Revista de Psicologia, Fortaleza, v.16, e025004. jan./dez. 2025

DOI: 10.36517/revpsiufc.16.2025.e025004

 

 

 

RECEBIDO EM: 14/09/2024

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 24/02/2025

VERSÃO FINAL: 26/02/2025

APROVADO EM: 07/03/2025

 

Notas psicanalíticas acerca dos contos Magnetismo e O horla, de Guy de Maupassant

Psychoanalytic notes on the short stories Magnetism and The Horla, by Guy de Maupassant

Notas psicoanalíticas sobre los cuentos Magnetismo y El Horla, de Guy de Maupassant

 

Fabiano Chagas Rabêlo

Doutor em Psicologia (Universidade feral do Ceará), professor associado do curso de Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5026-8396 E-mail: fabrabelo@gmail.com.

Nathanael de Sousa Silva

Bacharel em ciências sociais, graduando em Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, bolsista PIBIC. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3564-6197 E-mail: NathanaelSousa82@gmail.com.

Reginaldo Rodrigues Dias

Doutor em Psicologia (Universidade feral do Ceará), professor adjunto do curso de Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8515-0793 E-mail: regydyas@hotmail.com.

Fabianna Simão Bellizzi Carneiro

Doutora em Estudos Literários pela Univesidade Estadual do Rio de Janeiro e Pós-doutora pela Universdade Federal de Uberlândia. Professora do curso de graduação em Letras e pós-graduação em Estudos da linguagem da Universidade Federal de Catalão. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8600-2765 E-mail: fabianna_bellizzi@yahoo.com.br.

 

Resumo

Trata-se de um ensaio psicanalítico, de caráter histórico, clínico e epistemológico, que dialoga com a teoria literária para interrogar o conto do escritor francês Guy de Maupassant, Magnetismo. Acrescentam-se, ainda, alguns apontamentos sobre as duas versões de O Horla. O foco da análise recai nas referências ao magnetismo e aos fenômenos que lhe são corelatos: o mesmerismo, a hipnose e a sugestão. Pontua-se que na ficção de Maupassant o magnetismo é apresentado como um fenômeno situado na franja da razão, no limiar entre a crença supersticiosa no sobrenatural e a explicação científica. Os envolvidos na investigação dos fenômenos citados nos contos são então situados em relação ao percurso de investigação freudiano. Sustenta-se que o projeto clínico freudiano se assenta na apreciação científica dos fenômenos relacionados ao magnetismo, tomando a palavra, a sexualidade e as relações intersubjetivas como fundamento concreto das manifestações psíquicas que Mesmer descreveu como resultado da ação de um fluído ou energia magnética. Problematiza-se em seguida como essa abordagem culmina na formulação do conceito de transferência, destacando daí as implicações éticas, clínicas e políticas de seu manejo.

Palavras-chave: Psicanálise; Guy de Maupassant; magnetismo; mesmerismo; transferência.

 

Abstract

This is a psychoanalytic essay of a historical, clinical and epistemological nature, which engages with literary theory to interrogate the short story Magnetism by the french writer Guy de Maupassant. It also includes some notes on the two versions of The Horla. The focus of the analysis is on references to magnetism and its related phenomena: mesmerism, hypnosis and suggestion. It is emphasized that magnetism is treated in Maupassant's fiction as a phenomenon situated on the fringe of reason, on the threshold between superstitious belief in the supernatural and scientific explanation. The characters involved in the investigation of these phenomena quoted on stories are presented and situated in relation to the freudian path of investigation. It is argued that this is based on the scientific appreciation of the phenomena mentioned, taking the word, sexuality and intersubjective relations as the concrete foundation of the energy that Mesmer, in the form of a pseudoscientific conception, had described as animal magnetism. The papper then problematizes how the psychoanalytic approach to suggestion culminates in the formulation of the concept of transference, highlighting the ethical, clinical and political implications of its management.

Keywords: Psychoanalysis; Guy de Maupassant; magnetism; mesmerism; transference.

 

Resumen

Se trata de un ensayo psicoanalítico, de carácter histórico, clínico y epistemológico, que dialoga con la teoría literaria para interrogar el cuento del escritor francés Guy de Maupassant, Magnetismo. También se añaden algunas notas sobre las dos versiones de El Horla. El foco del análisis recae en referencias al magnetismo y fenómenos relacionados: mesmerismo, hipnosis y sugestión. Vale la pena señalar que en la ficción de Maupassant, el magnetismo se presenta como un fenómeno situado al margen de la razón, en el umbral entre la creencia supersticiosa en lo sobrenatural y la explicación científica. Los implicados en la investigación de los fenómenos mencionados en los relatos se sitúan entonces en relación con el camino de investigación freudiano. Se argumenta que el proyecto clínico freudiano se basa en la valoración científica de los fenómenos relacionados con el magnetismo, tomando la palabra, la sexualidad y las relaciones intersubjetivas como fundamento concreto de las manifestaciones psíquicas que Mesmer describió como resultado de la acción de un fluido o energía magnética. Luego se analiza cómo este enfoque culmina en la formulación del concepto de transferencia, destacando las implicaciones éticas, clínicas y políticas de su gestión.

Palabras clave: Psicoanálisis; Guy de Maupassant; magnetismo; mesmerismo; transferencia.

