das divisões territoriais derivadas da dinâmica do narcotráfico, a fim de fomentar o estabelecimento de vínculos e a aproximação das equipes com as juventudes em seus respectivos territórios, a partir do desenvolvimento de ações de cuidado clínico ampliado.
É fundamental para o desenvolvimento do sistema de saúde que haja uma articulação dos CAPS com espaços fundamentais para um trabalho territorial (as escolas, os centros culturais, os coletivos juvenis e as “areninhas”) a fim de uma maior aproximação com os adolescentes, antes mesmo que o uso de substâncias adquira uma dimensão maior em suas vidas. Entretanto, percebeu-se por meio das entrevistas uma dificuldade para articulações territoriais e intersetoriais acontecerem efetivamente, o que dificulta um cuidado eficaz, sobretudo nos casos mais complexos do ponto de vista dos processos de constituição psíquica e de vulnerabilidade social, fatores que intensificam a lacuna que alimenta as internações. Ademais, a pouca conectividade da rede diminui sua capacidade em produzir autonomia em profissionais e adolescentes (Rotelli et al., 1990 como citado em Alencar, Silva & Avarca, 2020).
Mas aí eu sinto que principalmente depois da pandemia, a gente foi se fechando, fechando, fechando e é um ambulatório, praticamente, o CAPS, a verdade é essa. (E1, psicóloga)
De modo geral, o atendimento nos CAPSad é centrado no paradigma de uma psiquiatria medicalizante, limitando as possibilidades de intervenção desses serviços e reproduzindo um modelo manicomial de atenção, o qual se almeja superar. A existência do trabalho ambulatorial não se constitui em si como um problema, visto que se trata de um dispositivo que pode ser considerado potente e alternativo à institucionalização, especialmente se mantido sua relação com o território. Dentre as implicações da centralização do tratamento no poder médico, um profissional alega que
Certo desde o início era para o CAPS referenciar, [...] o CAPS pode fazer isso, o caps faz sempre? Não, porque, para eu regular, eu tenho que ter um médico, eu mesma não posso falar do meu computador, regular, então quem faz a regulação é o médico, nem sempre tem médico no CAPS, ele não tá lá 24 horas. Então, o paciente começou a fazer o quê? Ir para a emergência do hospital mental de Messejana, porque ela é 24 horas. (E10, psicóloga)
Ademais, na regional III, nem todos os profissionais estão preparados e disponíveis para atender esse público e, sendo assim, geralmente se escolhe alguém na equipe que se dispõe a ser uma figura de referência para o acompanhamento dessa demanda específica.
Geralmente, tinha, assim, médico de referência, aquele médico de referência para atender esse público, médico que tinha mais, assim, expertise com essa... com a população e também, é..., a gente também tinha o psicólogo que... “ah, eu gosto mais de trabalhar com adolescente”, mas isso foi de forma natural, né. (E3, assistente social)
Os trabalhadores também demonstraram um receio quanto à convivência entre adolescentes e adultos em tratamento por abuso de SPAs no CAPSad, uma vez que os jovens poderiam ser influenciados negativamente. Havia também uma preocupação quanto ao convívio no CAPSi entre adolescentes que fazem uso de SPAs e o público infantojuvenil acometido por psicopatologias.
Apesar da importância da Redução de Danos (RD) no cuidado ao usuário de SPAs na perspectiva da atenção psicossocial, essa estratégia é percebida de maneira controversa quando opera em relação ao público infantojuvenil, visto que há a crença comum de que existiria uma incitação ao uso de substâncias. Ao contrário disso, a articulação da redução de danos com as ideias de atenção integral é um instrumento de ampliação de acesso ao cuidado e se alinha com as possibilidades e com o desejo do paciente, em um dado momento (Brasil, 2014).
Essa estratégia é ainda mais importante na assistência ao público juvenil, uma vez que esse grupo dificilmente se liga a serviços de cuidados contínuos. Por meio da redução de danos, é possível ofertar uma assistência adaptada, priorizando o respeito às singularidades. Ademais, a RD pode ser levada a diversos equipamentos territoriais, constituindo a base para uma primeira aproximação com os adolescentes. A Redução de Danos propõe uma maior autonomia para o usuário, através da negociação de regras facultativas de cuidados. Desta forma, essas práticas podem se constituir ainda como um mecanismo facilitador de construção de vínculos, os quais são essenciais para o cuidado.
