Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024001.2 jan./dez. 2024

DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.2

 

 

RECEBIDO EM: 31/07/2023

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 26/12/2023

VERSÃO FINAL: 07/01/2024

APROVADO EM: 12/01/2024

 

 

The Caretaker: Cartografia de Afetos no Estado Demencial

The Caretaker: Cartography of Affections in the Demented State

 

 

Ana Rita Queiroz Ferraz

Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil. Psicóloga. Doutora em Educação e Contemporaneidade. E-mail: aritaferraz@uefs.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9781-0170

 

 

Iuri Cerqueira Moldes Morais

Pós graduando na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Psicólogo. Músico. E-mail: iurimoldes@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-5685-7072

 

 

Resumo

Em virtude do aumento de casos de Alzheimer e de Demência, no Brasil e no mundo, a fim de produzir pistas para compreensão de um estado demencial associado à memória e ao esquecimento no Alzheimer, esta pesquisa debruçou-se sobre a obra de “The Caretaker”, projeto artístico-musical de Leyland James Kirby. “Everywhere at the End of Time” é uma coletânea dividida em seis álbuns musicais, narrativamente denominados de estágios, com aproximadamente seis horas e meia de duração. Foram realizadas pesquisas sobre o autor, a composição da obra e sua recepção em variados contextos, além da imersão na música, como condições para traçar uma cartografia do que se denominou estado demencial. O diálogo com autores como Deleuze e Guattari possibilitou apurar a escuta da obra, bem como a escrita desse ensaio. Não há conclusões definitivas, mas aberturas para novas pesquisas que relacionam música, memória e esquecimento, como pistas para compreensão de experiências demenciais.

 

Palavras-chave: Alzheimer; estado demencial; cartografia; música.

 

 

Abstract

Due to the increasing cases of Alzheimer's and Dementia in Brazil and worldwide, in order to provide insights into the understanding of a demented state associated with memory and forgetfulness in Alzheimer's disease, this research focused on the work of "The Caretaker," an artistic-musical project by Leyland James Kirby. "Everywhere at the End of Time" is a compilation divided into six albums, narratively referred to as stages, with approximately six and a half hours of duration. Research was conducted on the author, the composition of the work, and its reception in various contexts, along with immersing in the music, as prerequisites for mapping what was termed the demented state. Engaging with authors such as Deleuze and Guattari facilitated a deeper listening to the work, as well as the writing of this essay. There are no definitive conclusions, but rather openings for further research that explores the relationships between music, memory, and forgetfulness as clues to understanding demented experiences.

 

Keywords: Alzheimer; demented state; cartography; music.

 

 

 

 

Como primeiro passo é importante dar notas da estrutura que guiará a entrada na composição musical “Everywhere at the End of Time” de “The Caretaker”, persona artística de Leyland James Kirby. Destacamos que por se tratar de um ensaio, não há compromisso com uma linearidade prescritiva e, na contramão da narrativa dividida em estágios, proposta pelo artista, o texto segue um fluxo sem demarcações. É importante destacar que, na obra, cada um dos álbuns musicais corresponde a um Estágio definido na Classificação Internacional de Doenças (Brasil, 2021 - CID-10), como condição que caracteriza o desenvolvimento do Alzheimer (G30), cuja etiologia é ainda desconhecida e o diagnóstico muitas vezes confundido com formas senis e pré-senis: Degeneração Cerebral Senil NCOP (G31.1), Demência Senil SOE (F03) e Senilidade SOE (R54) - todos com curso lento e progressivo. O CID 11, que vem sendo implementado desde 2019, quando adotado na Assembleia Mundial de Saúde, mantém o Alzheimer como “doença do sistema nervoso” ao lado de outras doenças degenerativas. Esta foi a razão pela qual utilizamos o termo demência, genericamente, para nos referirmos a condição manifesta pela deterioração cognitiva e da memória. Partimos, à vista disso, da seguinte questão: “The Caretaker” pode oferecer pistas para pensarmos os processos de memória e esquecimento em pacientes com demência?

                A coletânea de “The Caretaker” dialoga com esquecimento e filosofia numa experimentação artístico-musical única, com mais de seis horas de duração. Os álbuns são construídos a partir de uma experiência demencial, porém a ideia não é apenas representar a vida de um indivíduo com demência, mas sim produzir demência em todo o projeto de gravação. Através da música e dos sons, o artista se debruça sobre o tema, não como uma representação, mas como uma experimentação, convidando ouvintes a se implicarem na obra.

  Nesse projeto, o músico confere uma forma narrativa aos estágios que um paciente com demência passa durante o avanço dessa condição. E ainda que seja paradoxal a busca de uma forma narrativa, e apesar dos estágios tratarem de momentos de uma representação clínica, partimos do pressuposto de que mesmo assim a obra não pode ser vista como representativa da demência. Assim, pois, esta escrita é uma experimentação e uma composição que apenas de longe se assemelha à proposta de “The Caretaker”, na medida em que segue regramentos do texto acadêmico; e, também, propõe o diálogo tenso entre ciência e arte, compreendendo que esses campos abordam dimensões distintas e autônomas: enquanto a primeira dedica-se à produção de funções e proposições, a segunda cria blocos de sensações (composto de afetos e perceptos), (Deleuze & Guattari, 1992).