Este é um ensaio psicanalítico, de caráter histórico, clínico e epistemológico, que dialoga com a teoria literária para interrogar o conto do escritor francês Guy de Maupassant, Magnetismo (Maupassant, 1882/2015). Acrescentam-se a esta proposta alguns apontamentos sobre recortes das duas versões de O Horla (Maupassant, 1885/2015, 1887/2015) que abordam a mesma questão do primeiro texto: o magnetismo e o mesmerismo. Esclarece-se, portanto, que o cotejamento das abordagens psicanalíticas e literárias sobre esses fenômenos constituem o núcleo temático deste artigo.

Parte-se da constatação de um ponto em comum no projeto literário de escritores fantásticos do século XIX – dentre eles Maupassant – e na investigação clínica freudiana, a saber: ambos se interessam por fenômenos situados na franja da razão, no limiar entre a crença supersticiosa no sobrenatural e a explicação científica, a exemplo da telepatia e das relações de influência (Rabêlo, 2024). Tais assuntos comparecem desde o início nas práticas clínicas de Freud e perduram no decorrer de toda a sua obra psicanalítica por meio da pesquisa de temas como a sugestão, a telepatia, a transferência e os sonhos (Chertok & Stengers, 1990; Ellenberger, 2023; Zweig, 1931/2017).

Do exposto, enfatiza-se nos contos de Maupassant a menção a personagens do campo da Ciência e da Medicina da segunda metade do século XIX que investigaram os fenômenos supracitados. Tais informações são contextualizadas a partir da perspectiva da história da Psicanálise, uma vez que constituem referências importantes no percurso freudiano de investigação clínica e ajudam a esclarecê-lo. Defende-se que a literatura de Maupassant testemunha um momento de efervescência e transformação cultural – científica, epistêmica e estética – que propiciou o surgimento da Psicanálise na virada do século XIX para o XX (Rancière, 2009).

Desse modo, além do comentário de textos literários e psicanalíticos, busca-se pôr em destaque os avanços e redefinições conceituais que construíram a passagem da teoria do magnetismo animal aos estudos da hipnose e da sugestão. Pontua-se que tais referências recebem uma apreciação própria e singular nas publicações de Maupassant e de Freud, que são então cotejadas.

Salienta-se que ambos foram contemporâneos e estiveram na França, em Paris, na mesma época. Inclusive, frequentaram as apresentações públicas de pacientes realizadas por J.-M. Charcot (1825-1893) no hospital Salpetriêre. Não há indícios de que o encontro entre eles tenha acontecido, mas essa possibilidade é verossímel, sendo explorada no campo da ficção em peças teatrais redigidas por Quinet (2003) e Kon (2005).

Maupassant nasceu no norte da França, em Tourville-sur-Arques, em 1850. Foi cronista, contista e crítico literário. Escreveu para diversos jornais. Primeiro, no La Nation e, a partir de 1876, sob a assinatura de Guy de Valmont, no La République des Lettres. Na década de 1880, passou a contribuir para o periódico Gil Blas (1879-1938), onde publicou cerca de 70 crônicas e contos sob o pseudônimo Maufrigneuse. Faleceu em 1893 em Paris (Gellis & Nascimento, 2022).

Sigmund Freud, por sua vez, nasceu em 1856, em Freiberg, atualmente denominada Pribor, na Morávia, uma província do então império Austro-húngaro, região que atualmente pertence a república Tcheca. Criado em uma família judaica, mudou-se para Viena ainda criança, onde permaneceu até pouco antes de sua morte, quando foi obrigado a viajar para Lodres para fugir da perseguição nazista. Na segunda metade da década de 1870, ingressou na universidade de Viena, formando-se em medicina no início da década seguinte. Nesse período, publicou diversos artigos científicos sobre neuroanatomia. O início da década de 1880 foi marcado por uma virada no seu campo de interesses. Após a conclusão do curso, passou a atender pacientes acometidos pelas então denominadas doenças nervosas e a se interessar pela psicoterapia como método de tratamento. Em 1885, obteve uma bolsa de estudos que lhe permitiu conhecer o trabalho de Jean-Martin Charcot no hospital Salpêtrière, em Paris, onde eram realizadas nas terças-feiras apresentações clínicas de pacientes histéricos hipnotizados (Gay, 1989; Roudinesco, 2016).

Ao comparar os percursos de Freud e Maupassant, constata-se que o início das pesquisas do primeiro sobre as doenças nervosas, a hipnose e a sugestão coincide com a publicação dos textos do escritor francês que versam sobre esses mesmos assuntos. Logo, há uma coincidência temática e cronológica no trabalho de ambos que converge no interesse pelos mesmos personagens históricos que contribuiram para o surgimento e consolidação da psicoterapia dinâmica no século XIX (Ellenberger, 2023).

Em resumo, os contos Magnetismo e O Horla são tomados como objeto de análise. O primeiro, de forma integral; o último, pontualmente. O foco recai nas referências ao magnetismo, ao mesmerismo, à hipnose e à sugestão. Os comentários dos textos são entrelaçados à discussão sobre a história da Psicanálise e a técnica psicanalítica. Assim, por meio da análise dos contos citados, investiga-se a retomada na década de 1880 pelo interesse científico em torno do magnetismo e do mesmerismo, a redescrição dessas concepções sob novas designações – a saber, a hipnose e a sugestão – e a sua aplicação no tratamentos das afecções nervosas, como a histeria. Os personagens envolvidos na investigação desses fenômenos são situados em relação ao percurso de investigação freudiano.

