Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023012. jan./dez. 2023

DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.12

 

RECEBIDO EM: 04/10/2022

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 01/03/2023

VERSÃO FINAL: 16/03/2023

APROVADO EM: 23/03/2023

 

Juventude precarizada e a racialização do tráfico de drogas

Precarious youth and the racialisation of drug trafficking

 

 

Flávia Fernandes Guimarães

Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Psicóloga pela PUC Minas e Mestre em Psicologia pelo programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8951-6174. E-mail: flaviafgui@yahoo.com.br. Endereço: Universidade Federal de Juiz de Fora. Rua José Lourenço Kelmer, s/n – Martelos. CEP: 36.301-160, Juiz de Fora, MG – Brasil.

 

 

Fernando Santana de Paiva

Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Doutor em Psicologia (Psicologia Social) pela Universidade Federal de Minas Gerais. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6030-9777, e-mail: fernandosantana.paiva@yahoo.com.br.

 

 

 

Resumo

Este artigo, fruto de pesquisa realizada com jovens inseridos no tráfico de drogas, objetiva analisar os sentidos produzidos por jovens negros e periféricos a respeito de suas experiências no mercado ilegal de drogas, a partir de uma perspectiva que interseccione os marcadores de raça e classe social. Realizou-se uma investigação qualitativa com nove jovens em cumprimento de medida socioeducativa, durante cinco meses. Nesse período, empregou-se a observação participante, diário de campo e entrevistas narrativas, a partir do método de história de vida, buscando explicitar os entrelaçamentos das trajetórias e condições de vida narrados pelos sujeitos e os desdobramentos em suas experiências no tráfico de drogas. Para tanto, baseou-se em referencial teórico que aprofunda a discussão sobre a juventude negra e periférica como objeto permanente do poder punitivo. A criminalização desse contingente é uma constante histórica, reproduz a miséria e a segregação. Nesse sentido, os resultados desse estudo mostram que o tráfico de drogas é reiteradamente uma alternativa ao cenário de escassez de direitos e políticas públicas destinadas a esse contingente. Assim, essa atividade se apresenta como um caminho para esses jovens, contraditoriamente, sonharem e buscarem uma vida autônoma, distinta da realidade que os cerca.

Palavras-chave: Juventude; narcotráfico; racialização; criminalização; proibicionismo.

 

 

Abstract

This article, the result of research conducted with young people involved in drug trafficking, aims to analyze the meanings produced by black and peripheral young people about their experiences in the illegal drug market, from a perspective that intersects the markers of race and social class. A qualitative research was conducted with nine young people in compliance with a socio-educational measure, for five months. During this period, it was used participant observation, field diary and narrative interviews, based on the life history method, seeking to explicit the interweaving of trajectories and life conditions narrated by the subjects and the unfolding of their experiences in the drug trade. To this end, it was based on theoretical references that deepen the discussion about the black and peripheral youth as a permanent object of punitive power. The criminalization of this contingent is a historical constant, reproducing poverty and segregation. In this sense, the results of this study show that drug trafficking is repeatedly an alternative to the scenario of scarcity of rights and public policies for this contingent. Thus, this activity presents itself as a path for these young people, contradictorily, to dream and seek an autonomous life, distinct from the reality that surrounds them.

Keywords: Youth; drug trafficking; racialization; criminalization; prohibitionism.

 

               

Os fatos nos mostram que o Brasil não lidou e ainda não lida bem com o seu passado escravista. As camadas mais empobrecidas da população, compostas por inúmeras pessoas que foram escravizadas, permanecem alvo da violência estruturali que, ao longo do tempo, vem se atualizando e vestindo novas roupagens (Oliveira & Ribeiro, 2018). Essa prática seletiva e de controle destinada a determinados sujeitos e grupos sociais se expressa nas medidas tomadas em relação a jovens, majoritariamente negros, periféricos e precarizados, que em suas trajetórias se inserem no comércio ilegal de drogas no Brasil.

              Importa realçar que este estudo aborda o conceito de juventude pela perspectiva social, por meio da associação de determinantes como origem de classe social, realidade sociocultural e familiar. Dessa maneira, tomamos a ideia de juventude como um momento da vida marcado pela exigência de incorporação de novos papéis sociais impostos, por exemplo, pela família, mercado de trabalho e êxito social. Assim, trata-se de um construto não acabado, juventudes, fruto de uma história de representações, evidenciado pela diversidade dos grupos juvenis marcados pela realidade em que se forjam (Fraga & Iulianelli, 2013). Destaca-se ainda que a concepção de precarização da juventude possui íntima relação com a lógica de proteção social, caracterizada frequentemente por ações fragmentadas, pontuais, visando à lógica do capital. Nesse cenário, o movimento estatal brasileiro, com o fortalecimento de perspectivas neoliberais, tende a enfraquecer as raras e parcas políticas públicas para as juventudes, ampliando o que Scherer (2018) afirma ser a conjuntura de (des)proteção social para os jovens no Brasil.

              Cumpre salientar que o Brasil possuía 117.207 jovens em cumprimento da medida socioeducativa até 2018 (Brasília, 2019). Em 2019 a Secretaria de Atendimento Socioeducativo (SUASE) atendeu 2.979 indivíduos, sendo 2.357 em Internação. A maioria dos jovens atendidos era negra (pardos e pretos), correspondendo a 78% do total dos jovens atendidos (Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social [SEDESE], 2020). Nesse sentido, desde a Conferência de Haia [1912], considerada a primeira reunião internacional importante sobre o controle de drogas, há ainda hoje um discurso comum, bastante racializado, que associa intencionalmente a juventude negra periférica às drogas e à violência. Além do mais, as ações do Estado, justificadas pelo paradigma bélico da “Guerra às Drogas”, corroboram e acentuam as vulnerabilidades e violações relacionadas às condições de raça e classe no Brasil (Karam, 2013).