É interessante, ainda, perceber que durante o período em que essa pesquisa foi realizada (2021), a obra continuadamente recebia mais visibilidade na internet, criando novas perspectivas e conteúdos. Encontramos reações em tempo real, vídeos nos quais as pessoas se gravaram ouvindo as mais de 6 horas de duração da coletânea, ininterruptamente. É também um material que possui pouca produção textual no Brasil, principalmente se considerarmos as produções acadêmicas. Nos levantamentos realizados, encontramos somente algumas análises de sites especializados em músicas e alguns jornais virtuais.

Parte do sucesso e do crescente interesse na obra “The Caretaker” é observável através dos vídeos viralizados na plataforma “TikTok”. O site do “The New York Times” (Marcus, 2020) fez uma entrevista com um jovem de 16 anos que se interessou pela composição porque seu avô foi diagnosticado com demência. O vídeo postado pelo jovem contabilizava mais de 340 mil visualizações no final do ano de 2020, e segundo seu relato, passar por essa experiência ajudou-o a entender a condição na qual seu avô se encontrava.

Com o exemplo desse jovem, podemos visualizar a coletânea de Leyland sob uma nova perspectiva. “The Caretaker”, que pode ser traduzido como “O Cuidador” ou “O Zelador”, possibilita-nos experienciar um lugar outro. Não é sobre saber o que o outro sente, mas se aproximar de uma outra experiência ou outro modo de produzir singularidades. Assim, pois, na tentativa de imergir no contexto de “Everywhere at the End of Time” (2019), foram acessadas todas as entrevistas e matérias encontradas sobre o artista e sua criação. Foi realizado contato com o próprio Leyland Kirby, através de e-mail, comunicando que esse trabalho seria escrito; foram-lhe pedidas, se possível fosse, mais informações. O compositor agradeceu o interesse por sua obra, mas deixou claro que já havia dito tudo sobre ela.

Para melhor situar o leitor sobre o lugar de fala dos autores, é necessário registrar que este texto foi escrito desde a experimentação das seis horas de “Everywhere at the End of Time”, por um psicólogo que é músico-compositor; e por uma professora de psicologia que criou caminhos com ele para a invenção de sentidos possíveis para a experiência.

O desafio na experimentação era não deixar que a memória se sobrepusesse e interferisse nas afetações provocadas pela escuta da música. Importante destacar que cada Estágio tem uma capa no disco de vinil, acompanhada por um pequeno texto que complementa a narrativa, ou seja, são seis álbuns musicais que constroem uma narrativa em uma ordem definida. Registre-se, ainda, as pesquisas realizadas sobre os estágios relacionados ao Alzheimer e à demência, com foco nos temas memória e esquecimento. “The Caretaker” é, todavia, o fio condutor desta escrita.

Objetivamos, pois, cartografar as forças que se efetuaram em “The Caretaker”, incluindo nela o que há de inacabamento e de invenção. Em acordo com Deleuze e Guattari (1996), trata-se de traçar um mapa que não se encontra na ordem representacional ou transcendente, mas inventiva e processual:

O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social [...]. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas. (p. 22).

A cartografia é pensada, então, como uma ética e uma política; e está em debate a disposição para experimentarmos o mundo na sua variação e imprevisibilidade: linhas de fuga, ou seja, desvios e forças não codificadas que não cessam de acontecer. Para Rolnik (2016), “o cartógrafo, em nome da vida, pode e deve ser absolutamente impiedoso” (p.69) quando se trata da destruição de si mesmo e do outro utilizando, obviamente, a regra da prudência, já que exercita um tipo de sensibilidade para “mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem” (p.66). Escrever sobre “The Caretaker” é, antes, uma implicação e experimentação da obra e das questões que esse encontro faz aparecer. O desafio é, através da escrita, dar visibilidade, ou “dar língua” (Rolnik, 2019) ao fugaz. O que requer coragem para experimentar as forças que se produzem na relação com “The Caretaker”. Implica criar furos na obra para nela habitar durante seis horas e meia, imergindo na violência do desordenamento provocado intencionalmente por Kirby em cada estágio, platô. Perguntamos: que linhas/intensidades nos atravessarão na aventura de conhecer “The Caretaker”? Cartografar “The Caretaker” é uma radicalização dessas provocações para uma experiência de desterritorialização. Só assim é possível ousar alguma coerência para escrever sobre essa obra de Leyland James Kirby.

Kirby nasceu em meados dos anos 70, na Inglaterra. Com o objetivo de criticar a indústria musical, distorcia através de efeitos e filtros sonoros as músicas que originalmente eram conhecidas por serem grandes sucessos de vendas, a ponto de se tornarem uma monstruosidade distante de sua forma original. O monstruoso aqui tem o sentido de uma força deformante que corrompe ou faz variar a forma originária para ganhar outras nuances, nesse caso, melódicas. Esses foram os primeiros passos para a chegada em “The Caretaker”.