O primeiro tópico analisa o início do conto Magnetismo, além de fragmentos das duas versões de O Horla. Nele, os fenômenos do mesmerismo e do magnetismo são apresentados, assim como os personagens históricos citados por Maupassant relacionados a investigação desses temas. O segundo tópico avalia o primeiro episódio retratado no conto Magnetismo. Discute-se como assuntos retratados na literatura fantástica do século XIX, como os sonhos premonitórios e a telepatia, são posteriormente explorados pela Psicanálise a partir da referência ao Inconsciente. O último tópico examina o episódio do conto que trata da irrupção tórrida e súbita de um amor prenunciado em um sonho. Aqui o conceito de transferência é trazido à baila, destacando-se as consequências éticas, políticas e clínicas do seu manejo como um dos pilares da técnica psicanalítica.

Vale destacar a relevância e a atualidade desse tema, haja vista que a apreciação metodológica do fenômeno da sugestão é crucial para a validação do rigor de um determinado conhecimento. Assim, o problema da subjetividade do pesquisador e da influência que ele exerce nos fenômenos pesquisados devem ser avaliados à luz da especificidade e da complexidade dos processos clínicos estudados, bem como dos critérios, conceitos e procedimentos empregados. Sublinha-se ainda a importância política desse tema, uma vez que hoje a atribuição de autoridade, a transmissão de conhecimento e a formação de opinião ocorre de forma cada vez mais frequente e intensa por meio da mediação das redes sociais, acarretando consequências relevantes no laço social e, por conseguinte, na práxis do analista.

 

O contexto cultural do śeculo XIX: o magnetismo como tema de salão

Os acontecimentos narrados no conto Magnetismo (Maupassant , 1882/2015) se passam no fim do século XIX, quando se verifica o recrudescimento do interesse científico por esse tema na Europa. A estória acompanha uma roda de conversa ao final de um jantar, cujos participantes, homens ilustrados, “indiferentes a qualquer religião” (p. 21) e, presume-se, de alta ascendência social, entre tragos de aperitivos e baforadas de charutos, discutem entusiasmados sobre as “maravilhas” (p. 21) do magnetismo. De acordo com o texto, tal concepção abarca os seguintes eventos: “pressentimentos fantásticos, comunicações através de longas distâncias, influências secretas de um ser sobre o outro”: uma espécie de “milagre” moderno, segundo o narrador (p. 22).

Percebe-se que para os presentes na reunião o magnetismo é um fenômeno situado na franja da razão, no limiar entre a crença supersticiosa no sobrenatural e a explicação científica. O tom predominante da conversa é de ceticismo e curiosidade, até mesmo fascínio. Daí a alternância entre as posições de aceitação crédula e distanciamento crítico.

Esse tratamento dado ao tema repercute a posição de Freud (1890/2017) no texto Tratamento psíquico ou anímico ao reconhecer nas psicoterapias a ação de uma magia esmaecida ou desbotada, situando nela a ação do mesmo princípio que opera nas curas místicas e religiosas. Daí a afirmação de que a psicoterapia é a modalidade de tratamento mais antiga na história da humanidade. Todavia, Freud localiza como fundamento da eficácia dessas práticas uma causa material concreta: a palavra. Seu projeto é estabelecer as bases de uma psicoterapia de orientação científica.

Comparando as posições de Freud e Maupassant, é lícito afirmar que ambos adotam uma posição laica, que recusa a influência de forças transcendentais na determinação dos processos mentais. O último, contudo, o faz de forma ambígua, acalentando uma atitude de dúvida quanto a realidade dos fenômenos sobrenaturais por meio da ficção (Roas, 2014). Essa hesitação é explorada no conto na apreciação dos fenômenos associados ao magnetismo.

Magnetismo é um termo cunhado pelo médico austríaco Anton Mesmer (1734-1815) no final do século XVIII para designar um fluido energético que emana de um corpo para outro. Para Mesmer, tal fluido, que possui a mesma natureza da gravidade que sustenta a órbita dos astros, seria responsável pelas curas psíquicas que ele propiciava.

Em O Horla (primeira e segunda versão), Maupassant (1885/2015, 1887/2015), estabelece uma relação explícita entre os acontecimentos narrados no conto e os debates científicos que permeavam a medicina de seu tempo. Desse campo, o autor retira diversas referências para a abordagem literária de temas como a hipnose, a sugestão, o magnetismo e o mesmerismo (Moreira, 2019).

Na primeira versão do conto (1885/2015), o protagonista, acometido por uma doença nervosa que o leva ao internamento em um hospital psiquiátrico, revela para os médicos dessa instituição a natureza do Horla, a causa de sua loucura: “tudo que os senhores mesmos fazem há alguns anos, aquilo que chamam de hipnotismo, sugestão, magnetismo – é ele quem anunciam, é ele quem profetizam” (Maupassant 1885/2015, p. 82).

Na segunda versão, um médico, durante um jantar, endereçando-se ao protagonista, afirma: “Há pouco mais de um século, parece que se pressente algo de novo. Mesmer e alguns outros abriram-nos um caminho inesperado e chegamos na verdade, sobretudo há quatro ou cinco anos, a resultados surpreendentes” (Maupassant, 1887/2015, p.97).