Karam (2013) ainda nos alerta que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro publicou a primeira lei sobre drogas, em 1830, a qual proibia o uso e venda do “pito de pango” [maconha – consumida por africanos escravizados como hábito recreativo]. Nesse momento se iniciou o elo entre racismo e proibicionismo no Brasil, antes que qualquer normativa internacional repressiva fosse editada (Boiteux, 2019). Cumpre salientar que por trás da palavra “raça” sempre haverá contingências, conflitos, poder, uma vez que se refere a um conceito relacional e histórico (Almeida, 2018). No período pós-abolição não houve ação estatal efetiva com o intuito de intervir nas desigualdades étnico raciais propiciadas pelo período escravocrata. Esta inércia do Estado favoreceu, em 130 anos, que o racismo se constituísse como uma marca instituinte na sociedade brasileira.

              De acordo com o que nos alerta Flauzina (2008), a sinergia entre o racismo, o autoritarismo e o ódio de classes sustenta a seletividade do sistema penal, estruturando as práticas sociais e o discurso midiático dominante, promovendo a ideia de necessidade de uma guerra, que tem sido travada nos territórios brasileiros. Nessa perspectiva, essa guerra em nome das drogas reforça no imaginário social a figura do jovem negro como traficante, que deve ser combatido (Feffermann, 2006; Rocha, 2015). Negros e pobres jamais descansaram da violência promovida pelo Estado autoritário, porém, o que vemos hoje, é o agravamento do projeto genocida necropolítico (Mbembe, 2016).

              Em vista disso, Achille Mbembe (2016), abarca com o conceito de necropolítica que o corpo matável é o que está em risco de morte a todo instante, em decorrência do parâmetro determinante primordial de raça. E acrescenta que cabe ao Estado estabelecer o limite entre os direitos, violência e morte. Entretanto, utiliza-se do seu poder para criar as zonas de morte, reiteradamente compostas por grupos selecionados com base no racismo. Consoante com as ideias acima apresentadas, no Brasil impera um modelo de controle social permeado pela prática genocida-racial, onde a “disciplina periféricaii” fora alcançada por meio de agressões físicas explícitas e mortes, instrumentos indispensáveis para o alcance da domesticação dos indivíduos pela violência ou pelo medo. Nesse sentido, Achille Mbembe (2016) afirma que “fazer morrer” e “deixar viver” constituiriam os limites e principais traços de um poder que executa um controle sobre as mortes e definição da vida como manifestação do poder.

              Mediante o exposto, pretendemos analisar os sentidos produzidos por jovens negros e periféricos a respeito de suas experiências no mercado ilegal de drogas, a partir de uma perspectiva que interseccione os marcadores de raça e classe social.

 

PERCURSO METODOLÓGICO

 

Trata-se de uma investigação de natureza qualitativa, que concebe o caráter histórico com o qual os fenômenos são compreendidos e considera os participantes como capazes de desenvolver modos específicos de percepção e interpretação do mundo. Nesse sentido, parte-se do princípio de que nenhum processo social pode ser compreendido de forma isolada, como uma instância neutra e acima dos conflitos ideológicos da sociedade, ao contrário, os processos de produção do conhecimento são entendidos de maneira vinculada às desigualdades culturais, econômicas e políticas que dominam a sociedade (Minayo, 2017).

A pesquisa aqui retratada é fruto de estudo realizado por Guimarães (2021), em decorrência de seu mestrado em Psicologia. A investigação foi realizada em uma das unidades de internação socioeducativa, em um município de médio porte do Estado de Minas Gerais. No período de realização do estudo, o sistema operava acima da capacidade de vagas nas unidades de internação (incluindo internação provisória), com taxa de lotação de 109%, em janeiro de 2020.

Os sujeitos do estudo foram jovens internos nas unidades socioeducativas em cumprimento da medida socioeducativa (MSE). Como critérios de inclusão foram utilizados: o tempo de internação e cumprimento da MSE, [mínimo de 45 dias em internação e ao menos 3 meses para o término]; a faixa etária de 15 a 18 anos; e a região de origem do jovem e da experiência no tráfico de drogas. Selecionamos 9 jovens com, em média, 16 anos, todos com experiências no comércio ilegal de drogas e residentes em cidades do interior de Minas Gerais, com atuação em regiões e/ou cidades distintas entre eles. Dessa maneira, consideramos, além das diversas e singulares trajetórias, as peculiaridades de cada região e formas locais de organização do tráfico. As singularidades regionais, em geral, interferem na maneira como os jovens se aproximam e se inserem no tráfico de drogas, na construção de sentidos atribuídos à atividade, bem como nas trajetórias forjadas dentro do comércio ilegal de drogas.

O trabalho de campo durou em torno de um ano, entre 2018 e 2019, desde os primeiros movimentos de aproximação até a imersão no lócus, que ocorreu por cerca de cinco meses. Este estudo utilizou a Observação Participante (OP), com registro das observações no local realizados no Diário de Campo e fez uso de Entrevista Narrativa. Um pesquisador realizou a OP ao longo de cinco meses, duas vezes por semana, cerca de 4 horas por dia de visita, durante as atividades rotineiras dos jovens instalados na unidade, iniciando a exploração do campo de pesquisa e propiciando a ambientação junto ao cenário dos participantes do estudo, buscando uma aproximação dos sujeitos. Ao final de cada encontro, os registros eram realizados em um bloco de anotações, fora do ambiente de observação.

