Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023010. jan./dez. 2023

DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.10

 

RECEBIDO EM: 18/01/2023

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 24/02/2023

VERSÃO FINAL: 27/02/2023

APROVADO EM: 28/02/2023

 

Um palco para o desejo

 

Vivès, J-M. (2022). O Teatro do Inconsciente: ou como Freud inventou a psicanálise. São Paulo: Aller, 160p.

 

A análise do artifício transferencial é a via real que conduz ao (ir)real do inconsciente. (Jean-Michel Vives, 2022, p. 33)

 

Danielle Vanessa Lima da Silva Taulois

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós- Graduada em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional. Formação permanente na Escola Letra Freudiana, seção Rio de Janeiro, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6819-1745. E-mail: danielletaulois@gmail.com.

 

 

Jean-Michel Vivès é psicanalista, professor de psicopatologia clínica na Universidade Côte d’Azur. É membro do movimento Insistance em Paris e do Corpo Freudiano- RJ. No Brasil, publicou A voz na clínica psicanalítica (2012), Variações psicanalíticas sobre a voz e a pulsão invocante (2018), A voz no divã (2020). O autor é também dramaturgo e músico, com interesse especial pela ópera e pela prática teatral. Seu mais recente livro, O Teatro do Inconsciente: ou como Freud inventou a psicanálise oferecendo um palco para o desejo, foi publicado em novembro de 2022.

Desde sua origem, a psicanálise reconheceu a relevância da arte, restando questões significativas como: quais são os recursos que dispomos para a realização dessa tarefa de construir um diálogo entre a psicanálise e o teatro?

O referido livro, foi publicado pela editora Aller, conta com a cuidadosa tradução de Luis Izcovich e é dividido em cinco capítulos, além do anexo intitulado Reminiscências do professor Sigmund Freud por Max Graf. Jean-Michel Vivès tem como fio condutor o retorno à obra de Freud para articular a psicanálise e o teatro a partir da questão transferencial. Com sua escrita precisa e generosa, o autor nos leva a uma importante pergunta: como a catarse permitiria precisar o que está em jogo na condução da cura e na dissolução da cena de ilusão transferencial?

É necessário lembrarmos que a cena que o sujeito tem diante de si desliza pelo tecido da linguagem, quando as cortinas se abrem e se tornam o palco transferencial. Isto é, o ponto de partida para a representação de uma teia discursiva, da agonia verbal, do silêncio, do palavrório, do estranho, do espanto, do teatro particular, ou ainda, teatro íntimo, para fazermos uma alusão ao grande dramaturgo August Strindberg. A leitura do livro nos adverte que, tal como nas cortinas do teatro, as portas do consultório do analista se abrem para o palco da transferência, com a diferença de que ali onde o teatro colocava a questão numa moldura protegida pelo véu da ficção dramática, na análise o sujeito fala, en(cena) e, na transferência, experimenta uma série de inversões dialéticas. Em síntese, “a psicanálise é uma experiência dialética” (Lacan, 1998, p. 215).

Na primeira parte do livro, o autor nos direciona para 1895, antes mesmo da fundação da psicanálise. Em coautoria com Josef Breuer, Freud escreveu Estudos sobre a histeria (1895). Nessa importante obra, a fantasia e o devaneio histérico são comparados a um “teatro particular”, esse termo teria sido cunhado pela própria paciente, Anna O, cujo caso constitui um passo valioso para as primeiras elaborações da teoria psicanalítica.