Sabe-se que com a morte de Mesmer, o magnetismo caiu em descrédito, sendo relegado ao obscurantismo pela medicina fisicalista de seu tempo. No entanto, seus discípulos continuaram a transmitir e a desenvolver o seu legado, mesmo que à margem do reconhecimento científico. Na década de 1850, redesignado como hipnose, o magnetismo é aos poucos reabilitado como um fenômeno digno de investigação científica (Ellenberger, 2023). A partir dos estudos de Braid (1795-1860), a hipnose ganha um distanciamento definitivo do magnetismo animal e, na via contrária à hipótese do fluido magnético, passa a ser associada a uma condição específica do funcionamento do sistema nervoso central. O trabalho de Braid pavimentou o caminho para outros cientistas na década seguinte que aprofundaram as pesquisas em torno da hipnose e, posteriormente, da sugestão.

Em Magnetismo (1882/2015), Maupassant cita os nomes de Donato (1845-1900) e Charcot (1825-1893) como referências na aplicação e pesquisa desses fenômenos. O primeiro é designado como um prestidigitador, “um fazedor de truques muito esperto” (p. 21); enquanto o segundo, um “sábio notável” (p. 21).

O belga Donato, cujo nome verdadeiro é Alfred d’Hont (1845-1900), tornou-se conhecido por suas apresentações públicas de hipnotismo. Denominada fascinação, sua técnica consistia em, por meio do olhar, mantendo o paciente em vigília, produzir um estado alterado de consciência que era frequentemente acompanhado por alucinações auditivas, visuais e táteis, afasia e crises de choro (Ellenberger, 2023).

As apresentações hipnóticas de Donato podem ser avaliadas como inspiração para algumas práticas médicas que lhe sucederam (Ellenberger, 2023). Uma versão similar dessa técnica, porém mais branda, foi desenvolvida por Hippolyte Bernheim (1840-1919), membro da chamada Escola de Nancy, sendo denominada sugestão, isto é, uma relação de influência (Ellenberger, 2023). Com essa definição, Bernheim desloca o foco do debate da Neurologia para a Psicologia. Ao redescrever os fenômenos relacionados à hipnose a partir da sugestão, esta passa a ser tratada como um fenômeno universal, cotidiano e difuso, que está presente em maior ou menor escala em todos os vínculos sociais humanos. Como consequência, a sugestionabilidade não é mais considerada um fenômeno restrito à histeria ou a outras modalidades de patologias psíquicas ou neurológicas (Rubin, 2014).

Encontramos referência ao grupo de Nancy na segunda versão de O Horla (1887/2015) quando o protagonista refere ter encontrado em um jantar na casa de sua prima, a Sra. Sablé, um certo Dr. Parent, um médico “que se ocupa de doenças nervosas e de manifestações extraordinárias ocasionadas atualmente pelas experiências sobre a hipnose e a sugestão” (Maupassant, 1887/2015, p. 96). Ao longo da noite, o Dr. Parent discorre sobre os “resultados prodigiosos obtidos por sábios ingleses e pelos médicos da escola de Nancy” (Maupassant, 1887/2015, p.96). Entende-se nessa passagem que o autor faz referência a Braid e Bernheim.

Como já mencionado, outro expoente da ciência citado por Maupassant é o médico francês Martin Charcot (1825-1893), que se destacou pelas suas contribuições sobre a histeria. No texto escrito por ocasião da morte de Charcot (1893/2023), Freud sublinha a revolução científica que o médico francês trouxe ao tratamento da histeria. Freud ressalta que Charcot contribuiu de modo significativo para demonstrar que tal afecção era uma condição neurológica legítima e não fruto de simulação ou fraqueza moral.

Nas apresentações públicas em Salpetriére, os sintomas histéricos eram artificialmente reproduzidos por meio da hipnose. Os experimentos de Charcot consistiam em utilizar a hipnose para transferir ou deslocar uma contratura ou paralisia de um membro do corpo para outro com a finalidade de reabilitar o orgão mais comprometido. Tais experimentos aproximaram a hipnose dos mecanismos de formação dos sintomas histéricos, que passaram a ser tratados como paralisias psíquicas experimentais fundamentadas em processos neurofisiológicos (Rubin, 2014).

No conto Magnetismo (1882/2015), um dos interlocutores da roda de conversa, um “contestador inflexível” (p. 22), afirma acerca de Charcot:

Ele me parece um desses escritores como Edgar Allan Poe, que acabam ficando louco de tanto refletirem sobre estranhos casos de loucura. Ele observou fenômenos nervosos inexplicados e ainda inexplicáveis, avança neste desconhecido que se explora todo o dia, e, não podendo compreender o que vê, lembra-se talvez demais das explicações eclesiásticas dos mistérios (p. 21 e 22).                                            

Assim como acontece com Maupassant, Safont (2014) e Pereira e Nepomuceno (2021) avaliam as influências mútuas entre a literatura de Poe (1809-1849) e os trabalhos científicos do fim da primeira metade do século XIX sobre o mesmerismo, o magnetismo e a hipnose. O interesse de Poe por esses temas é evidenciado na leitura de seus contos publicados em meados da década de 1840. Um exemplo paradigmático encontra-se em Os fatos no caso do Sr. Valdemar, onde Poe (1845/2003) explora os limites entre vida e morte por meio do testemunho de um médico que conduz um experimento baseado na hipnose com um paciente moribundo tuberculoso.