As entrevistas narrativas, pautadas pelo método História de Vida, foram utilizadas como estratégia central de levantamento dos dados da pesquisa e realizadas com nove dos jovens observados. Assim, vislumbrou-se acessar dados sócio-histórico-culturais das trajetórias de vida, buscando alcançar as convergências entre a história individual e a coletiva (Pereira, Pegoraro & Rasera., 2017). As entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio e transcritas integralmente. Nesse caso, foram utilizadas dispensas de termo de consentimento livre esclarecido, lidas com cada participante e sanadas quaisquer dúvidas surgidas durante a leitura. No intuito de guardar as identidades dos participantes, seus nomes foram substituídos por abreviações de nomes fictícios. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana responsável, obedecendo aos critérios de ética na pesquisa com seres humanos, atendendo à Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, conforme parecer CAAE 11098919.6.0000.5147.

A Análise de Conteúdo temática foi utilizada para trabalhar os dados levantados a partir das entrevistas, buscando destacar as percepções sobre a realidade em que os participantes estavam inseridos. Ao final do percurso, os dados reunidos na pesquisa de campo abarcaram o processo histórico de escassez de direitos desse público jovem (Pessoa, Coimbra & Koller, 2017). Ao longo da análise, o conteúdo do diário de campo, decorrente do processo de observação, foi retratado de maneira a anunciar o percurso da pesquisa em campo, fazendo emergir os primeiros componentes alusivos ao tráfico de drogas, presentes nos discursos dos jovens participantes desta investigação.

 

RESULTADOS

 

Trajetórias que se forjam nas interseções com o tráfico

 

Escutando as narrativas dos entrevistados, constatou-se que esses jovens têm suas vidas precocemente abreviadas, seja pelos “corres” do mercado ilegal de drogas ou pela brutalidade do Estado. Nesses depoimentos, a infância, período em que se consideravam uma “criança normal”, quando ainda brincavam como qualquer outra criança, antes de se inserirem no tráfico, se revela ainda mais breve. Inicialmente, as lembranças de infância talvez tenham sido ofuscadas pelas adversidades experienciadas, assim como podemos perceber nos relatos de Gl: “Começar do começo? Como assim contar minha história de vida? Mas desde quando?... Ah, desde o início eu num [sic] lembro nada não” e de C: Ah, minha história, ah, pô, eu num tenho muita coisa pra falar não. Pô, minha história é meio triste, né?”

Inicialmente, até que se sentissem confortáveis ao narrar suas histórias de vida, o tráfico de drogas ocupava um lugar privilegiado nos relatos, como se as trajetórias tivessem começado a partir da inserção na atividade. Em geral, os relatos apontam experiências de profundo desamparo, desde tenra idade. O tráfico se revela como um meio de se incluírem em histórias coletivas, alcançando o reconhecimento deles e dos arredores, na tentativa de extinguir as experiências anteriormente vividas ou de se inscreverem por uma via que não seja a do sofrimento, conforme realçam A: “Ah, tipo assim, que eu entrei na vida do crime, né? Eu lembro a partir mais ou menos que eu entrei no crime” e L: “Como assim sobre a minha história? Como que eu comecei no tráfico? Pesquisadora: A sua história começa quando você começou no tráfico? L.: É.”.

               De acordo com Gomes et al. (2015), pode-se abordar o conceito de vulnerabilidade socialiii em casos de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, e em precariedade de direitos básicos. Entretanto, como preconiza a legislação brasileira vigente, a expressão “em situação de risco” está relacionada com carência e com delinquência. Logo, o que temos reverberando em nossa realidade é uma juventude e suas respectivas famílias desguarnecidas de políticas de proteção e acesso a direitos, além de serem ligadas a imagens de criminosos. Entre as explanações, os jovens participantes mencionavam com frequência o convívio social, caracterizando-se como uma criança “normal”, evidenciando período tão breve de suas trajetórias, encerrado pela inserção no tráfico, como nos relatos a seguir: “Era ir pro colégio, aí do colégio eu voltava, se tivesse dever de casa, eu fazia.... Gostava de dormir com meu pai quando eu era mais novo” (R). “Ah, todo dia, toda terça e quinta eu ia pro treino, aí eu começava a jogar futebol, eu dormia na casa do meu amigo, ele dormia na minha casa” (A).

Em acréscimo, sinalizavam que a inserção na atividade talvez os tenha roubado a infância, para se posicionarem como fora da norma ou do “normal”, o que já pode anunciar uma espécie de segregação sinalizada pelos entrevistados:

 

Antes disso [o tráfico] eu era um menino normal.... Como qualquer outro, porque tipo assim, porque eu não tinha também muita maldade, o negócio era estudar, é o que, era brinquedo antigamente, tipo assim, eu tive infância, né, que era a época brincava na rua com os meninos, de pique esconde, pique pega. (Ar)

 

Pesquisadora: Nesse período, antes de você... antes dos nove anos, como era sua vida lá com seus pais?

L.: A minha vida era normal, como de uma criança normal.

Pesquisadora: Como é uma vida normal de uma criança?

L.: Eu estudava, brincava, aí depois.

 

              Bocayuva e Nunes (2009) destacam que forças normativas fazem parte de nossa constituição, ao mesmo tempo em que as forjamos. Os sujeitos são constituídos pelo jogo de forças preponderantes culturalmente e pelas normativas impostas. Assim, a juventude pauperizada, aderida ao discurso proibicionista, se vê entre normas e medidas compulsórias, na tentativa de se posicionar como parte e não deslocada do sistema.