Inicialmente para os Estágios 4 e 5 da coletânea foram produzidas mais de quatro mil horas de experimentações e gravações, e parte do processo foi ouvir esse material repetidamente para selecionar o produto final. Como se trata da experimentação de um estado demencial, o que se pode dizer acerca dos critérios que o autor utiliza para os recortes em estágios? Não é possível pensar em universalizações, ou dito de outro modo, qualquer tentativa de universalizar seria um contrassenso, relativamente ao objetivo pretendido por Kirby.

Kirby relata que compreende os últimos estágios da obra como os mais difíceis de escutar, e que podem gerar uma sensação desagradável. Mas isso faz parte do modo como ele experiencia a demência em sua arte, uma condição que é objetivamente difícil de se lidar. Seu objetivo final é afetar intensamente, mesmo que essa afetação venha acompanhada da estranheza ou da rejeição à obra.

Decidimos, neste trabalho, focar na memória e no esquecimento, utilizando genericamente os termos "demência", “estado demencial” e Alzheimer, considerando inclusive, as nuances e dificuldades de um diagnóstico diferencial.

O nascimento de “The Caretaker” foi em 1999, com o lançamento de um CD em edições limitadas. Nesse primeiro trabalho, a memória e o esquecimento ainda não eram abordados como temática central; as experimentações tinham o objetivo de trazer um som mais fantasmagórico, como a temática do filme “O Iluminado” (1980) de Stanley Kubric, no qual esse disco foi inspirado.

Após um período sem novos lançamentos, Kirby anuncia o fim de “The Caretaker”. Mas esse final anunciado não viria antes de sua obra conclusiva, “Everywhere At The End Of Time” (2019), uma série de seis álbuns que experimenta o processo da mente, sucumbindo à demência em tempo real, através de todos os seis estágios da doença.

Existem diversas escalas de medida para avaliar o avanço da demência nos pacientes, todavia a mais comumente usada é a “Global Deterioration Scale for Assessment of Primary Degenerative Dementia” (GDS). Não foi possível encontrar qual a escala na qual o artista se baseou para estabelecer os seis estágios da demência, mas para fins práticos, essa pesquisa utilizará a escala GDS para correlacionar a doença e a obra, ressaltando que não se trata de buscar reconhecer traços de uma representação, mas sim encontrar pistas para compreender o caminho que faz Kirby para composição dos referidos estágios. A escala indica sete estágios, onde no primeiro o indivíduo não apresenta sintomas, portanto, relacionando com a escala GDS, percebemos que a obra omite o primeiro Estágio em favor da sua narrativa. Nesse ensaio, quando nos referirmos à numeração de estágios, seguiremos a estipulada pelo artista, onde o primeiro Estágio se refere ao segundo na GDS; o segundo ao terceiro, e assim sucessivamente.

Das primeiras lembranças perdidas até o caos e o vazio, relata Kirby:

Acho que estou chegando ao fim de “The Caretaker”. Eu simplesmente não consigo ver para onde posso levá-lo depois disto. A minha ideia final foi a de dar demência a todo o projeto. Originalmente eu ia fazer uma gravação e levá-la ao abismo durante um período de três anos. Assim, a ideia teria sido fazer uma gravação e degradá-la, processá-la, de modo que houvesse uma continuação desde o início até ao ponto final. Mas depois pensei: “Não seria melhor dar demência a todo o projeto?”. (Kirby, 2016. Tradução Nossa)

Mas qual seria a motivação para criar uma obra dessa magnitude a respeito desse tema específico? O que significa para ele “dar demência à obra”? O artista refere uma curiosidade sobre a demência, mas não compreende a razão. Ele realiza leituras sobre o assunto, e assim como muitas outras pessoas, possui membros da família que já sofreram com a condição. (Kirby, 2018) Kirby acredita que lidar com a demência é um dos grandes desafios de saúde da nossa geração, já que estendemos nossa expectativa de vida para além do que fomos programados.

A demência não é uma doença específica, mas sim um conjunto de sintomas onde ocorre a perturbação de, pelo menos, duas funções do cérebro como, por exemplo, a memória. Segundo estimativas do Hospital Israelita Albert Einstein, dois milhões de brasileiros são acometidos pela demência por ano. Existe um tratamento que pode ajudar a amenizar os sintomas, mas é uma condição para a qual não há cura. Também, um artigo publicado na “Revista Brasileira de Epidemiologia” (Feter, 2021) por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade de Queensland, Austrália, indica que no Brasil existe um crescimento expressivo de casos e de taxas de mortalidade relacionados à demência.

Essa pesquisa, realizada em 2015 e 2016, através da aplicação de questionário a 9.412 adultos a partir de 50 anos, revela que, no Brasil, a proporção de pessoas com Alzheimer (responsável por sete em dez casos de demência) aumentou 127% em 30 anos. Os pacientes que apresentavam a doença também possuíam uma pior qualidade de vida no âmbito físico e emocional; a pesquisa revela que dois em cada três idosos com Alzheimer relataram que se sentiam deprimidos na maior parte do tempo. Observou-se que o envelhecimento aumenta a probabilidade do paciente de desenvolver a doença. Com isso, revela-se um futuro preocupante no nosso país, já que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira com 60 anos ou mais aumentará em 284,2% dos anos 2000 a 2050.               