Pontua-se que historicamente os estados hipnóticos e outros fenômenos psicológicos inexplicáveis para a fisiologia médica dos séculos XVIII e XIX, como a histeria, eram frequentemente atribuídos a influências sobrenaturais ou demoníacas, ou seja, às explicações eclesiásticas dos mistérios. Não por acaso, Mesmer, ao despontar na Áustria como um médico de referência no tratamentos das doenças nervosas, absorve uma clientela que até então recorria aos préstimos de um padre exorcistas, Johann Joseph Gassner (1727-1729), que nesse momento constituia o seu principal rival e antagonista (Ellenberger, 2023).

Pontua-se que o surgimento da Psicanálise está alinhada a esse movimento de reabilitação das práticas psicoterápicas sob uma orientação científica que levou ao desenvolvimento da psiquiatria dinâmica no final do século XIX.

 

Premonição, telepatia e as formações do Inconsciente

No conto Magnetismo (Maupassant, 1882/2015), os participantes da roda de conversa tomam a iniciativa de relatar histórias relacionadas a esse fenômeno. Um dos interlocutores narra um acontecimento que lhe fora confidenciado por terceiros. Trata-se do ocorrido com uma criança, filho de um pescador, que sonhara com a morte do pai no mar. O conteúdo do sonho é confirmado dias depois. Nesse momento, retroativamente, verifica-se a simultaneidade da morte do pai e o vaticínio do filho, de onde se depreende a possibilidade de uma transmissão telepática.

O próprio personagem narrador se ocupa de explicar o episódio. Segundo ele, sonhos semelhantes são recorrentes, mas, via de regra, tendem a ser esquecidos quando não se concretizam. Assim, a coincidência dos fatos colocaria tais pressentimentos em destaque, elevando-os à condição de eventos telepáticos ou premonitórios.

Em Sonho e Ocultismo (Freud, 1933/2010), Freud reconhece que, malgrado a relutância da Ciência em se ocupar de assuntos considerados esotéricos ou sobrenaturais, a investigação desses temas pode eventualmente revelar uma base psíquica concreta verificável. Por isso, sustenta a digninidade científica da pesquisa dos fenômeos ocultos. Com isso, ao invés de se alinhar a priori a explicações não-científicas, supersticiosas, místicas ou religiosas, seu encaminhamento ético, epistêmico e metodológico consiste em explorar com os recursos que a Psicanálise dispõe o núcleo real dos fatos contidos nos relatos de experiências supostamente sobrenaturais. Sua preocupação está em garantir que tais fenômenos sejam tratados com o mesmo rigor analítico dispensado a qualquer outra manifestação do Inconsciente.

Uma década antes de expressar essa tese, Freud (1921/2011b, 1922/2011) desenvolve a diretriz desses apontamentos em uma conferência e um artigo. Ele havia sido surpreendido por vários convites para publicar em períodicos dedicados a temas ocultos. Reconhece então como causa do crescimento da popularidade desse tema um anseio coletivo no sentido de referendar a factualidade de temas sobrenaturais como resposta as agruras da primeira guerra mundial, que tornou o confronto com a morte algo cotidiano, exigindo dessa maneira a produção de sentidos, mesmo que sobrenaturais, no âmbito da cultura. No entanto, pondera que dificilmente a Psicanálise pode corroborar tais ilusões sociais compartilhadas, mas, diferentemente do discurso ortodoxo científico, ela pode acolher tais relatos de fenômenos considerados sobrenaturais, buscando situar neles uma causalidade psíquica terrena.

Um passo importante que fundamenta essa linha de argumentação pode ser encontrado no terceiro capítulo de Totem e tabu, quando Freud (1912-1913/2012) investiga o problema do animismo, que é definido como o ato de atribuir processos animícos humanos - tais como vontades, sentimentos e interesses - a animais, objetos e coisas. Freud evita tratá-lo como uma modalidade arcaica e rudimentar de crença ou sistema religioso, como frequentemente acontece, situando-o como uma filosofia da natureza mais intuitiva, espontânea, perene e fundamental. No animismo, o que está posto em causa é a crença na onipotência do pensamento e a influência de processos mentais em eventos da realidade por meio de um mecanismo de projeção. O animismo deriva de uma tentativa de explicar o sono e a morte a partir de elementos concretos que se apresentam à percepção imediata.

Freud reconhece daí que muitos fenômenos que da perspectiva moderna são tratados como fatos esotéricos ou ocultos no curso da história já constituiram uma modalidade de saber culturalmente referendado. Baseado nisso, defende que a imputação de processos mentais a coisas e animais se apoia no mesmo princípio que fundamenta as práticas de cura xamânicas e mágicas, isto é. a influência psíquica por meio da palavra, de onde Freud retira o princípio comum de toda modalidade de tratamento psicoterápico (Freud, 1880/2017).

Da mesma forma que acontece no campo da cultura, Freud (1911/2010, 1915/2010b) argumenta que os limites entre o intrapsíquico e o mundo exterior, entre os conteúdos internos e externos, não estão pré-constituídos na forma de um dom natural e endógeno, mas, ao invés disso, resultam de um longo processo de construção e desenvolvimento. Acrescenta que esses limites podem oscilar em decorrência de mudanças na conjutura psíquica. A concepção do inquietante/inóspito ou incômodo (Unheimliche) vem demostrar que o não-reconhecido no plano subjetivo pode retornar do exterior agregado a uma mescla de sentimentos de estranheza e familiaridade (Freud, 1919/2010, Hans, 1996). Tal fato vem demostrar que o sentimento de realidade é uma experiência lábil, sujeita a flutuações. Pontua-se que a modulação do sentimento do infamiliar é bastante explorada na literatura fantástica do século XIX, inclusive por Maupassant (Rabêlo, 2024).