              Destaca-se que entre a infância e a inserção no tráfico não parece haver um intervalo definido, quando pensamos nos jovens negros, periféricos, integrantes do narcotráfico. Nesse intuito, essa passagem geralmente ocorre de maneira habitual, na medida em que começam a se ocupar dos perigos das vivências que colocam em risco sua integridade. Para os entrevistados, esse contexto crítico muitas vezes se aproxima da precariedade vivida na infância, já que são sujeitos reiteradamente cerceados de direitos e recursos para a sobrevivência (Bocayuva & Nunes, 2009).

              Além do mais, a sociabilidade dos jovens do tráfico de drogas sugere uma ambientação com as atividades ligadas ao mesmo, desde a infância, como eventos cotidianos. “Foi quando eu conheci essas pessoas do bairro da minha mãe que me convidavam pra sair para festa, essas coisas [...] naonde [sic] eu comecei a conhecer outras pessoas, comecei a me envolver mais a fundo” (G). Sobre isso, J afirma:

 

Num [sic] é que eu vendi, eu tava [sic] por exemplo, tava uns quatro, cinco moleque aqui, nós tava tudo junto, aí nós comprava vinho, comprava Coca-Cola, ficava umas muié [sic] lá, e os moleque vendendo. Eu num tava vendendo mesmo não, mas eu tava no meio do bolo. Se os home [sic] chegasse ali, era todo mundo ia [sic] preso.... Aí eu fiquei lá no meio deles [amigos] lá memo [sic], eles tava] vendendo droga memo, fui e comecei a envolver com eles lá.

 

Nesse sentido, grande parte dos participantes relata proximidade do tráfico, geralmente, tendo amigos e/ou familiares como intermediários, como destaca o trecho seguinte: Pesquisadora: “Quando você voltou [de um período residindo no RJ], você já conhecia o pessoal do tráfico, da sua região lá? C.: Não, já conhecia porque eu cresci junto com os moleque também que vendia, né?”. E Gl acrescenta: “Aí eu fui, tava lá visitando minha tia e meu pai lá, aí eu fui na casa que os meninos vendiam droga, era do lado lá, aí foi os meninos tava vendendo droga lá”.

Como já visto, o ingresso no mercado ilegal de drogas tende a acontecer paulatinamente. Além disso, regularmente os jovens percebem-na, em um primeiro momento, como um tipo de moeda de troca. Nesse caso, não fazendo vinculação com o comércio varejista de drogas:

 

Eu ficava muito nessa loja e do lado abriu um salão de cabeleireiro, que era dum [sic] amigo meu, só que não era só dele, era um lugar onde três cortava cabelo e esse amigo meu usava droga, cocaína.... Então ele começou a ‘ow, vai lá, busca uma droga pra mim. Foi naonde [sic] eu ia só pra andar de moto (G)

 

Adiantei umas drogas. Uma vez, a primeira vez que eu peguei, pum [sic], eu roubei uma moto. Aí eu passei pros moleque lá de C [cidade por onde circulava, próximo a de residência]. Os moleque lá põe umas moto pra matar os outro. Aí eles me deram um quilo de maconha, me deram um cordão de prata (J).

 

Nessa direção, Feffermann (2018) então destaca que o acesso ao tráfico de drogas acontece, frequentemente, a partir da familiaridade com a atividade. Em geral, essa juventude ingressa enquanto permanece nas redondezas da boca, e é notada pelos gerentes/vendedores do ponto de tráfico. Para muitos dos jovens negros e periféricos o tráfico poderia de início representar uma alternativa à escassez e/ou possibilidade de consumo: “Ah... comprar as coisas, ah, tudo que vem, se tem alguma coisa que cê [sic] queria ter e cê num [sic] tinha. Com dinheiro do tráfico cê arruma rápido. É, que a gente pode comprar, é uai. A gente pode, né?” (C). E A ainda afirma: “Cê pensa assim: pô, quero ter um daquele ali. Minha mãe não tem condição, minha tia também não. Ah... foi aí que, aí que nós vai pra vida do crime, né?”.

Em acréscimo a isso, além de se configurar como uma fonte de recursos para grande parte deles, ainda pode significar esperança, como se a atividade tivesse o poder de lhes propiciar algo impensável, uma possibilidade frente à realidade marginal: “Eu... via no vender droga... como esperança, por que se não consegue um serviço vai passar fome? Vai catar latinha? Latinha não dá dinheiro” (G).

 

Num [sic] tinha assim, oportunidade nem nada, ninguém me dava oportunidade, aí eu entrei mesmo, pro tráfico mesmo, comecei vendendo... muita coisa que alguns tem e nós num tem, porque nós mora em morro assim, aí nego vê nós de outro jeito, né mano? Nego vê nós de outro jeito fala: ‘ah, aqueles ali num tem jeito com eles não, aqueles ali é favelado’ (C).

 

              Nesse ponto é importante realçar que os jovens naturalmente manifestam o desejo de experimentar o novo, permeado por incertezas e sede de conhecimentos. Sincronicamente, a juventude figura o retrato da sociedade, expondo angústias, medos, assim como esperanças sobre as perspectivas visíveis, em geral, vislumbradas através do tráfico de drogas. Nesse cenário, a violência é parte de como a sociedade contemporânea se apresenta, no que se refere a inseguranças e riscos. Essa juventude participa de uma configuração societal de poucas oportunidades, preenchida pela criminalização e, assim, se torna alvo fácil para o tráfico (Feffermann, 2018).               Em acréscimo ao exposto, Lyra (2013) sugere que, em nossos tempos, os jovens anseiam por emancipação. Nessa direção, os perigos revelados nas atividades do tráfico podem ser entendidos como uma forma de transição do jovem para a vida adulta, bancando as obrigações e deveres, e requerendo os direitos desse novo papel.

