Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023017. jan./dez. 2023
DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.17
VERSÃO FINAL: 29/03/2023
APROVADO EM: 17/05/2022
Saúde mental de mulheres sobreviventes a tentativas de feminicídio
Mental health of women survivors of feminicide attempts
Isabella Parreiras Andrade
Universidade Federal de Catalão - GO. Email: isabellandrade.psi@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1723-1329.
Tatiana Machiavelli Carmo Souza
Universidade Federal de Catalão – GO. Email: tatimachiavelli@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8834-7022.
Resumo
O feminicídio é a expressão máxima da violência contra as mulheres, usualmente, precedido de um continuum de violências na trajetória de vida. Trata-se do assassinato intencional de mulheres devido ao seu gênero. Buscou-se investigar os impactos das tentativas de feminicídio na saúde mental de mulheres sobreviventes. Esse é um estudo quanti-qualitativo. Foi utilizado formulário online que buscava identificar o perfil identitário das participantes, as principais vivências de tentativas de feminicídio e os impactos na saúde mental. Em etapa seguinte, uma participante narrou, por meio de entrevista, sua trajetória enquanto sobrevivente. A entrevista foi semidirigida, vídeogravada e, posteriormente, transcrita na íntegra. Foi feita análise estatística descritiva dos dados quantitativos. As informações qualitativas foram analisadas à luz do materialismo histórico e dialético. As tentativas de feminicídio mais recorrentes foram: enforcamento (15%), dirigir perigosamente (15%) e bater com a cabeça em locais/objetos perigosos (15%). Após a vivência das tentativas de feminicídio, foram identificadas sensações constantes de insegurança, medo, falta de confiança, dificuldade de se relacionar afetivamente e prejuízos financeiros que relevam significativo impacto na saúde mental.
Palavras-chave: Violência contra mulher; sofrimento psíquico; materialismo histórico-dialético.
Abstract
Feminicide is the ultimate expression of violence against women, usually preceded by a continuum of violence in the trajectory of life. It is the intentional killing of women because of their gender. We sought to investigate the impacts of attempted feminicide on the mental health of women survivors. This is a quanti-qualitative study. We used an online form that sought to identify the identity profile of the participants, the main experiences of attempted feminicide and the impacts on mental health. In the next step, a participant narrated, through an interview, her trajectory as a survivor. The interview was semi-directed, videotaped, and later transcribed in its entirety. Descriptive statistical analysis of the quantitative data was performed. The qualitative information was analyzed in the light of historical and dialectical materialism. The most recurrent feminicide attempts were: hanging (15%), dangerous driving (15%) and hitting your head on dangerous places/objects (15%). After the experience of attempted feminicide, we identified constant feelings of insecurity, fear, lack of confidence, difficulty in establishing affective relationships and financial losses that have a significant impact on mental health.
Keywords: Violence against women; psychological suffering; historical-dialectical materialism.
Introdução
O feminicídio diz respeito ao assassinato intencional de mulheres devido ao seu gênero (Brasil, 2015). É a expressão máxima da violência contra mulheres por se tratar da execução da vida. Abrange as violências domésticas e intrafamiliares e o desprezo, misoginia e discriminação às mulheres. Está ligado ao comportamento e crença dos homens que acreditam que as mulheres não estão cumprindo seus papéis de gênero, se configurando em um crime sexista. Decorre de um continuum de violências tais como sexual, tortura, mutilação, física, matrimonial e emocional, dentre outras (Meneghel & Portella, 2017; Meneghel, Rosa, Ceccon, Hirakata, & Danilevicz, 2017). O feminicídio tem sua origem e legitimação no sistema de dominação patriarcal, ou seja, na dominação-exploração dos homens sobre as mulheres na ordem patriarcal de gênero (Pasinato, 2016).