Ao justificar a proposta do Inconsciente, Freud (1915/2010a) salienta que a Consciência não é uma concepção aferida a partir de dados diretos, sensíveis e imediatos. Segundo ele, trata-se de uma idéia abstrata, construída por meio da projeção de estados mentais internos em outras pessoas. Tais estados mentais permannecem em si mesmos inexplicáveis, na medida em que são tratados como processos primários e imediatos. Assim, para Freud, os mecanismos psíquicos que fundamentam a consciência não são acessíveis à investigação direta, seja pela via da reflexão ou da instrospecção. Por isso, a metapsicologia e a hipótese do Inconsciente são desenvolvidos como instrumentos conceituais para lançar luz sobre os processos mentais de forma mais acurada, preenchendo lacunas e estabelecendo uma explicação mais linear e contínua para muitas situações clínicas e cotidianas que, de outra forma, seriam tratadas como eventos irracionais, como é o caso dos sonhos, atos falhos e alguns sintomas neuróticos.

Depreende-se desse argumento que a telepatia e os sonhos premonitórios podem ser considerados concepções correlatas da própria premissa que sustenta a Psicologia da Consciência, isto é, uma teoria dos processos mentais que toma a Consciência como abarcando a totalidade do psiquismo ou que limita a pesquisa psicológica à investigação dos fenômenos que se apresentam diretamente à Consciência. Assim, alguns estados mentais que são projetados e inferidos como processos de uma Consciência alteritária podem eventualmente se manisfestar na forma uma aparente ligação telepática com outras pessoas.

Como corolário dessa assertiva, Freud (1921/2011b, 1922/2011; 1933/2010 ) conclui que os fenômenos ditos telepáticos e premonitórios podem possuir uma base material e concreta. Pressume então a possibilidade de existência de uma forma de comunicação mais arcaica e primitiva que é ignorada pela Ciência, mas referendada por diferentes tradições culturais. Acrescenta: talvez uma via mais intuitiva e afetiva que talvez possa ser encontrada na relação entre pais e filhos, sobretudo entre mães e crianças.

Outro momento em que Freud (1914/2012a) enriquece uma fundamentação técnica e teórica para, mais adiante, abordar psicanaliticamente o problema da telepatia encontra-se na apreciação que realiza da manifestação em análise de determinadas formas de paramenisias (fausse reconnaisance), tais como a convicção de já se ter falado, ouvido, sentido ou experimentado algo que de fato nunca aconteceu (déjà raconté, déjà vu, déjà éprové, déjà senti). Para Freud, antes de falhas ou equívocos da memória, tais manifestações devem ser entendidas como asserções subjetivas que são mobilizadas pelo trabalho analítico. Isto é, são elaborações psíquicas que ocorrem em transferência na relação com o analista. Trata-se de produtos do trabalho psíquico que atestam a qualidade dinâmica do Inconsciente na forma de um saber não-sabido em sua incessantemente busca por uma via de expressão. Tais produtos encontram na análise uma condição propícia para se manifestar. Daí a frase recortada de um paciente, que Freud (Freud, 1914/2012a) apresenta como indício do avanço de uma análise: “agora tenho a sensação de que sempre soube disso” (p. 270).

Ao se referir a telapatia, Freud (1921/2011b, 1922/2011; 1933/2010) sublinha que tal fenômeno constuma ser frequentemente associado aos sonhos. No entanto, pondera: os dois fenômenos não possuem em essência nada em comum, a não ser o fato de que os sonhos podem eventualmente criar as condições favóraveis à manifestação de experiências telepáticas ou premonitórias, que, não obstante, podem prescindir da mediação dos sonhos. Daí a tese de que a telepatia não explica o sonho. É o sonho - ou melhor dizendo, a interpretação psicanalítica dos sonhos - que permite lançar luz sobre os fenômenos considerados telepáticos.

Dessa maneira, a telepatia, quando associada ao sonho, estaria à serviço da realização de um desejo inconsciente recalcado de natureza sexual ou agressiva. De acordo com essa tese, alguns pensamentos que normalmente são escotomizados ou suprimidos só são reconhecidos como processos subjetivos internos quando transpostos para um dimensão oracular ou sobrenatural (Freud, 1921/2011b, 1922/2011, 1933/2010).

Por isso, é lícito afirmar que, da perspectiva da Psicanálise, o sonho da criança descrito por Maupassant expressa muito mais os conteúdos que compõem o seu complexo paterno do que a evidência de uma comunicação telepática.

 

Transferência: um amor prêt-à-porter

É importante colocar em perspectiva que a abordagem freudiana da telepatia, da premonição e dos mecanismos de influência está intrisecamente implicada ao debate sobre a transferência na técnica analítica (Wondracek, 2019). Esse ponto pode ser melhor esclarecido no comentário da experiência descrita no terço final de Magnetismo.

O último episódio que compõe o conto é apresentado como um testemunho autobiográfico. Nele, o narrador descreve a aparição em sonho de uma mulher que já lhe era vagamente conhecida. Tal sonho possuia uma intensa conotação erótica, contrastando com o fato de que até então essa mulher lhe fosse indiferente. No entanto, a sua aparição no sonho trazia consigo uma aura de revelação e mistério: “ilusão adorável e brutal que parece uma realidade” (Maupassant, 1882/2015, p. 25).