Cabe aos operadores da saúde mental que se ocupam de adolescentes oferecer um cuidado atento às singularidades, deslocando o foco do cuidado para contextos e sujeitos, e não à droga em si. Assim, recupera-se a autonomia, autoestima, cidadania e qualidade de vida dos usuários (Alencar et al., 2020). Contudo, falar e pautar um cuidado com base nessa perspectiva contra-hegemônica ainda se configura como um desafio nos CAPS.
Não se sabe ao certo se podemos avançar ou não na perspectiva da redução de danos com adolescentes da forma legal, né? Paralelamente, a gente sabe que existem várias estratégias, mas do ponto de vista legal ainda é extremamente complexo falar sobre isso. (E2, assistente social)
A falta de informação sobre os perfis e funções de cada serviço também é considerado um fator relevante para a chegada ou não desses jovens. Historicamente, o CAPSi foi reconhecido pelo atendimento de crianças e adolescentes. Com a Nota Informativa nº 001/2021, o cuidado de adolescentes que fazem uso abusivo de SPA’s acima de 16 anos passa a ser no CAPSad, no entanto isso precisa ser divulgado em espaços comunitários e escolas para que esse conhecimento seja de domínio público e, portanto, que o acesso ao serviço seja facilitado. Como entrave a esse processo, tem-se que o diálogo dos CAPS com os setores comunitários encontra-se fragilizado, com poucas iniciativas de territorialização. A ausência de um trabalho conjunto com a atenção básica revela-se como outro problema.
Os profissionais também consideram que o uso de substâncias desponta mais como solução (quando se faz um uso “medicinal”, por exemplo, para aplacar a ansiedade e driblar a timidez), portanto a busca por tratamento não faria sentido. Além disso, os adolescentes faccionados tendem a procurar menos ajuda em caso de abuso de substâncias, tendo em vista que o uso faz parte do cotidiano das facções.
Hoje em dia, nas comunidades tem meio que uma coerção, um aliciamento muito cedo dos adolescentes por essas facções. [...] E aí, uma vez que eles estão batizados, tem uma série de comportamentos lá dentro que são normalizados: o uso abusivo de qualquer substância, que tá meio misturado com o tráfico, misturado com comportamentos violentos, enfim… (E1, psicóloga)
Os profissionais atribuem o uso abusivo a uma história de sofrimento transgeracional, a falta de perspectivas de escolarização e trabalho, a uma história de vida marcada pelo abandono e pela falta de oportunidades, a falta de diálogo com as famílias e as escolas, a falta de informação sobre os efeitos adversos das substâncias e a fatores genéticos e ambientais. No que tange aos fatores que protegem do uso abusivo, indicaram o suporte social e familiar, a espiritualidade, o suporte dos CAPS e o fortalecimento de habilidades pessoais. Conforme (Alencar et al., 2020):
A droga não é o elemento central na configuração das necessidades de atenção que se apresentam. Pelo contrário, são múltiplas as vulnerabilidades que produzem a chegada de adolescentes aos serviços. Experiências de abandono ou de precarização dos laços familiares, pobreza, situação de rua [...] e violência e/ou exploração sexual [...] são fatos que agudizam a fragilidade de suas redes. (p. 84)
Sinaliza-se que a precariedade do cuidado em saúde mental com a população que utiliza o sistema público de saúde, bem como as dificuldades de articulação
intersetorial, começam já na assistência à infância onde testemunha-se também um grave aumento da patologização diagnóstica e medicalização do sofrimento.
Internação como a principal alternativa
A história da oferta dos serviços dos CAPSad nos mostra que, antes da Nota Informativa nº 001/2021, os adolescentes em uso abusivo de SPAs raramente chegavam aos CAPS e, quando chegavam, eram encaminhados aos CAPSad. A Nota surge no segundo semestre de 2021 e é repassada aos profissionais por meio do WhatsApp, sem interlocuções com os CAPSi, sensibilizações e ações de educação permanente voltadas para o atendimento dessa nova demanda. Após esse marco, esse público permanece sem acessar nem os CAPSi, nem os CAPSad, entretanto continua a chegar no SOPAI, além de ocupar os cinco leitos financiados pelo Estado para internação de adolescentes em uma Comunidade terapêutica.
Entre os anos de 2017 e 2021, foram registradas 2443 internações de crianças e adolescentes entre 2 e 18 anos relacionadas a transtornos mentais, no Ceará. Dentre elas, a maior causa precipitantes de internações psiquiátricas está relacionada ao abuso de substâncias psicoativas (25,7%), apesar da subnotificação de dados, sobretudo em decorrência da invisibilidade das internações ocorridas em Comunidades Terapêuticas, uma vez que há uma falta de controle dessas instituições e de registro das informações, o que indica que esse número pode ser ainda maior (Martins, Lima, Costa & Viana, 2023).