No início do primeiro capítulo, Jean-Michel Vivès cita autores que reconhecem o trabalho da teatralidade na constituição de uma análise, dentre eles, o psicanalista e dramaturgo brasileiro Antonio Quinet, que propõe a seguinte formulação: “o inconsciente é estruturado como um teatro”, em seu livro O Inconsciente Teatral (2019). Para Vivès (2022, p. 38), “não é o inconsciente que é teatral, mas sua manifestação, particularmente sob a forma transferencial”. Dito de outro modo, há consonâncias entre o inconsciente e o teatro, porém com a enorme diferença de que o analisante experimenta a cena sem a distância do “como se” próprio da representação teatral. Nesse ponto, a tese sustentada é a de que o teatro, “particularmente esse teatro singular que é a cena da transferência – presentifica mais do que estrutura o inconsciente” (Vivès, 2022, p. 35). E o que seria este artifício psicanalítico que é a transferência? Este foi o desafio que Jean-Michel Vivès se dispôs a enfrentar em seu livro.

Ao longo da obra, o leitor é guiado para a hipótese de que, na ficção transferencial, o passado se põe em jogo [se met en jeu], se representa no presente. Nessa perspectiva, Jean-Michel Vivès sublinha que o que se figura no palco da transferência é uma recomposição de traços guardados, ou seja, uma ficção transferencial, uma compulsão à representação que permite colocar em ato um saber até então (in)sabido.

O autor se deteve em diferenciar o funcionamento do palco transferencial da arte da representação dramática. “A cena da transferência seria, portanto, numa acepção bastante freudiana, uma cena de ilusão no sentido em que aquilo que nela é posto em jogo [mis em jeu] são afetos autênticos que o desejo carregaria como realidade” (Vivès, 2022, p. 54).

Na segunda parte do livro, a questão da estética é aprofundada. O autor trabalha um artigo importante da obra freudiana, “Personagens psicopáticos no palco”, escrito em 1905 ou 1906. Freud confiara esse texto a Max Graf, que só o publicou em 1942. Vivès permite-nos compreender que o texto freudiano pode dar lugar a uma estética psicanalítica, “estética que se vê fundada sobre uma economia do prazer e do gozo”. (Vivès, 2022, p. 66). O autor apresenta tais desdobramentos e nos direciona para o que Lacan trabalhou sobre a função da tragédia e a cartase, em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise.

 O leitor pode se assegurar de que, ao ler este livro, encontrará não só uma apresentação que se pauta pelo rigor da exposição do que Jean-Michel Vivès fez da teoria psicanalítica e do teatro, mas também sua contribuição singular. O último capítulo do livro expõe o relato de uma atividade artística, proposta a jovens com idade entre 17 e 22 anos. Esse trabalho demonstra o desejo do analista na cena e de como o teatro do inconsciente se desdobra, efetuando-se no palco da transferência uma experiência dialética.

Aos interessados pela psicanálise e aos interessados pelo teatro, O Teatro do Inconsciente: ou como Freud inventou a psicanálise oferecendo um palco para o desejo, de Jean-Michel Vivès, é uma obra imprescindível. O livro é o testemunho de que o palco da transferência é o que possibilita o espetáculo da manifestação do inconsciente.

 

Referências

 

Breuer, J., & Freud, S. (2016). Estudos sobre a histeria. In Obras Completas, v. 2. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1895).

 

Freud, S. (2015). Personagens psicopáticos no palco. In Obras Incompletas de Sigmund Freud – Arte, literatura e os artistas. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original pulicado em 1942).

 

Lacan, J. (1988). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário original proferido em 1959-1960).

 

Lacan, J. (1998). Intervenção sobre a transferência. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1951).

 

Quinet, A. (2019). O inconsciente teatral. Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições.

 

Vivès, J-M. (2018). Variações psicanalíticas sobre a voz e a pulsão invocante. Rio de Janeiro: Contracapa.

 

Vivès, J-M. (2019). A voz na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa. (Trabalho original publicado em 2012).

 

Vivès, J-M. (2020). A voz no divã: Uma leitura psicanalítica sobre ópera, música sacra e eletrônica. São Paulo: Aller Editora.

Vivès, J.-M. (2022). O teatro do inconsciente: ou como Freud inventou a psicanálise oferecendo um palco para o desejo. Trad. William Zeytounlian. São Paulo: Aller Editora.