O assassinato de mulheres ocorre, principalmente, por conta do “descumprimento” dos papéis de gênero (Pasinato, 2016). Culturalmente, o papel das mulheres está atrelado ao de “cuidadoras do mundo” e a mulher-mãe deve ser “[...] dedicada, abnegada, paciente, devotada, pronta a fazer sacrifícios” (Zanello, 2018, p. 137), responsável por cuidar da casa, do marido, das/os filhas/os e estar sexualmente disponível para o companheiro. Como consequências, as mulheres sofrem diferentes formas de violências por queimarem a comida, negligenciarem as crianças, discutirem com os parceiros e se recusarem a ter relações sexuais (Ramos, 2020).
Esse processo de produção de subjetividades, articulado aos papéis de gênero, implica na manutenção de crenças, comportamentos, percepções e relações sócio-históricas nas quais os homens terem controle e posse sobre os corpos das mulheres. Assim, quando não existe o controle e a posse, desencadeia-se a violência, podendo ocorrer o feminicídio. Esses fenômenos acontecem por conta da dominação patriarcal, que é baseada em relações de poder, colocando as mulheres em um sistema de submissão, silenciamento e vulnerabilidade (Zanello, 2018). Dessa forma, o feminicídio não é somente a manifestação de poder dos homens em relação aos corpos feminino, mas uma tentativa de continuar com o sistema de dominação vigente, ou seja, é uma reafirmação da ordem patriarcal.
No Brasil, comumente, os feminicídios são motivados por ciúmes, o principal autor da violência letal é o (ex)companheiro da vítima e os assassinatos acontecem na casa da mulher. Em referência aos meios empregados para cometer o ato violento, predominam a asfixia, uso de objeto contundente, armas brancas e armas de fogo (Distrito Federal, 2020; Verissimo, Negreiros, & Barreira, 2021). O aumento do número de feminicídios por arma de fogo tem sido relatado pela literatura (Pasinato, 2016). A cada dois minutos uma mulher é alvo de armas de fogo no Brasil (Garcia, 2019). A relação entre o feminicídio e o uso de armas de fogo está vinculada a manutenção de poder, controle e na possibilidade de provocar terror e intimidação na vítima (Everytown for Gun Safety, 2019).
O Estado tem sido tolerante e negligente com os assassinatos das mulheres, especialmente, no que concerne a implementação de políticas de enfrentamento eficazes (Meneghel & Portella, 2017). É notório o crescimento nas estatísticas que envolvem o feminicídio: no Brasil, uma mulher é morta a cada duas horas e o percentual de mortes dentro da residência é de 2,7% maior do que o de homens. A análise interseccional revela que o homicídio de mulheres negras compõe 69,3% dos casos no Brasil (IPEA, 2020). Estudos apontam, ainda, o aumento de casos de violências contra mulheres, tentativas de feminicídio e feminicídio durante a pandemia da COVID-19 dada pela permanência dos autores das agressões no ambiente doméstico e pelo esfacelamento das redes socioassistenciais de proteção (IPEA, 2020; Distrito Federal, 2020).
As múltiplas violências implicadas na vivência das tentativas de feminicídio acarretam significativos impactos à saúde mental – entendida aqui como “... estado de completo bem-estar físico, mental e social” (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2002, p. 27) – das mulheres. A literatura revela que a violência sofrida pode provocar o surgimento de doenças crônicas, como dores de cabeça; originar prejuízos no organismo, como deficiências físicas; pode abalar o desenvolvimento cognitivo, social, afetivo e emocional. Além disso, as mulheres podem desenvolver depressão, transtorno do pânico, estresse pós-traumático, condutas e pensamentos autodestrutíveis, sensações de insegurança, impotência, tristeza, ansiedade, medo e laços sociais debilitados pelo isolamento (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012; Ferrari et al., 2016; Avdibegovic, Brkic, & Sinanovic, 2017). A violência experimentada também pode afetar: 1) a saúde reprodutiva ocasionando gravidez indesejada; 2) o trabalho, podendo baixar a produtividade e/ou demissão; 3) as relações domésticas; e 4) a escola, afetando o desempenho escolar (Office On Women’s Healf [OWH], 2017; OMS, 2021).