Isso evidencia a preponderância das internações no tratamento desses jovens e os dados indicam que essa escolha não está necessariamente atrelada a uma indicação e avaliação clínica. Os profissionais relataram que, muitas vezes, a vulnerabilidade social e o risco de vida, estão por trás dos pedidos de internação. Na tentativa de adquirir alguma forma de proteção social, muitos jovens recorrem a clínicas privadas e comunidades terapêuticas, as quais frequentemente violam os direitos das crianças e dos adolescentes, distanciando-os ainda mais de uma rede de cuidados e apoio. Conforme foi relatado pelo quinto entrevistado:
A gente tem uma demanda para comunidade terapêutica que é inversamente proporcional à demanda de jovens para tratamento no serviço. Então, a maioria dos jovens que a gente recebe, a gente tá encaminhando para CT porque a gente tem acesso, aquele acesso pelo Estado, por algumas comunidades que são financiadas pelo Estado. Então, eles acabam chegando aqui já com a instituição na cabeça: ó, eu quero ir pra comunidade terapêutica. Às vezes, já vem com o nome dela: O pastor mandou eu vir aqui só pra buscar o encaminhamento pra voltar pra lá. (E5, farmacêutico)
Sob essa ótica, adolescentes submetidos às internações compulsórias também vivenciam essas violações, evidenciando que especialmente a intervenção do judiciário no SUS acaba atuando como forma de controle, punição e aumento da vulnerabilidade social dos adolescentes, os quais afirmam proteger (Reis, Guareschi & Carvalho, 2014). Como alertam as autoras
diante de um quadro de desequilíbrio entre os fatores que constituem a saúde da população infanto-juvenil, tal situação pode caracterizar risco pessoal e/ou social, para o qual o ECA, art. 98, prevê a utilização de medidas protetivas. [...] O uso abusivo de drogas por crianças e adolescentes vem sendo compreendido dentro dessa perspectiva como um comportamento que os coloca em situação de risco pessoal e social. (Reis et al., 2014, p. 69).
No caso de jovens em conflito com a lei, a ordem judicial opera de forma dúbia, dado que ao mesmo tempo que funciona como uma estratégia de acesso para os adolescentes aos serviços de saúde, muitas vezes opera como mecanismo de punição e de exclusão e imposição de disciplina. Desse modo, esse modelo da internação compulsória determina o atendimento de saúde como um dever e não como um direito (Vicentin, Gramkow & Matsumoto, 2010).
O crescente processo de judicialização do cuidado pode ser constatado por meio das entrevistas, nas quais os profissionais relataram que há muitas demandas de internação compulsória no SOPAI. Quando a internação é vista como a única opção possível para um problema multifacetado, há uma manutenção da lógica normalizadora, pautada no imperativo da abstinência, e uma invisibilização das facetas que circundam o uso abusivo, dentre eles, os problemas sociais. Ela se configura como um local de destino e manutenção dessa adolescência que escapa a essa ordem normalizadora (Reis et al., 2014). Os pacientes que chegam por determinação judicial ficam à mercê da justiça quanto ao tempo de internação e encaminhamentos. É recomendável que os pacientes não ultrapassem 30 dias de internação, mas, com a espera dos mandos judiciais, há casos de adolescentes que ultrapassam o tempo previsto e nem sempre por motivos clínicos. A proteção social novamente se torna um argumento para extensão da internação.