De acordo com a GDS, relativamente ao Alzheimer, no primeiro Estágio o indivíduo não apresenta os sintomas, talvez por isso ele não apareça em “Everywhere At The End Of Time” (2019). Do segundo ao sétimo estágios, o indivíduo vai gradativamente tendo um declínio cognitivo; não é afetada somente a memória, mas também funções fisiológicas. O álbum, no decorrer de seus estágios, vai tratar disso apenas através do som, utilizando a arte da capa e os textos que a acompanham como complemento narrativo.

Kirby relata em entrevistas que o primeiro disco é como um idoso sonhando acordado. Ele é apresentado ao ouvinte com alguma estrutura que lhe permita entrar na obra sem os assombros que uma pessoa com demência vivencia. É rico em informações, e consistente durante toda sua duração, contendo momentos melódicos e felizes. A seleção de músicas contém as Jazz Big Bands, com músicas calorosas e peças de piano relaxantes que conversam como se quisessem te fazer sentir confortável e tranquilo. Entretanto, somado a toda essa atmosfera melódica, estão os ruídos e pequenas distorções, que evocam uma sensação de antiguidade. Esses ruídos remetem aos sons craquelados característicos do vinil, e são a equivalência imagética de uma fotografia amarelada e levemente corroída pelo tempo.

Os nomes das faixas são também um importante elemento narrativo para a obra, pois podemos frequentemente correlacioná-los com a própria música que é denominada. A primeira faixa desse Estágio, por exemplo, chama-se "It 's Just a Burning Memory” (“É só uma memória em chamas”). No final dela, a música se interrompe abruptamente, causando uma sensação de suspensão, de algo por terminar. A frase musical, repetida por toda a música, segue uma cadência melódica que nos familiariza com sua forma. O término abrupto nos faz supor que algo falta.

Na música “Late Afternoon Drifting" (“À deriva no final da tarde”), uma peça melódica de piano é tocada repetidamente em seus mais de 3 minutos de duração. Enquanto a informação é repetida, ruídos imprevisíveis nos acompanham, e a sensação de se estar à deriva imediatamente ressoa em nós, como se à espera de algo que não sabemos, enquanto o tempo segue impassível. Em “Slightly Bewildered" ("Levemente Confuso"), deparamo-nos novamente com uma faixa de piano tocando repetidas vezes durante os 2 minutos. Porém, como o próprio nome da canção indica, ela vem acompanhada de confusão. A melodia de piano para e retorna num descompasso que causa desconforto e estranhamento. O som do piano parece estar distante, os ruídos sempre presentes. Essas duas faixas contém a mesma ideia: uma melodia de piano que se repete em toda sua duração, acompanhada de ruídos. Porém a diferenciação se dá numa desorganização visivelmente maior na segunda: a pausa e o retorno abruptos, o som do piano mais distorcido e distante, os ruídos maiores.

O segundo Estágio apresenta uma semelhança com a sonoridade do primeiro. Aqui ainda partimos das mesmas Big Bands, mas a sensação não é a de conforto ou alegria. A escolha de músicas compõe melodias mais saudosistas e melancólicas, e os ruídos e barulhos externos são mais intrusivos e perceptíveis. Ainda existe muito do que compõe o primeiro disco, mas escapa uma sensação de que há algo de errado ao fundo.

Na narrativa do pequeno texto que acompanha o disco, a personagem percebe que há algo de errado, mas se recusa a aceitar. É necessário um esforço maior para lembrar, e com isso as lembranças podem ser deterioradas e mais distantes. É um Estágio no qual o sentimento é de mais tristeza do que no Estágio anterior, e podemos perceber isso desde a sonoridade aos próprios nomes das faixas.

Enquanto as faixas do primeiro Estágio contêm nomes mais otimistas e contemplativos, no segundo percebe-se um desconforto e certo pavor. Canções como “A Losing Battle Is Raging” ("Uma batalha perdida está cravada”), “Surrendering to Despair" ("Se rendendo ao desespero") e “The Way Ahead Feels Lonely" ("O caminho à frente parece solitário"), exemplificam essa mudança.

Em “A Losing Battle Is Raging”, a primeira faixa do disco, conseguimos perceber a mudança para um tom mais sombrio e desorientador. Enquanto uma suave melodia de trompete toca ao fundo, um crescente ruído aos poucos engole toda a canção, ocupando mais e mais espaço até só restar ele. Já em “Last Moments of Pure Recall" ("Últimos momentos de pura recordação") encontramos uma música nos mesmos moldes das que encontramos no primeiro estágio, como se fosse uma das últimas recordações ainda preservadas, mas que se encerra abruptamente.

O terceiro Estágio é descrito por Leyland no encarte do álbum como os últimos momentos de consciência antes da confusão dominar. Nele nós podemos perceber que o processo de deterioramento sonoro se dá de forma ainda mais violenta que nos estágios anteriores. A primeira música já nos remete a algo que ouvimos anteriormente, como uma sensação de déjà vu, uma memória que não compreendemos se é real ou fabricada - mas toda memória não é, afinal de contas, invenção?