Historicamente, as mulheres têm sido exploradas, oprimidas e submetidas aos homens sendo excluídas de diversos espaços. A sociedade e o Estado banalizam o sofrimento das mulheres. Exemplo disso, é a demora na criação e implementação de políticas públicas de enfrentamento às violências contra mulheres e ao feminicídio. Esse processo histórico de invisibilização e naturalização das violências, além da morte de mulheres, tem promovido múltiplas formas de adoecimentos. O comprometimento da saúde mental não se impacta apenas a existência privada das mulheres, mas envolvem prejuízos ao desenvolvimento e afastamento social, tirando-as da cena pública (CFP, 2012; Ferrari et al., 2016). Partindo desses aspectos, buscou-se investigar os impactos das tentativas de feminicídio na saúde mental de mulheres sobreviventes.
Método
O estudo faz parte do projeto de pesquisa integrado “Violência, Gênero e Família: Implicações na Psicologia e Sociedade”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Catalão, sob o parecer de número 5.741.179. Tem cunho quanti-qualitativo com perspectiva analítica, buscando privilegiar os sentidos e significados, as emoções e vivências que circundam o fenômeno do feminicídio (Rey, 2003, 2005).
Na primeira etapa do processo de obtenção de dados foi construído formulário eletrônico no Google Forms. Continha 10 (dez) perguntas apresentadas em cinco seções: a) validação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; b) perfil identitário das participantes; c) questões acerca das tentativas de feminicídio; d) questões sobre a saúde mental após a vivência das tentativas de feminicídio; e) levantamento do interesse em participar na etapa seguinte da pesquisa – a entrevista.
O formulário eletrônico foi divulgado por meio de folder eletrônico nas redes sociais das pesquisadoras (Instagram, Facebook, WhatsApp e Twitter) e em grupos de discussão sobre a temática. Os dados foram obtidos entre outubro de 2021 e janeiro de 2022; 11 (onze) participantes responderam. Todas as participantes se adequavam aos critérios estabelecidos previamente: a) se auto identificar como mulher; b) ter idade igual ou superior a 18 anos; c) ter sofrido tentativa de feminicídio perpetrada por (ex)companheiro.
Na segunda etapa da pesquisa foi realizada entrevista semidirigida, vídeogravada e, posteriormente, transcrita na íntegra com uma participante. A entrevista teve duração de 46 minutos e teve o intuito de aprofundar a compreensão acerca do impacto da tentativa de feminicídio na saúde mental. Ressaltamos que todas as orientações éticas foram seguidas e as participantes foram nomeadas por meio de pseudônimos.
Foi feita análise estatística descritiva dos dados quantitativos (Oliveira & Oliveira, 2011). Os dados foram lançados em planilhas, posteriormente, organizados em tabelas. Já as informações qualitativas foram analisadas a partir do materialismo histórico-dialético. Nessa perspectiva, o sujeito se constitui por meio da ação na natureza e, consequentemente, por ela é modificado. Essa relação dialética não é direta, mas mediada por instrumentos e signos. O processo de mediação e, assim, de desenvolvimento humano, permite a construção de significados (Moraes, 2021; Netto, 2011). Por meio da compreensão dos significados constituídos – expressos em palavras – podemos apreender a subjetividade das participantes (Rey, 2003, 2005).