As internações são, muitas vezes, desarticuladas de uma rede de apoio e operam de maneira ineficaz, uma vez que, após a internação, o indivíduo volta para o mesmo contexto territorial do qual foi retirado. A recaída ao uso de drogas é ainda colocada como um fracasso pessoal no tratamento, culpabilizando o indivíduo (Reis et al., 2014). Acresça-se ainda que internações psiquiátricas na adolescência produzem identificações com os lugares de “viciado”, “adicto”, portador de uma doença incurável e de uma grave “falha moral”. Outro aspecto a ser destacado é a minimização do sofrimento psíquico, tanto no que diz respeito aos adolescentes quanto às suas famílias. As dinâmicas clínicas e psicossociais, vistas aqui como indissociáveis, são reduzidas à normalização, enquanto os projetos terapêuticos singulares são abolidos pela universalização do cuidado. Assim,
Enquanto medida protetiva, a internação psiquiátrica não assegura o bom desenvolvimento físico e mental desses adolescentes, nem o bom funcionamento familiar, a inserção escolar, a possibilidade de participação social ou a abertura de um campo profissional. Por outro lado, como mecanismo privilegiado de exercício de um poder de normalização, ela se constitui como lugar de destino e de manutenção desta “adolescência drogadita”, forjando a existência e naturalização dessa ordem social e a estabilidade de um sistema de Governo. (Reis et al., 2014, p. 70)
O SOPAI tem sido referenciado pelo Hospital de Messejanaiii, pelos CAPS e pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). A internação no SOPAI acontece em uma ala psiquiátrica, portanto, está no hospital pediátrico, mas, ao mesmo tempo, em um espaço isolado. As principais demandas dos jovens que fazem uso abusivo de SPAs são as crises de abstinência e a necessidade de desintoxicação, relacionadas ao uso de cocaína, crack e álcool. Nesses casos, os adolescentes acessam o serviço em situações de crise e, diante disso, os profissionais recorrem geralmente à medicalização e à internação hospitalar.
Na internação, é traçado o Plano Terapêutico Individual, com a delimitação dos atendimentos individuais, em grupo e o plano pós-internação. A família é atendida, nas modalidades individual e grupal, além do acompanhamento com o serviço social. A convivência entre adolescentes faccionados durante a internação é foco de tensões, além das preocupações dos profissionais acerca da possibilidade de invasão da unidade de saúde por facções para resgate dos seus membros. Em decorrência do cenário pandêmico, houve a redução de espaços para atividades coletivas e de atendimento individual. Com isso, o espaço ficou sem a sala de psicologia, uma sala de enfermaria e a sala de grupos, dificultando a assistência e o trabalho dirigido à singularização do sofrimento psíquico.
Outra questão importante diz respeito às internações compulsórias, ou seja, as que acontecem por determinação judicial, geradoras de tensionamentos entre a equipe e a justiça. Os tensionamentos acontecem porque a deliberação pela internação nem sempre dialoga com a saúde. Na realidade, os critérios podem ser outros e, mais uma vez, acontecem internações psiquiátricas onde a resposta deveria ser a proteção social para adolescentes cuja vida se encontra em risco. Acontece ainda de o tempo de internação ser prolongado por decisão judicial, não obstante a posição da equipe seja de uma alta clínica.
Outro desafio apontado pelos profissionais dos CAPS se refere à busca ativa dos adolescentes que chegaram ao SOPAI a partir da referenciação dos Centros de Atenção Psicossocial e que receberam alta hospitalar. Como afirma um técnico:
A maioria desses jovens adolescentes e crianças não queriam ser encontrados porque a maioria são envolvidos com facção. [...] A maioria, quando a gente ia procurar, já não tava naquela área, já não podia mais entrar naquela área. [...] Quando a gente percebia que era uma coisa mais leve, a gente tentava buscar outras alternativas, mas quando a gente via que era algo que eles chegavam com uma demanda, “olha, tia, não posso ficar aqui, estou ameaçado e aqui é território X e sou do Y, então não posso”. Então, o médico atendia fazendo aquele processo de medicalização mesmo, infelizmente. (E3, assistente social)
Como podemos concluir, a indicação da medicação não está referida a uma diagnóstica clínica, mas à impossibilidade de realizar a proteção social do jovem em seu território.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na busca pela compreensão da percepção dos profissionais dos CAPSad das regionais III e VI e do SOPAI sobre o atendimento dos jovens em uso problemático de substâncias psicoativas após a Nota Informativa nº 001/2021, o estudo demonstrou que, com a falta de preparação dos serviços para atender adolescentes, a internação continua sendo a principal alternativa na procura desses jovens e suas famílias. Entretanto, muitas vezes essas internações ocorrem sem indicação clínica e a busca é motivada por questões que envolvem a vulnerabilidade social e o risco de vida.
Evidencia-se, pela contraposição entre a pouca demanda de jovens que fazem uso abusivo de drogas nos CAPS e a enorme demanda no SOPAI – unidade de internação – como o limbo assistencial vivenciado por esses indivíduos fortalece o modelo psiquiátrico clássico, pautado na prescrição medicamentosa, centrado na figura do médico, e em uma perspectiva limitada ao diagnóstico psiquiátrico. Esse modelo promove a multiplicação de internações, as quais, muitas vezes, mesmo quando atreladas a uma indicação clínica, operam de maneira ineficaz, visto que, principalmente quando trabalham de forma desarticulada de uma rede de apoio comunitário e territorial, é comum que os indivíduos retomem o uso de substâncias psicoativas após a internação.