Doravante, a lembrança dessa mulher passa a lhe ocupar toda a atenção, o que o leva a ir ao seu encontro. O narrador então diz: “Todo o meu sonho realizou-se tão rápido, tão facilmente, tão loucamente, que, de súbito, duvidei se estava acordado. Ela foi minha amante durante dois anos” (p. 26). A explicação dada ao episódio mostra-se igualmente interessante:

Eu concluo... eu concluo uma coincidência, é claro. E depois, quem sabe? Talvez um olhar dela que nunca tenha notado tenha reaparecido naquela noite, por uma dessas misteriosas chamadas inconscientes da memória que nos apresentam frequentemente coisas negligenciadas pela nossa consciência, que passaram desapercebidas pela nossa inteligência (Maupassant, 1882/2015, p. 26).

Além da referência ao inconsciente, antes mesmo do surgimento da Psicanálise, essa passagem indica que a experiência da telepatia ou da premonição, tal como descrita, está intimamente relacionada a uma memória afetiva e sexual. Assim, aquilo que escapa à consciência na vigília encontra outras vias substitutas de expressão no sonho.

A referência ao olhar comparece na explicação do personagem como o elemento desencadeador de um fenômeno análogo à sugestão, que irrompe no sonho na forma de uma revelação amorosa até então ignorada. Tal fato aponta para a divisão subjetiva do sonhador e para articulação associativa do Inconsciente que prepara o advento do vínculo amoroso.

Dessa forma, o conto demonstra que a sugestão não deve ser tomada como um procedimento artificial, por meio do qual se exerce alguma forma de influência intencional sobre outra pessoa. Ela é, mais fundamentalmente, uma tendência espontânea que perpassa o funcionamento do psiquismo de forma ampla e que está presente nas relações mais corriqueiras e cotidianas. Trata-se da atualização da realidade sexual do Inconsciente, que acontece, via de regra, a partir da afetação por uma alteridade (Lacan, 1964/1998). Por isso, no percurso de investigação da clínica psicanalítica, o estudo da sugestão, pontuando a sua relação com o amor, culminou na elaboração do conceito de transferência (Freud, 1905/2016, 1912/2019, 1914/2012b, 1915/2010c, 1917/2014).

A proximidade entre a sexualidade e sugestão é explorada por Freud (1921/2011a) em Psicologia das massas e análise do Eu. Encontra-se nesse texto a tese de que a relação do enamorado com a pessoa amada é análoga ao vínculo entre hipnotizado e hipnotizador. Da mesma maneira, uma variação da relação de influência afetiva por sugestão encontra-se no laço entre os membros do grupo e o líder, que é tomado simultaneamente pelos indivíduos agrupados como suporte de laços identificatórios verticais – com uma figura de autoridade, tomada por objeto de amor e substituto paterno – e laços identificatórios horizontais, entre os membros do grupo entre si. Conclui-se então que não é a sugestão que explica a transferência, mas a sexualidade que se revela como mola propulsora da transferência e, por extensão, da sugestão.

No conto destaca-se a confusão entre a realidade e a fantasia, algo comum para o psicanalista, quando, na sua práxis, verifica que os analisandos muitas vezes misturam seus sentimentos e percepções com a realidade, projetando emoções sobre o terapeuta. Essa ideia é a base para a teoria da transferência, onde desejos e emoções inconscientes (geralmente de origem infantil) são mobilizados, atualizados e elaborados na relação com o analista (Freud, 1905/2016, 1912/2019, 1915/2010c, 1917/2014).

Alguns anos após escrever o pósfacio do caso Dora, onde atencipa a concepção de transferência na técnica analítica, Freud redige o comentário do livro do escritor alemão W. Jensen (1837-1911|), Gradiva, publicado em 1902 (Freud, 1907/2015). O romance retrata e detalha uma situação análoga a abordada por Maupassant no conto.

No seu livro, Jensen descreve a obsessão de um arqueólogo por uma figura de baixo-relevo adquirida em uma viagem a Roma. Tal figura se torna objeto de uma ávida pesquisa. Ao contemplar essa figura, o protagonista em uma espécie de sonho diurno fantasia que está em Pompéia no ano 67 da era atual. Durante a irrupção do Vesúvio, ele ampara em seu momento de morte a mulher representada na figura em baixo relevo. Tal experiência o leva a viajar a Pompeia. Lá, encontra uma mulher que reconhece como uma versão real e atual da Gradiva. Ao se aproximar da moça, Norbert constata que já a conhecia. Tratava-se de uma amiga de infância com a qual havia perdido o contato e praticamente esquecido.

A construção do romance e o comentário de Freud exploram as associações linguageiras, imagéticas e afetivas que estabeleceram o vínculo de Zoe - a amiga de infância – com a Gradiva. A construção ficcional de Jensen pode ser considerada, portanto, um paradigma do processo de constituição de uma fantasia inconsciente, assim como o encontro com Zoe na Itália pode ser aproximado ao mecanismo da trasferência.