Resultados e discussão
Em relação ao perfil identitário das participantes, a idade variou entre 22 e 56 anos. Em relação ao estado civil, 36,3% (n=4) eram solteiras, 27,3% (n=3) divorciadas e casadas respectivamente, e 9,1% (n=1) estavam em união estável. Em relação a localidade, 45,4% (n=5) residiam no estado de São Paulo, 27,3% (n=3) em Goiás, 9,1% (n=1) em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul respectivamente. Quanto a orientação sexual, 81,8% (n=9) identificaram-se como heterossexuais e 18,2% (n=2) bissexuais. Em relação à identidade de gênero, 90,9% (n=10) se identificavam como mulheres cisgênero e 9,1% (n=1) como não binária. No que se refere à escolaridade, 45,4% (n=5) possuíam ensino médio completo, 27,3% (n=3) ensino superior incompleto, 18,2% (n=2) ensino superior completo e 9,1% (n=1) ensino médio incompleto. No que se refere ao número de filhas/os, 36,3% (n=4) possuíam 3 ou mais, 27,3% (n=3) um/a, 18,2% (n=2) duas/ois ou nenhum/a. A respeito da renda familiar, 45,4% (n=5) recebiam dois salários-mínimos, 27,2% (n=3) não tinham renda, 18,2 (n=2) mais de dois salários-mínimos e 9,1% (n=1) preferiram não responder. Acerca da religiosidade ou crença, 54,5% (n=6) eram evangélicas, 18,2% (n=2) católicas, 18,2% (n=2) espíritas, 9,1% (n=1) optou por não responder, conforme Tabela 1.
Quanto a raça/etnia, 45,4% (n=5) se reconheciam como pardas, 27,3% (n=3) pretas e 27,3% brancas. Esse dado merece atenção, uma vez que a soma entre participantes pardas e pretas leva 72,4% (n=8) de mulheres negras. Conforme apontado anteriormente, 69,3% dos casos de homicídio no Brasil são de mulheres negras (IPEA, 2020). A alta incidência da morte de mulheres negras ocorre principalmente devido a hierarquia social que as coloca na última posição (Zanello, 2018). As violências praticadas pelos (ex)parceiros são expressões da coesão e legitimidade social da supremacia masculina branca sob os corpos femininos e, principalmente, negros.
Identificamos que 81,8% (n=9) das participantes mantinham relação afetiva-sexual com o autor da agressão na ocasião das tentativas de feminicídio. A literatura revela que em 58% dos feminicídios consumados os autores eram companheiros das vítimas (Distrito Federal, 2020), ou seja, as mulheres foram assassinadas por alguém com quem mantinham vínculo íntimo de afeto. Foram múltiplas as tentativas de feminicídio vivenciadas pelas participantes e se deram, predominantemente, por meio de enforcamento (15%, n=4), direção perigosa pelo (ex)parceiro (15%, n=4) e bater a cabeça em locais ou objetos perfurocortantes (15%, n=4), conforme Tabela 2. No caso das tentativas de feminicídio por enforcamento e/ou bater na cabeça, estão vinculadas à ideologia patriarcal forjada na concepção de que os corpos femininos pertencem ao homem (Pasinato, 2016; Zanello, 2018).
A participante que foi entrevistada relatou que umas das tentativas de feminicídio ocorreu dentro de um automóvel. Na ocasião, estavam no carro a entrevistada Angela, sua filha e o ex-marido. Ele travou as portas do veículo, as impedindo de sair, e retirou uma arma de fogo no porta-luvas com a intenção de matá-la. Segundo Nunes e Souza (2021a), a condição de passageira do veículo coloca a mulher em situação vulnerável às intenções e desejos do motorista, pois, libertar-se pode implicar em danos à saúde e risco de morte. No caso de Angela, o agressor não efetivou o feminicídio devido a filha gritar dentro do carro, pedindo para que ele as soltasse. O automóvel é considerado um objeto associado à virilidade dos homens e o ato de dirigir perigosamente em casos de tentativas de feminicídio retrata a conjuntura de vulnerabilidade em que a vítima está posta (Nunes & Souza, 2021a).