              É indispensável destacar que a realidade dos jovens aderidos ao narcotráfico evidencia que, em sua maioria, vivem em situação de extrema pobreza. Destarte, o comércio ilegal de drogas se revela uma opção entre precárias alternativas, como já sinalizado. Assim, a conjuntura permeada pela miséria, enfraquecimento de recursos e direitos desses sujeitos se acentua, em face de um mercado de trabalho cada vez mais excludente (Faria & Barros, 2011). Em maior número, as oportunidades destinadas a essa parcela da população delatam o modelo societal segregador, que reservam para esse público as ocupações mais precárias e subalternizadas. Desse modo, reiteradamente, enxergam nos processos do narcotráfico, uma maneira de driblar o sistema que reiteradamente os inclui, marginalmente (Rocha, 2015).

              Assim sendo, eles ingressam na vida adulta precocemente, frente à atribuição que lhes é imposta de assegurar a própria subsistência em um cenário amedrontador, garantido pelo Estado penal. Desse modo, esse nexo desumano de inclusão marginal percebe jovens subalternizados como criminosos e/ou não humanos, excluindo-os dos moldes sociais de comportamento ou de consumo. Essa lógica, por conseguinte, os destitui do lugar de cidadão e os conduz a situações de alvos da violência social, praticada pelo Estado (Silva, 2005).

              O mercado de trabalho dificilmente absorve esse mesmo público de jovens, para os quais são destinadas posições restritas e subalternizadas tanto no âmbito do trabalho formal, quanto no informal. Posto que, em geral, essa parcela da população apresenta baixa escolaridade e profissionalização, costumam ocupar postos de trabalho muito específicos no mercado formal. Nesse caso, é notória a intermitência entre a informalidade e as atividades ilegais acessadas por jovens pobres, periféricos e negros. Aliado a esse cenário, o mercado ilegal de drogas compõe o escopo de possibilidades desses indivíduos e seus familiares, que se posicionam às margens da sociedade salarial, ocupando posições profissionais precárias, ratificando o cenário de extrema pobreza e reiterando as desigualdades sociais (Galdeano & Almeida, 2018).

Ademais, salienta-se que os integrantes dessa pesquisa, por estarem institucionalizados, durante a participação nesse estudo, estavam formalmente assistidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os princípios fundamentais do ECA, previstos nos artigos 4.º, 5.º e 7.º, preconizam que que esses indivíduos devem ser a prioridade para o Estado, para a sociedade e para a própria família, com vistas a assegurar que estejam salvos de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão (Brasil, 1990). Entretanto, fica expresso que esse mesmo público segue na mira da seletividade penal, conforme perfil dos jovens em cumprimento da MSE, fornecido pela SUASE, dificilmente contemplado pelas políticas governamentais, pautadas pelo regimento supracitado.

              Dessa maneira, salienta-se que uma análise sobre juventudes deve considerar as múltiplas interseccionalidades que frequentemente cruzam as trajetórias de vida desses sujeitos, abarcando a dialética entre particularidades e totalidades nas relações que esses indivíduos constroem frente à própria realidade, a fim de evitar uma apreciação homogeneizada de suas experiências. Ademais, destaca-se que as trajetórias de vida desses jovens brasileiros vêm sendo atravessadas por excessivos processos de violação de direitos, resultantes da dinâmica de reprodução do capital, em que a pobreza, a falta de acesso a serviços básicos e altas taxas de violência são algumas das expressões desse modo de produção e reprodução do valor na sociedade capitalista (Scherer, 2018).

O lapso temporal entre a Lei do Ventre Livreiv, de 1871, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, evidencia o caráter elitista do país, fruto da colonização e do período escravocrata. Desde o período de ocupações por colonizadores, as práticas políticas previam aprisionar crianças, já que eram tidas como potencialmente criminosas (Santos, 2008).

              Em acordo com a conjuntura acima especificada, desde a escravidão, o processo de construção do mercado de trabalho originou um duplo medo: das massas negras e do movimento operário. Desde esse momento histórico, o mercado de trabalho no Brasil se revela com marcas supressoras, segregadoras e depreciativas (Batista, 2013). Em sintonia com o contexto descrito, há uma relação entre a exploração da juventude em atividades profissionais formais e o ingresso desta no tráfico de drogas. Nesse caminho, o tráfico confirma o ciclo de exploração do trabalho ao qual essa juventude está submetida (Galdeano & Almeida, 2018). De modo geral, para aqueles indivíduos reiteradamente segregados do mercado de trabalho formal ou cujas funções são em geral precárias e inferiorizadas, as atividades ilegais podem se tornar facilmente uma alternativa (Wacquant, 2008).

              Ademais, pautando-se pela lógica proibicionista, ampliam-se os riscos de produção, consumo e distribuição, encarecendo a mercadoria e elevando os lucros. Assim, o narcotráfico se apresenta como uma ocupação atrativa, uma esperança de crescimento social e econômico, que circunda a vida de “difíceis ganhos fáceis”, como assinala Vera Malaguti Batista (2013). Conforme ratifica a autora, em um mundo onde a lei da oferta e da demanda é a mais valorizada, a droga se configura como mercadoria altamente rentável.