Deve-se ponderar, contudo, qua há diferenças significativas entre a manifestação da transferência em estado bruto, no dia a dia, com o seu manejo na clínica analítica. Para Freud, a situação analítica é artificial, pois não há nas relações sociais cotidianas algo equivalente. Todavia, afirma que o material e os processos psíquicos mobilizados na transferência são reais e espontâneos. Não se trata na análise, de um amor falso ou de mentira. Por isso, o analista deve acolher as manifestações transferenciais dos analisandos mediante uma atitude abstinência. Ou seja, sem estabeler uma relação de reciprocidade, sem buscar uma satisfação para os próprios desejos e sem intervir a partir do seu próprio saber (Freud, 1912/2019, 1915/2010c, 1917/2014)

Diferentemente do que acontece fora da análise, onde prevalece a tendência a repetir em ato as fantasias inconscientes sem rememorar ou perlaborar, a análise se vale da transferência para impulsionar a superação gradual das resistência por meio da associação livre e, dessa maneira, favorecer a manifestação dos conteúdos inconscientes recalcados (Freud, 1914/2010, 1915/2010c).

Um ponto sublinhado por Freud acerca do amor de transferência é o seu caráter plástico. Destarte, embora seja possível afirmar a existência de um componente sexual na origem de todo vínculo amoroso, fazendo-o remontar a uma matriz infantil inconsciente, há um amplo leque de gradações e modulações das manifestações do amor (Freud, 1915/2010c).

Freud (1912/2010) chama atenção para o caráter compósito e ambivalente da transferência ao pôr em perspectiva as suas valências positivas e negativas. Argumenta que quando um complexo inconsciente é mobilizado, há a irrupção não só de sentimentos de ternura, cooperação, admiração e afeição, mas também de tendências agressivas, de ressentimento e inveja. Todos esses sentimentos fazem parte do material psíquico mobilizado pela transferência, que são repetidos e elaborados pela fala na relação com o analista.

Ainda acerca do conto de Maupassant, é pertinente notar que o narrador se cala acerca do desfecho do relacionamento após “dois anos”, talvez com um tom de nostalgia. De qualquer forma, percebe-se em sua fala uma asserção e uma implicação subjetiva: para além da coincidência aleatória, verifica-se uma causalidade psíquica que põe em causa uma questão do sujeito com a sua própria verdade.

Para concluir, resgata-se aqui o episódio que interropeu o tratamento de Ana O. com Breuer, qualificado por Freud (1914/2012b) de modo enigmático como um Untoward Event, um evento funesto. Em uma carta ao escritor Stefan Zweig no início da década de 1930, Freud esclarece o referido episódio: Anna O. encenou um parto no qual deu luz ao filho do doutor B. (Gay, 1989; Roudinesco, 2016). Freud (1914/2012b) reconhece nesse acontecimento uma expressão da transferência, que qualifica como a prova concreta e imediata da etiologia sexual das neuroses.

Levando em conta que o tratamento de Anna O. ocorreu mais de uma década antes do lançamento da primeira edição dos Estudos sobre a Histeria, em 1895, é bastante plausível que esse episódio tenha acontecido no mesmo ano em que o conto de Maupassant foi publicado. Em ambos, o que está em voga é a expressão por meio da transferência da realidade sexual do Inconsciente, na condição de um amor preparado e antecipado no plano da fantasia.

 

Considerações finais

Foi discutido como a ficção fantástica de Maupassant repercute o espírito científico e cultural de uma época que influenciou o surgimento da Psicanálise. Destacou-se nela inclusão como temas de pesquisa de alguns fenômenos considerados paranormais ou ocultos com os quais Freud também se ocupou. Salientou-se que na ficção de Maupassant o magnetismo é apresentado como um fenômeno situado na franja da razão, no limiar entre a crença supersticiosa no sobrenatural e a explicação científica. Destacou-se que tais fenômenos também são objetos de estudo da psicanálise. No entanto, pontuou-se uma diferença: se no conto tal abordagem acontece no âmbito da ficção, como recurso para produzir a hesitação e a dúvida do leitor, de forma de ensejar uma fruição estética (Roas, 2014), na Psicanálise a abordagem de fenômenos ocultos, como o magnetismo e a telepatia, constitui uma via de investigação de fenômenos concretos mais discretos e sutis que escapam ao recorte do método experimental e aos pressupostos da psicologia da conscência.

A análise do contos de Maupassant possibilitou problematizar as experiências e influências precursoras da Psicanálise que prepararam a sua emergência. Indicou-se o modo particular por meio do qual a pesquisa freudiana se beneficiou do debate clínico do final do século XIX, que remonta à prática de Mesmer e seus discípulos.

Assim, a partir do comentário dos contos de Maupassant, foi possível aferir como a prática clínica fundamentada na palavra e no Inconsciente culminou na formulação do fenômeno da transferência como um eixo fundamental da técnica analítica e como o desenvolvimento dessa técnica exigiu um novo ciclo de apreciação de temas presentes desde o primórdios da psicanálise, como é o caso da telepatia, do magnetismo e da sugestão.

Este estudo toca na discussão sobre a relação entre Psicanálise e Ciência, que se deseja aprofundar em outra oportunidade, haja vista que a Psicanálise, a partir do conceito do Inconsciente, visa acolher as manifestações do Sujeito que são foracluídas pela ciência ao tentar excluir toda influência do pesquisador no processo de construção do conhecimento. Assim, se o mesmerismo é notadamente uma prática pseudocientífica, a relação entre psicanálise e ciência não deve ser tratada como oposição, ainda que a Psicanálise não se inclua integralmente no projeto de ciência moderna.

O texto também abre diferentes veredas para se pensar o problema da influência e da autoridade na atualidade, levando-se em conta a forte mediação das redes sociais e de um apelo escópico na constituição dos laços sociais.

 

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