Outra tentativa de feminicídio, na trajetória de Angela, foi efetivada também com uso de arma de fogo. O ex-parceiro, autor da tentativa, possuía um acervo de armas de fogo e armas brancas, contudo, ele utilizou-se da arma dela na tentativa de aniquilamento de sua vida, revelando não só a posse sobre seu corpo, mas também sobre seus pertences. À época dessa tentativa de feminicídio, Angela era policial militar. Cabe destacar que o fato de a irmã e as filhas estarem na residência não impediu o ex-marido de tentar o feminicídio. Ainda, ser policial ou ter outras familiares na residência, no caso dessa participante, não se revelou em um fator de proteção. A literatura aponta que o uso de armas de fogo nas tentativas de feminicídio está associada a persistência de poder, controle e a oportunidade de causar terror e intimidação na vítima (Everytown for Gun Safety, 2019; Garcia, 2019).
Comecei a clamar, pedir “não por favor não faz isso”. E minha irmã estava ao lado com minhas filhas, no outro quarto. Como eu falei para você, na casa bem de interior e não tinha forro. A... a casa então dava para ouvir é... Do outro lado né. Aí ele ficava bem assim pra mim: “cala boca, você vai ficar calada! Não vai falar nada. Senão eu vou te matar aqui, agora. Aliás eu te mato e saio” (Angela).
Entre as participantes, observamos as vivências de diversas violências anteriormente às tentativas de feminicídio: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. Angela relatou ter sido agredida múltiplas vezes, situações em que ocultava as marcas corporais com o uso de maquiagem. Uma vez que a maquiagem não escondia todos os vestígios da violência, quando questionada por colegas, ela negava estar em uma situação de perigo eminente. O sentimento de vergonha pelas agressões sofridas e a intenção de proteger o autor da agressão eram mais fortes.
Chegando essa violência física, que ele me batia, demais. É... E quantas vezes eu fazer faculdade de direito... Ele... Eu ia roxa... Eu pintava... Eu já tenho olheiras, muitas olheiras. Eu pintava bastante base aqui. Eu falava que até meu braço ia apodrecer de tanto que ele dava murro aqui. Eu vivia com hematomas. [...] Eu tenho... Eu tinha dois colegas que fazia direito comigo... E... Na mesma sala dois colegas da polícia. Quando eu quando chegava lá roxa, quando eu chegava com hematomas, ele ficava me perguntando[...] “Angela tá acontecendo alguma coisa com você?” Não, não tá acontecendo nada. “Você não tá sofrendo violência, não?” Não, de jeito nenhum. Meu esposo é um amor comigo. [...] na verdade tinha... Ele tinha me socado (Angela).
[...] no meu primeiro relacionamento sofri agressões físicas e verbais (Rosa).
[...] meu ex me mordeu no rosto, e me deu socos na costela (Judith).
Além da violência física, identificamos vivências de violência sexual, psicológica, moral e patrimonial que antecederam as tentativas de feminicídio. Angela relatou que a violência sexual foi naturalizada desde sua infância: seu pai dizia que as esposas são propriedades de seus maridos, ideia que reafirmava a Angela e seu ex-parceiro. Essa visão está pautada em uma justificativa patriarcal de que os corpos femininos pertencem ao pai, primeiramente, e depois ao companheiro (Gomes & Fernandes, 2018; Zanello, 2018). No caso das violências psicológicas, era chamada de “burra” e “feia”, o ex-parceiro mencionava que, em caso de separação, ela não se relacionaria com outra pessoa por falta de atributos. Com relação à violência moral, envolviam calúnia e difamação por parte do ex-companheiro diante dos próprios parentes. Já no âmbito da violência patrimonial, o ex-companheiro não trabalhava, se apropriava do dinheiro e deixou dívidas em nome da participante.