Nesse Estágio 3, os nomes de algumas músicas passam a se misturar com nomes de músicas dos dois estágios anteriores. “Burning Despair Does Ache" ("O desespero ardente dói sim") é a junção de “It's just a burning memory" ("É só uma memória em chamas") e “Surrendering to Despair" ("Se rendendo ao desespero") do primeiro e segundo estágios, respectivamente. “Drifting Time Misplaced" ("Tempo perdido à deriva") é a junção de “Late Afternoon Drifting" ("À deriva no final da tarde”) e “Misplaced in Time" ("Perdido no tempo"). O artista, então, vale-se de mais um recurso estético para indicar a confusão e a mistura de memórias e sentimentos.

As melodias presentes nesse Estágio são tragadas pelos ruídos, ou aparecem descompassadas e confusas. Na faixa “Aching Cavern Without Lucidity" ("Doída caverna sem lucidez”) deparamo-nos com um som indistinguível. Não se trata apenas de um ruído como o que experienciamos anteriormente: é um som denso, que preenche todo o espaço sonoro que cresce e se multiplica em seu pouco mais de 1 minuto de duração. É como um vazio que transborda. A faixa “Drifting Time Misplaced" ("Tempo perdido à deriva") contém uma melodia de piano que se repete em toda a sua duração, mas que é acompanhada por um ruído que se assemelha ao estalar das chamas de uma fogueira. A própria melodia vai se distanciando, repentinamente, para dar lugar somente aos ruídos.

A transição do Estágio 3 para o Estágio 4 traz uma mudança brusca de sonoridade e narrativa. As melodias que eram gradativamente engolidas pelos ruídos agora dão espaço quase que completo a eles. Em sua primeira música, já percebemos que não existe uma melodia central que nos guia durante a faixa. Os ruídos ocupam o primeiro plano, e vestígios de canções passadas nos atravessam em diferentes direções. Ao escutar com fones de ouvido, podemos perceber que a confusão intensa se dá pelo bombardeamento de informações diferentes no espaço sonoro. Existe um ruído ocupando o meio, e enquanto do lado direito escuta-se uma melodia que talvez já tenha ouvido em algum outro momento da coletânea (será?), do lado esquerdo somos bombardeados por outra informação. O nível de confusão foi escalonado em um grau ainda não apresentado pela obra até o Estágio 4. As músicas, também, contêm uma duração maior que nos outros estágios, onde tinham cerca de 2 a 4 minutos. São aumentadas para 20 minutos de duração.

O Estágio 4 é composto de 4 faixas. Três delas possuem o mesmo nome: “Post Awareness Confusions" ("Confusões pós-consciência"). A única faixa que contém um nome diferente é a terceira, denominada de “Temporary Bliss State" ("Estado temporário de felicidade"). Aqui, nós tentamos nos apegar a qualquer vestígio de melodia (memória?) que nos é apresentado. A segunda faixa, por exemplo, se inicia como um disco arranhado; existe uma melodia ali que provavelmente foi apresentada anteriormente, mas que também está dilacerada na forma, tornando-se difícil compreender do que se trata. No final da faixa nos deparamos quase com outra música; os ruídos se tornando mais predominantes, a confusão e a paranoia se alastrando; e a luta por nos apegarmos a algo conhecido, e logo seguro. Aparece como um bombardeamento de informações diversas que não têm conexões entre si; que entram e saem sem uma cadência definida; algumas delas com alguma familiaridade. Essa suposta familiaridade é o que produz a angústia do possível que não se efetua como real.

Assim como o anterior, o Estágio 5 é composto de 4 faixas de mais de 20 minutos cada. Ele segue uma continuação estética semelhante a seu predecessor, porém podemos perceber que se já havia algum desconforto no Estágio 4, agora ele é acentuado. Deparamo-nos com uma quantidade menor de melodias na superfície; os ruídos estão totalmente em primeiro plano. “The Caretaker” aproveita todo o espaço tridimensional que pode alcançar com o som e nos bombardeia com ruídos e informações diferentes em diversas direções possíveis. As composições das músicas revelam um domínio preciso de manipulação de áudio e mixagem de som.

No Estágio 5, a percepção das melodias e instrumentos é dificultada ao extremo. Esse estágio apresenta outra forma de comunicação, o fluxo intenso de se fazer e se construir. Nem os ruídos são contínuos; eles brotam de forma imprevisível, por vezes deixando escapar o que seria uma possível melodia, mas jamais revelando o que há além dele.

“Everywhere At The End Of Time” carrega-nos em uma jornada repleta de intensidades. A sua conclusão no Estágio 6 não se distancia do esperado. Recapitular os estágios anteriores traz uma sensação de distanciamento, como se fossem lembranças há tempo perdidas. Na etapa final da coletânea, os ruídos são como linhas que existem apenas para romper qualquer presença de forma. Não há nada para se apegar.