              De acordo com as palavras de Lyra (2013), as atividades legais e ilegais são diariamente acessadas pelos jovens de maneiras distintas. Assim, os sujeitos aderidos ao narcotráfico e outras atividades ilegais se moldam aos modelos de comportamento legitimados socialmente, ou seja, objetivam autonomia, como visto a seguir: “Foi fácil, mudou muita coisa. Tudo veio fácil. Mudou, o que mudou foi nisso. Tudo que era difícil ficou fácil” (C). “Tipo assim, você fica vendendo droga, dinheiro vem fácil. Na hora que cê pega o dinheiro, se tiver com cinco mil, cê gasta num dia. Agora cê pensa, cê trabalhando, cê ganhar cinco mil?” (A). “Aí depois, eu entrei pro tráfico, era mais fácil pra mim, né?... ter minhas coisa é melhor, num [sic] depender da minha família” (L).

 

Entretanto, no trajeto rumo às aspirações e sonhos, os entrevistados enfatizaram as repetidas perdas, frequentemente resultantes das atividades ligadas ao tráfico de drogas: “Tudo que vem fácil, vai fácil. Cê perde fácil” (C). “Ah, mas perdi tudo, aí num [sic] funcionou foi nada. Do que eu tinha eu perdi tudo... ah, perdi moto, dinheiro que eu tinha. Perdi, a polícia tomou” (Gl). “Por um lado... só me deu prejuízo também, já tomei muito prejuízo também. Perder dinheiro pros polícia, perder droga também, aí é ruim” (L).

Destarte, conforme realça Mello (2014), a juventude brasileira vem sendo objeto de exploração desde a colonização. Talvez, pouco tenhamos caminhado desde então, se pensarmos que o trabalho semiescravo de crianças, embora ilegal, ainda seja prática comum no país. Tal realidade se agrava se mencionarmos que o Brasil possui uma legislação avançada na proteção dos direitos das crianças e adolescentes, prevista no ECA (1990). Em geral, a exploração do trabalho infantil se dá no mercado informal e essa ilegalidade continuamente representa uma realidade que as autoridades optam por ignorar (Mello, 2014).

 

Um sistema voltado para jovens negros e periféricos

              Karam (2013) nos aponta que o sistema promove o uso social do tráfico, sua alta lucratividade, mas propaga um discurso moralista e criminalizador da população aderida à venda de drogas, em vista do mercado de trabalho segregador. Nesse sentido, a manutenção da ilegalidade propicia ainda maior lucratividade e marginaliza ainda mais a juventude pobre e negra brasileira.

              Além disso, como enfatiza Deborah Small (2016), o sucesso da “Guerra às Drogas” pode ser notado na medida em que os indivíduos confiam que há um perfil social mais inclinado à criminalidade que outro e, além disso, que o grupo mais atingido pelas condutas intervencionistas do Estado também passa a se orientar por essa lógica. Tais concepções são centrais no funcionamento dos pontos de varejo da droga e equivalem a um alto nível de vulnerabilidade dos jovens aderidos à atividade (Sapori, 2011), como exemplifica o relato abaixo:

 

Eu tava jogando bola, aí os polícia veio e eu falei: ‘o que tá acontecendo?’. Eles falou: ‘vamu [sic] ali que eles tá te acusando dum assalto’... Aí eles me levaram lá, mostraram vídeo e eu: ‘eu num [sic] tenho nada a ver com isso aqui não, olha o tamanho do moleque, olha o meu tamanho... Aí foi uma vítima lá e falou que num me reconheceu não. Aí a outra vítima foi e falou que era eu. Aí nisso eu fui pra sétima, na sétima eu fui e subi pra cá no CI (C).

 

              Desse modo, quando não há alinhamento entre os agentes do Estado e os agentes do crime, referentes às atividades varejistas, os jovens se tornam alvos da violência. As ameaças de morte associam diretamente esses sujeitos aos construtos “bandido” e “criminoso”, autorizando a matar ou os aproximando da ideia de que um sujeito poderia ser matável, se sobrepondo a qualquer outra caracterização desses jovens, como a de jovem trabalhador, por exemplo (Galdeano & Almeida, 2018). Seguidamente, as narrativas evidenciam abordagens policiais violentas, assim como percebido no relato A: “Eu apanhei pra caralho, depois eles foi [sic] e me liberaram”.

Bocayuva e Nunes (2013) salientam que a visão seletiva do sistema penal para jovens infratores e a diferenciação no tratamento oferecido aos jovens de distintas classes sociais, reitera que o problema do sistema não é a droga em si, mas a forma de controle da juventude previamente vista como perigosa. Desse modo, a criminalização do narcotráfico potencializou os sistemas de controle social, ressaltando seu viés genocida. Nesse pensamento, a violência policial é imediatamente aceita e reforçada, se a vítima é um suposto traficante (Boiteux, 2019).

              Visto isso e, aparentemente, em concordância com esse pensamento, os jovens frequentemente se referem à medida de internação como se esta fosse mais uma etapa da vida na criminalidade e incluísse diversas entradas e saídas do sistema (Silva, 2005). Nesse sentido, Baratta (2002) salienta que o cárcere significa o momento máximo de um circuito de seleção que começa ainda antes da intervenção dos institutos de controle do desvio de menores. Representa, dessa maneira, a solidificação de uma carreira criminosa. “No tráfico eu sempre ia na delegacia e voltava. Comecei a vender droga, eu tinha doze pra treze anos. Vendi até eu vim preso aqui que eu tinha dezesseis, ia fazer dezessete” (R).

 

Pesquisadora: Quando você veio [para a unidade socioeducativa] pela primeira vez?

Gl.: Eu num [sic] sei não, acho que eu tinha quinze ou catorze. Quarta vez aqui. Tráfico de droga. Depois fui e voltei de novo, aí depois que eu voltei de novo eu vim pra cá de novo, aí depois que eu marchei, essas caminhadas de um ano e três, aí eu parei.

Pesquisadora: Acabou que você ficou mais aqui que lá?