Meu pai era... se dizia muito crente. [...] No sétimo ano de casamento eu que quis separar e meu pai falava bem assim: “filho meu não separa. Filho que casou para”... E eu fui falar para igreja né, que ele foi desde o primeiro ano né de muita traição né e eu fui falar para o pessoal da igreja que ele tava me traindo, porque ele é, era, músico né na igreja, tinha cargo. Aí falaram que eu não tinha prova não. Não poderia fazer nada né. Aí meu pai que... que quando eu falo com meu pai contribuiu nessa violência sexual porque meu pai falou bem assim para ele, chama... chama A.. “Olha irmão A., ela negar, pega a força. Porque... É... A... A mulher ela não é dona do corpo, e sim o esposo.” [...] Muitas vezes como eu não podia separar, porque era da igreja essas coisas, eu tinha vontade que ele morresse. Como eu desejava que ele morresse. Assim pelo menos para se estar liberta. Aí ficava assim será que ele vai morrer? Mas se ele morrer de... De um acidente, aí vai acabar com carro e aí eu vou ficar sem nada. Ficava só pensando que... Que assim... É... Eu queria me libertar, mas eu não tinha coragem de sair né (Angela).
Percebemos que algumas participantes como Angela, Rosa e Judith possuíam outro aspecto em comum nas trajetórias de violências: eram praticantes da religião evangélica. Angela mencionou que a religião foi um dos aspectos que a detinha de separar-se do agressor. Relatou ter crescido em um ambiente evangélico em que a violência contra as mulheres era naturalizada. Acreditava que a mulher deveria “pertencer ao marido”, devendo ser submissa e obediente e, caso não fosse, o companheiro poderia usufruir de seu corpo.
A análise feita por Nunes e Souza (2021b) demonstra que as religiões pentecostais corroboram para a submissão feminina e para a manutenção do sistema de dominação patriarcal. Meneghel et al. (2017) também apontam relação entre evangélicas pentecostais e o feminicídio dada pelos princípios vinculados à subordinação das mulheres e pela relação de pecado frente ao divórcio. Essa relação é evidenciada em preceitos conservadores como o assujeitamento das mulheres aos homens, as normas de gênero, a demonização das mulheres, a desigualdade de poder e outros elementos presentes nas igrejas pentecostais (Meneghel et al., 2017; Nunes & Souza, 2021a, 2021b). No segmento evangélico, o homem é a “cabeça da casa”, cabendo às mulheres um valor secundário e submisso (Nunes & Souza, 2021b). Essa estrutura contribui para naturalização da subordinação feminina.
Além dos determinantes religiosos, a literatura aponta vários motivos para a permanência das mulheres junto aos autores de agressão. Entre eles, podemos citar a dependência emocional, financeira e a existência de filhas/os (Gomes & Fernandes, 2018), elementos esses que se encontram na narrativa de Angela. Em relação a dependência emocional, a participante compartilhou que o ex-marido comprava regalos e mantinha relações sexuais de forma tal que se configurava em um modo de manter o ciclo de violência. Referente a dependência financeira, apesar de não trabalhar, a manipulação a fazia acreditar que era ele quem a sustentava, cuidava das finanças da casa e das filhas do casal.
Angela relatou que comprava presentes para as crianças e dizia ter sido o ex-marido, no movimento ilusório, para si e para elas, de que ele era um bom pai. Embora não seja o foco desse estudo, entendemos importante relatar que o ex-marido de Angela também abusou sexualmente das filhas. Essas violências foram descobertas pela participante somente após a separação do casal. Uma das filhas tentou suicídio aos oito anos por causa do abuso, fato que foi revelado a Angela apenas após a criança atingir a maioridade.
Em relação a saúde mental, a vivência de violências pode impactar as mulheres de diferentes formas. Pode gerar sintomas físicos como dores de cabeça, depressão, transtorno do pânico, estresse pós-traumático, ansiedade etc.; afetar as emoções ocasionando insegurança, impotência, tristeza, medo etc.; debilitar o desenvolvimento social enfraquecendo os laços sociais, comprometendo a produtividade no trabalho e na escola, e a construção de novos relacionamentos (Avdibegovic, Brkic, & Sinanovic, 2017; CFP, 2012; Ferrari et al., 2016; OMS, 2021; OWH, 2017).