Assim, a partir das entrevistas com os trabalhadores constatou-se que os jovens não chegam aos CAPS devido a um espaço pouco atrativo, sem oficinas e grupos terapêuticos pensados para atender essa demanda; falta de preparo e manejo dos profissionais para lidar com esses jovens; dificuldades de trânsito dos adolescentes pelos territórios faccionados; falta de apoio das gestões para o estabelecimento de articulações intersetoriais; medicalização do cuidado; falta de informações dos jovens sobre as funções de cada serviço; dificuldade para operar a partir da perspectiva da Redução de Danos, a qual não segue o imperativo da abstinência, favorecendo a autonomia do indivíduo. Desse modo, há uma reprodução do modelo hospitalocêntrico de atenção e uma perspectiva adultocêntrica, dificultando as possibilidades do adolescente se sentir protagonista e corresponsável pelo seu cuidado. Silva et al. (2021) alegam que dispositivos como esses
devem fazer uso deliberado e eficaz dos conceitos de território e rede, bem como da lógica ampliada de redução de danos, por meio da realização de uma procura ativa e sistemática das necessidades a serem atendidas, de forma integral ao meio cultural e à comunidade em que estão inseridos, e de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica. (p. 3)
Frente a isso, os entrevistados dos CAPSad responderam que dentre os principais desafios e dificuldades estão a falta de apoio da gestão para a realização de atividades intersetoriais; a necessidade de formação específica para os profissionais que irão atender adolescentes; falta de propostas atrativas para os jovens no serviço; falta de diálogo entre setores da saúde; estrutura física descuidada e sem espaço para realizar práticas integrativas; o acesso de jovens que são faccionados; inefetiva comunicação dos órgãos gestores municipais no esclarecimento das funções de cada serviço para a população. Já os profissionais do SOPAI indicam que existem grandes filas de espera; adolescentes desacompanhados dificultam o tratamento, e isso pode ocorrer também por mando judicial; tratamento centralizado na figura do médico e na medicação; perda de alguns espaços após a pandemia.
Sugerimos a realização de pesquisas-intervenções que possam ser úteis no fortalecimento das equipes, na direção de construir, com os profissionais, caminhos e dispositivos para fazer acontecer o cuidado aos adolescentes em uso abusivo, bem como realizar atividades de promoção de saúde, a fim de evitar a transformação de um uso ocasional em uma questão de saúde que requeira atenção especializada. Na direção da promoção da saúde, é preciso estar no território produzindo com adolescentes o desejo de viver e as articulações solidárias para resistir e transformar os contextos produtores de adoecimento, ou mesmo, as violações de direitos às quais estão na base do sofrimento psíquico de muitos jovens periferizados.
O presente ensaio teórico não pretende esgotar o assunto, mas contribuir para uma maior discussão sobre essas temáticas na política e nas práticas de gestão dos equipamentos de saúde mental, bem como trazer benefícios para o funcionamento das instituições que fizeram parte da pesquisa, ressignificando as práticas assistenciais e possibilitando reflexões aos envolvidos no cuidado aos adolescentes. Por fim, espera-se que outros estudos sejam desenvolvidos para dar uma maior visibilidade a essa lacuna assistencial e que possam ir além e fazer uma articulação com os CAPS infantojuvenil, assim como realizar uma escuta dos adolescentes e seus familiares, fatores que foram as principais limitações deste estudo.
Referências
Alencar, R., Silva, R. E., & Avarca, C. A. C. (2020). Drogas e Autonomia: intersecções entre clínica e políticas públicas (1ª Ed.). São Paulo: Benjamin Editorial.
Almeida, M. M. (2010). A adesão de adolescentes ao tratamento para uso de álcool e outras drogas: um bicho de sete cabeças?. [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo].
Braga, C. P., & d’Oliveira, A. F. P. L.. (2022). Motivos e mecanismos de internação de crianças e adolescentes em hospital psiquiátrico: o circuito do controle. Cadernos De Saúde Pública, 38(5). Recuperado de: https://doi.org/10.1590/0102-311XPT170821
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará. (2021). A política de saúde mental para crianças e adolescentes em Fortaleza [versão eletrônica].
Galhardi, C. C., & Matsukura, T. S. (2018). O cotidiano de adolescentes em um Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas: realidades e desafios. Cadernos de Saúde Pública, 34(3).