Gl.: Foi, foi de dois mil e dezesseis até dois mil e dezenove, todos os anos eu passei aqui.

 

              Retomando o processo histórico dos dispositivos penais voltados para a juventude pobre e negra, evidencia-se que após a Proclamação da República, o Código Penal de 1890, destinava atenção às crianças que perturbavam a ordem e a segurança pública e reduziu a idade de responsabilidade criminal para nove anos. Além do mais, preconizava o isolamento nas casas de correção de infratores entre nove e catorze anos, inaugurando um sistema de institucionalização e criminalização juvenil. Ademais, o Decreto 145 de 1893 previa a necessidade de segregar os “vadios, os vagabundos e os capoeiras” na Colônia de Correção. Desde aquela época, a legislação já condenava a arte e a cultura de resistência dos capoeiristas, consideradas “vagabundagem” e passível de prisão (Santos, 2008).

              Historicamente, a marginalização da infância e juventude levou à adesão da internação desse público, como medida de proteção da sociedade. A ideia de criminalização relaciona-se com a desassistência à criança e ao jovem negro e periférico. Dessa forma, a dinâmica de segregação e desigualdade social, propiciada pelo modo de produção capitalista, deixa esse contingente populacional nas margens sociais e os pune duplamente: criminalizado e encarcerado pelo Estado que os criminalizou (Vogel, 2011). Ainda que haja singularidades construídas histórica e culturalmente, em regra, o Brasil revela condições fomentadoras desse cenário de desigualdade social, precariedade e marginalização, ao qual estão submetidos os jovens brasileiros (Faria & Barros, 2011).

Portanto, nessa conjuntura, o tráfico como indústria de drogas ilícitas pode figurar um meio de adesão ilegal de jovens ao mercado de trabalho. Como assevera Feffermann (2018), apesar de ser o varejo de drogas uma atividade perigosa, que traz como riscos o encarceramento e a morte prematura dos jovens inseridos, para muitos deles também pode representar um meio de se sentir pertencente à sociedade que prima por valorizar o consumo e o capital. Nessa perspectiva, conforme aponta Rocha (2015), para complementar as reflexões acerca do narcotráfico dentro do modo de produção capitalista e sobre a exploração da força de trabalho, é preciso considerar o entendimento da droga como mercadoria e que as drogas são produzidas a partir de um processo de trabalho.

              As drogas tidas como mercadoria assumem um valor de troca e podem ser mercantilizadas, fabricadas e distribuídas a partir das relações estabelecidas no modo de produção capitalista. Assim, a produção em grandes proporções, explora a mais-valia do trabalho humano, tornando-se um negócio lucrativo. Frente ao contexto, pode-se afirmar que os jovens trabalhadores da linha de frente do narcotráfico são os que menos lucram com o negócio da droga-mercadoria, entretanto, os mais explorados (Rocha, 2015).

              Em vista disso, embora o tráfico de drogas seja comum a jovens de distintas classes sociais e bairros diversificados na realidade brasileira, a ênfase do “problema social” está centrada nas populações negras e periféricas. Sobre esses jovens é depositada toda a exacerbação de uma sociedade que tem certa aversão ao que supostamente manifesta a desordem (Malvasi, 2010).

              Como assevera França (2016), o controle social das drogas, tal como é executado no Brasil, produz efeitos como a produção de uma identidade deteriorada, uma associação simplista entre violência, crime e drogas, além da seletividade penal e o racismo como estratégia global do Estado, como segue:

 

Pesquisadora: Você planeja alguma coisa, tem algum sonho?

J.: Ah, enquanto eu deito passa tipo um filme, né? Ah, num [sic] sei te explicar não, tem que sair memo [sic] pra ver. Porque aqui, às vezes, nós fala que vai mudar, mas porque nós tão aqui muito tempo e num sabe como tá lá fora.

L.: Aí foi o que eu escolhi, né? Desde pequeno. Tem como mudar não.

Pesquisadora: Você acha que não?

L.: Ah, eu acho que não. Em mim memo [sic] eu acho que num [sic] dá pra mudar não. Já acostumei memo [sic], com o tráfico. Meus primo também fecha comigo, meus irmão. Eles num sai também.

 

              Nessa direção, Oliveira (2019) realça que as drogas estão em toda parte do país, nas grandes metrópoles e pequenos municípios, zona urbana ou rural. Mas apesar disso, a população pobre e negra é quem fica com o ônus em meio aos conflitos armados. Assim, como assevera Schwarcz (2018), no Brasil [último país a abolir a escravidão no Ocidente], os pobres e, sobretudo, as populações negras e periféricas são as mais culpabilizadas pela Justiça, as que morrem mais cedo e se situam em postos de trabalho mais precarizados, compondo marca maciça e insistente da herança da escravidão, que condicionam a nossa cultura, pautada por uma linguagem composta por “cores sociais”.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

              Ao longo do percurso desses indivíduos, em geral, o tráfico de drogas surge como uma forma de se inscreverem socialmente, ainda que os lance em situação talvez ainda mais suscetível. Nesses termos, aderidos ao mercado ilegal de drogas e ao discurso segregador historicamente forjado, fazem jus ao tradicional processo de criminalização em que jovens negros e periféricos são tidos como potencialmente perigosos. Para tanto, a seletividade penal brasileira vem, impecavelmente, reservando a esse contingente populacional uma legislação feita sob encomenda, que atende às minorias sociais, visando ao controle social, pautada pelas heranças da escravização.