Quanto a intersecção entre a vivência das tentativas de feminicídio e os impactos na saúde mental, identificamos múltiplas vivências que afetaram a vida cotidiana, a subjetividade e as relações sociais das participantes. Entre os impactos na dimensão física da vida, observamos o aumento da pressão arterial (2%, n=2), automutilação (1%, n=1), dores de cabeça (6%, n=6), tentativa de suicídio (2%, n=2), aborto (1%, n=1), uso de drogas (1%, n=1) e uso constante de remédios (2%, n=2). Quanto aos impactos na dimensão social, as participantes indicaram fragilização dos laços familiares (3%, n=3) e de amizade (4%, n=4), conflitos com família (2%, n=2) e amigas/os (3%, n=3), baixa produtividade no trabalho (5%, n=5) e na escola (3%, n=3), demissão do trabalho (1%, n=1), trancamento/desistência de matrícula (1%, n=1), dificuldades em se relacionar com outros/as parceiros/as (5%, n=5) e isolamento (6%, n=6). No que concerne os impactos emocionais, verificamos pensamentos depressivos (7%, n=7), crises de ansiedade (7%, n=7), estresse (5%, n=5), alterações do sono (5%, n=5) e na rotina alimentar (4%, n=4), impotência frente atividades cotidianas (6%, n=6), insegurança (5%, n=5), medo (8%, n=8) e baixa autoestima (6%, n=6), conforme tabela 3.
Percebemos que o medo, a insegurança e a desconfiança foram elementos experimentados após as tentativas de feminicídio ressaltados nos relatos das participantes. Embora sejam sobreviventes às tentativas de feminicídio, as participantes se percebiam com várias fragilidades psicossociais que comprometem suas experiências afetivas, sociais e profissionais.
Eu não acredito... Eu não confio. Eu fico com medo de me relacionar com outra pessoa. Fico pensando assim, e se matar durante... Durante a noite. E se acontecer a mesma coisa. E... Não tenho confiança... Confiança de me relacionar. Toda vez que uma pessoa vem se aproximar ao longo desse tempo. Aí eu falava assim, será que tá interessada no meu dinheiro. Será só porque eu só porque eu sou policial militar aposentado. A gente não ganha ruim. Aí tem todo esse contexto de insegurança (Angela).
Quando sofremos algum tipo de violência doméstica, pressão psicológica, e atentados contra nossa vida, sem dúvidas o medo é algo que passa fazer parte da nossa vida, a insegurança e principalmente a dificuldade de conseguir se relacionar com alguém novamente! Pois não só temos o medo de confiar em alguém novamente, como também não queremos correr riscos de passar por um relacionamento abusivo! São anos e anos para se recuperar da devastação psicológica que foi causada (Rosa).
Sinto medo constante que ele possa aparecer para me matar ou algo do tipo. Que ele possa me ligar. Ou me encontrar. Qualquer barulho eu não durmo mais. Acordo toda hora assustada (Djamila).
Ter pensamentos depressivos recorrentes após a tentativa de feminicídio foi ponto comum entre as participantes – 7 relataram ter vivenciado essa forma de adoecimento psíquico. Angela narrou também esse impacto sobre sua saúde mental. Ainda que medicada, tentou suicídio. Dada essa experiência, o ex-marido a taxava de “louca”, fazendo-a vivenciar um difícil ciclo de reviolências. A história de Angela não é uma história isolada, ela encontra eco nas múltiplas histórias de mulheres que passam por vivências de violência doméstica e tentativas de feminicídio.
Assim, como eu não pude, eu não podia matá-lo, eu ficava imaginando dá um tiro na minha cabeça e morrer. Quantas vezes também eu saí correndo para sair... Sair correndo assim, correndo, correndo, correndo, para me livrar daquela dor. Mas eu ficava imaginando... Eu tenho filhas, só que as minhas filhas também tava em sofrimento (Angela).