Na faixa “Long Decline Is Over" ("Longo declínio está acabado"), somos submetidos a um ruído denso por 20 minutos. Mas não se trata de um ruído contínuo ou previsível, ele varia e se molda inúmeras vezes em toda a duração da música, ocupando espaços diferentes e variando de intensidade, porém sempre em movimento. Após o “Longo declínio”, o ruído cessa para dar espaço à próxima faixa chamada “Place in the World Fades Away" ("Lugar no mundo desaparece").

Nesta que é a derradeira faixa do álbum, podemos nos deparar com um último suspiro. Em meio ao caos e as intensidades do vazio, somos presenteados com um som de um órgão - um teclado suave. Esse som é incrivelmente reconfortante, e nos embala como um último alívio. Após todo o caos e toda a intensidade das forças se conflitando, uma última canção brota. Esse suspiro, na marca de 6 horas e 24 minutos, o ouvimos novamente como uma música, à semelhança daquelas que conhecemos no primeiro estágio. A melodia se apresenta como uma última conversa, um derradeiro sentido e, paradoxalmente, a ascensão. A surpresa desse encontro é o clímax de toda a obra. Depois de passar tantas horas lidando com sons e formas que são desconhecidas para nós, um último contato com algo que reconhecemos é emocionante.

Por que o nome “The Caretaker”? Qual o peso do esquecimento? O que é perder e se distanciar de todas as construções que fazemos durante a vida? Como uma experimentação artística, “The Caretaker” não propõe resposta alguma, mas nos presenteia com mais questões e implicações. Experimentar um outro lugar nos permite retornar com uma perspectiva. E o que seria a arte sem a potência de romper com as estruturas estabelecidas, ou como diria Artaud (1975), dar um fim ao juízo de Deus?

Nossa vida é traçada por linhas/intensidades a todo o momento e em todos os âmbitos. Moramos em casas, em espaços delimitados que estão contidos em ruas, que por sua vez estão contidas em bairros. Mas as linhas não são essencialmente físicas, elas estão presentes nas nossas relações, na forma como nos revelamos ao mundo, nos nossos hábitos, opiniões. Deleuze (2004) afirma que as linhas são as constituintes de todas as formas e acontecimentos, e as categoriza em três tipos: as linhas duras como demarcadoras de identidade, hábitos, moral e opiniões cristalizadas, ou seja, os modos mais violentos e seguros de uma existência sedentarizada. São as linhas que segmentam, enrijecem e estratificam, e que atuam de uma forma violenta ao reduzir as intensidades a uma estrutura, com baixo coeficiente de variação. A sua existência e limitações são necessárias para que a vida exista. Entretanto podem carregar perigos, já que quanto mais dura for a linha, mais supostamente ela nos tranquiliza, colocando-nos em fascínio e nos impedindo de criar. O autor também conceitua as linhas duras como ligadas à memória, ao passado, o que curiosamente se conecta com “Everywhere At The End Of Time” (2019).

As linhas duras na obra de “The Caretaker” são as primeiras músicas, presentes nos primeiros estágios. As melodias e recortes das Big Bands funcionam narrativamente como a memória e são definidoras na narrativa. Possuem uma estrutura em si mesmas, uma origem, uma cadência melódica definida, com seu tempo e andamento delimitados. Durante toda a coletânea musical, percebemos as linhas duras sendo testadas com a presença dos ruídos e das pausas bruscas. Nos 3 primeiros estágios ela ainda prevalece, impassível, até que aos poucos ocorre o rompimento que lentamente dá lugar a outros modos de existência.

As linhas flexíveis e as linhas de voo vêm para que a rigidez das linhas duras seja desmanchada em prol da criação. As linhas flexíveis são os pequenos desvios, são rachaduras que rompem a forma. Elas atuam a favor da mudança; Deleuze e Guattari (1996) vão compará-las a um traçado de rascunho, sempre oscilante, uma potência que pode ou não atingir o esperado. Na obra de “The Caretaker”, as linhas flexíveis são os pequenos ruídos, os craquelados sonoros, as interferências que rasgam as rígidas melodias já estabelecidas. São os engasgos na própria melodia, seus tropeços. As linhas flexíveis aqui são a porção volátil da memória, possibilitando que ela perdure ou não.

Por último, as linhas de voo são as que fogem de toda a categorização, e não seguem um trajeto fixo; são intensidades livres. Seus movimentos são marcados pela criação, geração da vida. Mas há de se tomar cuidado para que essa fuga não seja uma abolição total do território (Deleuze & Parnet, 1998), pois pode se tornar fatal e promover o aniquilamento da vida. Na coletânea, as linhas de voo são o que experienciamos nos últimos estágios, ainda que estejam presentes todo o tempo em intensidades imperceptíveis. Os ruídos imprevisíveis que se misturam e compõe uma monstruosidade; monstruosa porque não conseguimos capturá-la. É a imprevisível invenção; quase porque ao se efetuar como obra necessariamente busca ancoragem ou se oferece a uma captura, a uma forma, que logo em seguida é posta na mais voraz disrupção. Assim é que “Everywhere at the End of Time” acontece como uma convocação para experimentar um estado demencial, ou mergulho no caos, mas do qual, driblando linhas de morte, emergimos nos agarrando a alguma nota musical.