              Esses sujeitos querem se livrar da marginalização, da miséria e de tantas outras formas de precariedade, rumo à sobrevivência. Então, a estratégia para eles é sonhar. Ainda em meio a um contexto tão estarrecedor, pensam no futuro. No entanto, o futuro frequentemente consiste em voltar ao início ou contar com a mesma realidade que os expõe. Assim, a ausência de planos também é percebida por esses sujeitos, que sabem como não é comedido o peso do poder público sobre eles, quase sempre contra eles.

Entre tantas indagações que resistiram a esta pesquisa, questiona-se sobre quando haverá algum plano que contemple essa juventude, após tantas décadas de estudos sobre essa realidade que vem deixando marcas profundas. Dessa maneira, é mister interrogar quais são as redes de apoio disponíveis e utilizadas por essa juventude, e como as mesmas podem se articular para que se façam efetivas e acessíveis a esses indivíduos?

Desde as primeiras políticas públicas e legislação voltadas para esse público, não se sabe quando os jovens foram escutados. Para se apropriar sobre suas reais necessidades é preciso que o clássico silenciamento não sobressaia. Em acréscimo, é primordial que se lance olhar sobre os profissionais que lidam com esse público. Sobretudo dentro de instituições totais, investir na formação humana desses profissionais, incluí-los nas reflexões sobre a realidade que atropela essa juventude é ação iminente.

 

Referências

 

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 Adota-se a concepção de violência estrutural como constitutiva do modo de produção capitalista, expressão de uma violência mais profunda: a exploração do homem pelo homem, por meio da violência econômica. Assim, abandona-se a ideia de que seja referente à superfície dos fatos, sentida diretamente. Tal violência institucional e simbólica se consubstancia pela injustiça institucionalizada que parcela da juventude brasileira – pobre e negra – vive em suas trajetórias (Vázquez, 1977). Nesse contexto, ressalta-se que a violência estrutural reside em uma sociedade de democracia aparente, na qual os mecanismos do Estado, apesar de conjugarem participação e defenderem a liberdade e igualdade dos cidadãos, restringem o acesso da grande maioria da população aos direitos básicos, que poderiam lhe propiciar uma vida mais digna e não subalternizada (Cruz Neto & Moreira, 1999).

 Achille Mbembe (2016) trabalha o conceito de Necropolítica (Políticas de Morte), se referindo ao poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Nesse sentido, a “disciplina periférica” se relaciona com as variadas estruturas que objetivam provocar a destruição de alguns grupos. Tais configurações são formas contemporâneas de vidas sujeitas ao poder da morte ou às formas de existência social nas quais amplos contingentes da população são submetidos às condições de vida que os conferem o status social de mortos-vivos.

A expressão vulnerabilidade social é multifatorial e refere-se à situação de grupos da população com parcos recursos socioeconômicos, precário acesso a direitos como educação, moradia e demais condições para seu desenvolvimento. Em geral, vivida por contingentes que estão sobrevivendo nas margens sociais (Gomes et al., 2015).

 A Lei do Ventre Livre (1871) propiciava a marginalização da criança negra, quando estabelecia que ela poderia estar livre da escravidão, através de prévia indenização concedida ao senhor de escravo, por sua mãe escravizada. Em outras palavras, o filho de “ventre livre”, o filho livre de mãe escrava, não alcançava liberdade jurídica e, por essa razão, era impedido de frequentar a escola e ingressar na vida política do país. Essa lei ainda previa que o senhor com responsabilidade sobre a criança liberta não era obrigado a fornecer instrução ao mesmo, o que agravou o cenário do contingente de crianças abandonas (Santos, 2008).

i  Adota-se a concepção de violência estrutural como constitutiva do modo de produção capitalista, expressão de uma violência mais profunda: a exploração do homem pelo homem, por meio da violência econômica. Assim, abandona-se a ideia de que seja referente à superfície dos fatos, sentida diretamente. Tal violência institucional e simbólica se consubstancia pela injustiça institucionalizada que parcela da juventude brasileira – pobre e negra – vive em suas trajetórias (Vázquez, 1977). Nesse contexto, ressalta-se que a violência estrutural reside em uma sociedade de democracia aparente, na qual os mecanismos do Estado, apesar de conjugarem participação e defenderem a liberdade e igualdade dos cidadãos, restringem o acesso da grande maioria da população aos direitos básicos, que poderiam lhe propiciar uma vida mais digna e não subalternizada (Cruz Neto & Moreira, 1999).

ii Achille Mbembe (2016) trabalha o conceito de Necropolítica (Políticas de Morte), se referindo ao poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Nesse sentido, a “disciplina periférica” se relaciona com as variadas estruturas que objetivam provocar a destruição de alguns grupos. Tais configurações são formas contemporâneas de vidas sujeitas ao poder da morte ou às formas de existência social nas quais amplos contingentes da população são submetidos às condições de vida que os conferem o status social de mortos-vivos.

iii  A expressão vulnerabilidade social é multifatorial e refere-se à situação de grupos da população com parcos recursos socioeconômicos, precário acesso a direitos como educação, moradia e demais condições para seu desenvolvimento. Em geral, vivida por contingentes que estão sobrevivendo nas margens sociais (Gomes et al., 2015).

iv  A Lei do Ventre Livre (1871) propiciava a marginalização da criança negra, quando estabelecia que ela poderia estar livre da escravidão, através de prévia indenização concedida ao senhor de escravo, por sua mãe escravizada. Em outras palavras, o filho de “ventre livre”, o filho livre de mãe escrava, não alcançava liberdade jurídica e, por essa razão, era impedido de frequentar a escola e ingressar na vida política do país. Essa lei ainda previa que o senhor com responsabilidade sobre a criança liberta não era obrigado a fornecer instrução ao mesmo, o que agravou o cenário do contingente de crianças abandonas (Santos, 2008).