O feminicídio se inscreve na trajetória de mulheres que, enquanto categoria, são historicamente excluídas e subalternizadas na sociedade. Essa experiência de exclusão e subalternidade, na intersecção com as violências, é geradora de sofrimento e provoca o agravamento da saúde mental das mulheres em situação de violência de gênero e de tentativas de feminicídio. Identificamos que a ordem patriarcal determina a produção de subjetividades adoecidas e fragilizadas que, no curso da sociedade, tem infringido um sofrimento às mulheres. O adoecimento mental das mulheres é também uma estratégia para a manutenção do patriarcado e exclusão delas da arena pública. Por fim, ressaltamos que o continuum de violências experimentadas ao longo da trajetória de vida e no relacionamento afetivo-conjugal pode comprometer a saúde mental das mulheres ao ponto de levá-las a pensarem em aniquilarem a própria existência.
Conclusão
O presente estudo teve como propósito investigar a saúde mental das mulheres sobreviventes a tentativas de feminicídio. Estudar as tentativas de feminicídio traduz um posicionamento afetivo-ético-político que busca fomentar o protagonismo das mulheres, afinal, quando uma mulher morre, a sua história é contada na perspectiva de terceiras/os do assassino ou de terceiros, quando sobrevive é ela quem conta.
Os impactos das violências naturalizadas e extremas na vida das mulheres são múltiplos, sendo os mais recorrentes, entre as participantes, o enforcamento e sufocamento, situações em que ao dirigir de maneira perigosa o (ex)parceiro coloca a vida da mulher em perigo, e bater com a cabeça em objetos ou locais cortantes. Essas estratégias estão vinculadas a situações cotidianas e à apropriação de objetos que compõem a rotina dos casais. Nesse campo, é importante evidenciar o uso de arma de fogo nas tentativas de feminicídio.
Nos anos do governo bolsonarista, contexto em que essa pesquisa foi desenvolvida, é certo que o agravamento dessa situação esteve vinculado ao fomento à política armamentista que ampliou o porte e posse de arma. O uso de armas de fogo em tentativas de feminicídio, quando comparada a outras estratégias, se revela como um meio cruel com maior capacidade de aniquilamento. Dessa forma, o enfrentamento das violências contra mulheres e dos feminicídios deve envolver políticas de prevenção e conscientização, mas também, formas de coibir o acesso a armas.
Dentre os impactos na saúde mental, ressaltamos as sensações constantes de insegurança, medo, desconfiança, dificuldade de se relacionar novamente e os prejuízos financeiros. As sobreviventes das tentativas de feminicídio se deparam cotidianamente com esses sentimentos e experiências que limitam suas vidas enquanto mulheres e que as impede de se inserirem em atividades da arena política. Nesse ponto, evidenciamos que os impactos de materializam tanto na dimensão privada como na dimensão pública de suas vidas.
As mulheres negras, socialmente e historicamente, já excluídas pela estrutural desigualdade étnico-racial, merecem atenção. A intersecção entre raça/etnia e vivências de violência agrava a vulnerabilidade das mulheres pretas e pardas. Assim, é importante que novos estudos que busquem compreender as idiossincrasias no campo da saúde mental de mulheres negras.
Quanto às limitações desse estudo, destacamos o número de participantes e o atravessamento da pandemia de COVID-19. Em virtude das medidas de biossegurança, o percurso metodológico levou ao uso de formulários eletrônicos. É certo que esse caminho alcançou participantes que tinham acesso a redes sociais e internet. Semelhantemente, das cinco participantes que responderam o formulário e se disponibilizaram em participar da entrevista, apenas uma manteve o interesse.
Referências
Avdibegovic, E., Brkic, M., & Sinanovic, O. (2017). Emotional profile of women victims of domestic violence. Materia socio-medica, 29(2), 109. Recuperado de: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5544446/.
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