As linhas, entretanto, não podem ser pensadas como desassociadas; nem tampouco elas preexistem, a não ser como intensidades livres. Elas estão a todo o momento se emaranhando, compondo tensamente durezas, flexibilidades e fugas, em diferentes níveis e intensidades, mas sempre presentes.

Partimos do pressuposto de que a obra de “The Caretaker” não trata apenas de uma mera representação da demência. Ao cartografá-la observamos que ele não se aproxima do tema como quem lê uma fórmula, ou segue uma forma predefinida: "Não seria melhor conferir demência a todo o projeto?” (Kirby, 2016). Compreendemos, por conta dessa questão e dos métodos utilizados para a composição de “The Caretaker”, que Kirby realizou uma experimentação, mobilizando afetos/intensidades que o conduziram a uma experiência demencial.

Entretanto, a divisão em estágios pode levar-nos a questionar se isso não é feito a partir de uma representação do que seja a demência para as ciências médicas; afinal, como mencionado anteriormente, o disco é dividido em estágios que representam o avanço da demência. Porém, como relatado em entrevista (Kirby, 2011), Kirby refere não partir de uma pré-composição que delimita a ideia para construir o que cabe nela. A compreensão dos estágios e a composição da narrativa do processo demencial se dão numa observação/vivência posterior à produção musical. É sobre entender e ler a sua criação, e não a criar enclausurada na forma. Supomos, então, que separar a obra em estágios se revela como mais um recurso para que o ouvinte possa imergir nela.

Obviamente, ao categorizar não fugimos da problemática de delimitar, cercear. E talvez isso esbarre na representação (que é também necessária para dar acesso), mesmo que posterior à composição da obra. Porém, ao pensar a representação na arte, não podemos ignorar as linhas de fuga que necessariamente rompem com as linhas duras que compõem a forma. O signo produzido pela música – trataremos dele nos parágrafos seguintes – pode então ser considerado como uma linha que rompe com a representação e nos atinge em intensidades, produzindo singularizações.

Faz-se necessária uma distinção entre o que nomeamos como demência e como estado demencial. Enquanto a primeira nos reporta a uma condição bem definida na semiologia e nosologia da clínica médica, o estado demencial será aqui pensado na perspectiva de uma estética. Logo, necessariamente implica numa experimentação de forças e de formas em variação e, também, níveis e dimensões de expressividade.

Mas por que experienciar um estado demencial e de que forma isso nos afeta? Segundo Vinci (2018) e seus estudos deleuzianos, a experimentação artística se revela como uma busca por sentido, que se faz no encontro com os signos. Signos estes que nos forçam a pensar e nos obrigam a sair da condição de observador. Signo, considerado na perspectiva de Deleuze (1988) como afeto, ou variação na nossa potência de existir. Deleuze afirma que há uma certa violência nesses signos, devido ao seu caráter heterogêneo, que se manifesta de três formas distintas. A primeira violência se dá pela diferença de nível entre o objeto emanador e o signo emanado. Ao fazermos uma associação direta com a obra, ocorre uma diferença de intensidade entre a música em si, que é composta por sons, melodias, ruídos; e o signo emanado, que é o estado demencial. São duas ordens de realidade conflitando.

A segunda forma da violência manifestada ocorre quando o signo (estado demencial) aponta para algo que não é o objeto que o emana (a música) e não coincide com ele. O signo, ao promover esse estado, distancia-se da música em si. E, finalmente, a terceira forma se dá na produção de uma resposta pelo signo que nunca coincidirá com a pergunta por ele posta. Ou seja, o estado demencial produzirá uma resposta que pode se aproximar do que a pessoa com demência vai experienciar em sua condição, mas jamais se igualará a esta experiência. Com isso, retornamos à questão anterior sobre a obra como representação. Talvez possamos dizê-la um simulacro. Segundo Maria Cristina Ferraz (2002, p.135) um simulacro caracteriza-se por “uma dessemelhança originária e por uma perversão essencial” do padrão, deixando entrever o que escapa à representação. Assim sendo, um simulacro não guarda qualquer relação de fidelização com o representado, e uma experimentação jamais conseguirá coincidir com o signo ou dizer tudo que há de ser dito sobre ele. Logo, qualquer tentativa de representação de um estado demencial tenderá sempre a um simulacro.

Pensar no estado demencial como signo também implica dizer que cada experiência com a obra será única para cada ouvinte, revelando a singularidade dos encontros. A violência do signo (VINCI, 2018) se dá na medida em que ele não pode ser representado nem pelo objeto que o emana, nem pela ideia que ele virtualmente comporta e nem pela resposta interpretativa que ele demanda. Ele é uma pergunta, e como uma pergunta ele nos impõe uma resposta, implica-nos e afeta-nos. O signo consegue escapar da ordem representacional, pois a interpretação que exige não se basta na ordem do real, ou das verdades estabelecidas na cultura. Ele necessita de um código próprio para ser lido. Mas não se trata apenas de efeitos produzidos sobre os outros; é a obra de arte que produz em si mesma e sobre si mesma seus próprios efeitos, e deles se sacia, deles se nutre: ela se alimenta das verdades que engendra. (DELEUZE, 2003)

Assim, através da composição de “The Caretaker” conseguimos ser afetados por um estado demencial, experimentando a estranheza e a desorientação que cercam o álbum. Ou seja, experimentar um estado demencial através de uma obra musical nos atinge de modo a sentirmos roçar outros modos de experienciar o mundo. Não é aquele ao qual estamos habituados, tampouco aquele que as pessoas com demência experienciam, é apenas o indício de algo que pode funcionar, talvez, como uma ponte para a sensibilização acerca do outro.