Goncalves, J. R. L., Canassa, L. W., Cruz, L. C., Pereira, A. R., Santos, D. M., & Gonçalves, A. R. (2019). Adesão ao tratamento: percepção de adolescentes dependentes químicos. SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogas, 15(1), 57-83.
Jorge, M. S. B.; Roseni, P.; Mota, C. S. & Mota, A. A. (orgs.). (2015). Contextos, parcerias e itinerários na produção do cuidado integral: diversidade e interseções (1ª Ed.). Rio de Janeiro. CEPESC/ABRASCO.
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Recuperado de: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. Recuperado de: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.html
Martins, K. P. H., Lima, G. D. S. L., Costa, M. C. L., Viana, B. A. (2023). Saúde mental da criança e do adolescente em contextos institucionais públicos. In Martins, K. P. H., Jucá, V. J. S., Viana, B. A., Souza, R. B., & Junior, R. P. M. (orgs.), Análise do dimensionamento das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no Ceará de 2017 a 2021 (p. 117-137). Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.
Nunes, J. M. S., Guimarães, J. M. X., & Sampaio, J. J. C. (2016). A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 26(4), 1213–1232.
Paim, B. R., Porta, D. D., Sarzi, D. M., Cardinal, M. F., Siqueira, D. F., Mello, A. L. & Terra, M. G. (2017). Atendimento ao adolescente usuário de substâncias psicoativas: papel do centro de atenção psicossocial. Cogit. Enferm., 22(1), 1-7.
Pereira, N. A., Silva, M. L. da, & Matsukura, T. S. (2023). Adolescentes usuários de substâncias psicoativas: experiências e desafios durante a internação psiquiátrica. Cadernos Brasileiros De Terapia Ocupacional, 31, Recuperado de: https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO261434121
Portaria n. 336 de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. Recuperado de: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html.
Portaria nº 1.608, de 03 de agosto de 2004. Constitui Fórum Nacional sobre Saúde Mental de Crianças e Adolescentes. Diário Oficial da União. Recuperado de: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2004/prt1608_03_08_2004.html.
Reis, C. dos, Guareschi, N. M. de F., & Carvalho, S. de. (2014). Sobre jovens drogaditos: as histórias de ninguém. Psicologia & Sociedade, 26, p. 68-78.
Ribeiro, J. P., Gomes, G. C., Santos, E. O. dos, & Pinho, L. B. (2019). Specificities of care to the adolescent crack user assisted in the psychosocial care network. Escola Anna Nery, 23(2).
Raupp, L., & Milnitsky-Sapiro, C. (2009). Adolescência, drogadição e políticas públicas: recortes no contemporâneo. Estudos De Psicologia, 26(4), 445-454.
Rizzini, I., & Rizzini, I. (2004). A institucionalização de crianças no Brasil: Percurso histórico e desafios do presente. Loyola.
Silva, M. G. B. (2015). Produção de cuidados à juventude em CAPS AD. (Dissertação). Universidade de São Paulo.
Vechiatto, L., & Alves, A. M. P. (2019). A saúde mental infanto-juvenil e o Caps-I: uma revisão integrativa. Emancipação, 19(1), p. 1–17. https://doi.org/10.5212/Emancipacao.v.19.0003
Vicentin, M. C. G., Gramkow, G., & Matsumoto, A. E. (2010). Patologização da adolescência e alianças psi-jurídicas: algumas considerações sobre a internação psiquiátrica involuntária. Bol. Inst. Saúde, 12(3), p. 268-272.
Financiamento
Agradecemos à Universidade Federal do Ceará pela bolsa PIBIC, apoio fundamental na realização da pesquisa relatada no presente artigo.
A regionalização de Fortaleza se refere aos distritos sanitários da cidade e objetiva diminuir as diferenças entre as regiões, garantindo uma maior autonomia administrativa às Secretarias Regionais. Em 31 de dezembro de 2020, por meio do Decreto nº 14.899, o então prefeito Roberto Cláudio publicou a nova regulamentação da estrutura administrativa e do processo de transição para doze regionais e 39 territórios administrativos.
De acordo com a Secretaria do Esporte do Governo do Estado do Ceará, as Areninhas são equipamentos multifuncionais em formato de campos de jogos de futebol, sendo uma referência de uma política social que tem transformado a vida de pessoas que moram em comunidades.
Hospital psiquiátrico que atendia crianças e adolescentes, mas atualmente faz apenas o acolhimento para, em seguida, redirecionar para outro equipamento.