Pensar a própria demência como uma experiência é uma maneira de encarar essa condição. Pensá-la em um paradigma organicista, reduzindo-a apenas a aspectos físicos desconsidera que ao viver um estado demencial estamos experimentando um novo modo de produzir existência, que acontece no encontro com os signos que compõem um campo específico. Segundo o psicólogo social Kitwood (1997), as pessoas com demência estão em constante processo de constituição e manifestação de si mesmos. No lugar de impormos uma correção ou enquadramento, devemos pensar em acolhimento e pluralidade. Tratar a condição apenas como uma falta – de memória, de coerência ou de alma – é se estrangeirizar o outro. Jenkis (2014) pensa para além dessa ideia ao propor demência não só como uma experiência individual, mas como uma experiência coletiva, onde quem cuida e quem precisa de cuidado inventam juntos novos campos rizomáticos na própria relação.

Encarar a demência como uma experiência não anula as questões fisiológicas implicadas, mas nos permite partir de uma perspectiva menos enclausuradora. Apesar de concluirmos que existe a possibilidade de experimentarmos esse estado demencial, e entendermos que cada experiência resultaria em singularidades, é preciso afirmar que cada corpo também é composto de organizações múltiplas e heterogêneas. Ao experimentar esse estado demencial através de uma peça artística, devemos compreender que não somos atravessados pelas mesmas intensidades e não temos as mesmas organizações de corpo que uma pessoa com demência.

Ao estudar Alzheimer, um dos principais responsáveis pelos casos de demência, Vianna (2003) compreende que os sujeitos que apresentam essa condição se encontram em um lugar fronteiriço. São nômades multiplicadores desses dois mundos que transitam, dos normais e dos delirantes – aproximamo-nos de Viana apesar de não apreciarmos a escolha de palavras como normal, padrão que prima por formas organizadas a partir de linhas de poder, com o mínimo de variação. Por outro modo, ao compreendermos a demência como processo, o autor possibilita pensarmos a nossa realidade como também atravessada pela demência a todo momento.

A diferença, entretanto, dá-se na ideia de que quando experienciamos um estado demencial através de uma obra de arte – ou atravessamos o espelho de Alice, analogia apresentada por Feriani (2017) - partimos de um “lugar seguro” para o qual sabemos que vamos retornar. Diferente de alguém que está em um processo demencial fisiológico, no qual essa travessia é um processo contínuo, a pessoa tendo ou não consciência dela.

Parte desta pesquisa, introdutória, dá-se desde a experimentação da obra de Kirk. Demandou de nós dedicação e abertura para experimentar ritmos e velocidades do som; portanto, uma experimentação e produção de corpos que estão além do esforço de expressão pela escrita.

Ao cartografar “The Caretaker”, a teoria das linhas foi fundamental para compreender de que modo se relacionam os sons presentes na obra musical. As linhas duras, flexíveis e de fuga agem juntas no território cartografado, e cada uma se movimenta conforme sua funcionalidade, como pudemos experimentar. Destacamos, todavia, que o acesso ao trabalho de Kirby poderia ser outro.

Por último, conceituamos o anteriormente mencionado estado demencial, partindo da perspectiva de uma estética, onde ele é o signo que emana da música, produzindo uma experimentação de forças e formas em variação, em diferentes níveis e intensidades. Tratamos, de forma geral, sobre como funciona esse signo que é emanado pela arte e de que maneira a sua violência nos afeta.

Propomos, pois, pensar a demência fora do paradigma organicista, ao encará-la como uma experiência coletiva, englobando o sujeito que apresenta a condição, mas também os familiares, o médico, o cuidador, e as questões fisiológicas. Ao tratá-la como uma experiência, e ao pensar o estado demencial como um acesso a essa, é preciso reforçar que nós que não sofremos dessa condição a experimentamos em intensidades outras. Novamente correlacionando com a história de Lewis Carroll, a Alice que acessa o estado demencial estético tem um local seguro para retorno. Nós acessamos esse estado com o retorno garantido à nossa realidade, enquanto o indivíduo que sofre com a condição fisiológica está no fluxo constante de se reinventar.

A arte ocupa um papel importante na recusa a se encaixar nos valores instituídos da sociedade e da cultura. Ela age por outros caminhos e propõe outras experiências. Como alguém que respira arte e invenção, esse primeiro passo para a construção de um caminho que se propõe a estudar memória e esquecimento foi fundamental para afirmar que a partir da arte é possível traçar caminhos rizomáticos. Esse é o início de uma jornada.

 

Referências

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